Merval Pereira para O Globo
Nada mais significante do atual momento político do que o Código de Processo Penal ser o foco das discussões de uma questão essencialmente política como a cassação do mandato do deputado José Dirceu. A discussão é emblemática para o nosso sistema democrático, ao mesmo tempo que a cassação de Dirceu é simbólica de um momento em que a sociedade brasileira exige a punição dos envolvidos no amplo esquema de corrupção que já foi mais do que demonstrado pelas investigações das diversas CPIs. São os paradoxos democráticos que surgem para nos desafiar.
O deputado José Dirceu está se valendo das normas democráticas para tentar evitar a cassação de seu mandato, que virá para puni-lo por ter comandado um esquema de corrupção política que pôs em risco o Poder Legislativo, um dos pilares do regime democrático. Mas é preciso que o processo de cassação siga todos os trâmites legais, para que não se dê a ele, nem a outro qualquer, o pretexto de que foi cassado por perseguição política.
É claro que a definição sobre se Dirceu teve "amplo direito de defesa" é questão controversa, pois se assim não fosse o Supremo Tribunal Federal não teria se dividido exatamente ao meio, e o ministro Sepúlveda Pertence não estaria amanhã na difícil posição de dar o voto de minerva num assunto que pode se transformar em uma séria crise entre os poderes Legislativo e Judiciário.
No entanto, a partir do momento em que a Constituição de 1988 explicitou, no artigo V, inciso LV que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes", os integrantes do Conselho de Ética deveriam tomar o cuidado de obedecer ao processo habitual do Código Penal, que estabelece que as testemunhas de defesa devem ser ouvidas depois das de acusação.
Notas taquigráficas da sessão do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar realizada em 13 de setembro revelam que antes do depoimento do presidente da Câmara, deputado Aldo Rebelo, que seria a primeira das testemunhas de Dirceu, o presidente do Conselho, deputado Ricardo Izar, foi advertido pelo advogado José Luis de Oliveira Lima sobre as conseqüências da inversão das testemunhas. Seguem partes do dialogo entre o advogado de José Dirceu e o presidente do Conselho de Ética:
O sr. José Luís Oliveira Lima — “(...) Há, na oitiva do deputado Aldo Rebelo, uma inversão processual. Ou seja, há a necessidade de, primeiro, conforme prevê o devido processo legal, conforme prevê o exercício pleno da defesa, que as testemunhas arroladas pela acusação, pela inicial, prestem esclarecimentos antes do que as testemunhas da defesa. Isso é um princípio constitucional e um princípio do devido processo legal. (...) Portanto, caso a testemunha Aldo Rebelo preste depoimento hoje, esse procedimento estará nulo por cerceamento de defesa".
O sr. presidente (deputado Ricardo Izar) — “Gostaria de explicar a V.Sa. que realmente isso é uma norma processual. No Conselho de Ética é bem diferente, por algumas razões. Primeira delas, nós não podemos obrigar as testemunhas a comparecer. Então, nós enviamos um ofício, alguns responderam, outros nem responderam, não marcaram datas. Então fica tudo muito mais difícil para nós. Então é bem diferente. É uma norma processual, como V.Sa. disse, não é constitucional, mas é processual. Mas, de qualquer maneira, aqui o Conselho de Ética é bem diferente, porque inclusive nós não podemos obrigar ninguém a vir, a comparecer".
Outro engano que se comete é interpretar como políticos os votos deste ou daquele ministro do STF, tentando tirar ilação da posição de cada um em relação ao presidente da República que os nomeou. A tal ponto de o senador Jefferson Perez, um dos mais lúcidos da oposição, querer apresentar uma emenda alterando a maneira como os ministros são escolhidos, para evitar o viés político dos votos.
O relator do caso, Ministro Carlos Ayres Britto, deu parecer contra Dirceu, de cabo a rabo, acompanhado por outro nomeado pelo presidente Lula, o ministro Joaquim Barbosa. Ayres Britto e Barbosa já haviam votado contra Dirceu quando o plenário do Supremo decidiu que ele poderia ser processado pelo Conselho de Ética mesmo sendo ministro quando os fatos ocorreram.
Ellen Gracie e Gilmar Mendes, nomeados pelo ex-presidente Fernando Henrique, votaram contra Dirceu na última sessão do STF, enquanto o ministro Nelson Jobim, também nomeado por Fernando Henrique, votou a favor. O mesmo voto de ministros como Marco Aurélio de Mello, nomeado pelo ex-presidente Fernando Collor. Amanhã saberemos o voto do ministro Sepúlveda Pertence, nomeado pelo ex-presidente José Sarney, que também nomeou o ministro Carlos Velloso, que votou contra Dirceu. Se Sepúlveda votar a favor de Dirceu, como todos esperam, caberá ao STF decidir se o processo retroagirá ou se o depoimento da presidente do Banco Rural, Kátia Rabelo, será retirado do relatório final e o processo poderá prosseguir na quarta-feira, como votou o ministro Cezar Peluso, nomeado pelo presidente Lula.
Tecnicamente, o voto de Peluso é considerado no Supremo mais radicalmente favorável a Dirceu, pois anula uma prova testemunhal que o incrimina em tráfico de influência e confirma a acusação de que o lobista Marcos Valério tinha acesso a seu gabinete. No entanto, para nós, leigos, aí incluídos a maioria dos políticos, o voto de Peluso é considerado contra Dirceu, por que não interrompe o processo. E, de mais a mais, todos já tomaram conhecimento do depoimento de Kátia. Como se vê, as interpretações possíveis são variadas, dependendo do grau de paranóia de cada um.
Um comentário:
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