terça-feira, dezembro 15, 2009

Caras de anjo enganam caras de pau

por Sandra Cavalcanti

Tinha de acontecer! Estava escrito e só não viu quem não quis ver... Os três Poderes, instalados em Brasília, estão sendo afogados pelo tsunami das ilegalidades consentidas. São caras de anjo enganando caras de pau. E vice-versa!

A História ensina que a democracia só dá bons frutos quando funciona sob a eterna e atenta vigilância de um povo livre e consciente. Do contrário, tudo apodrece.

Infelizmente, a capital do Brasil não produz vigilantes... Uma epidemia de cumplicidades tomou conta daquele silencioso e distante planalto. Ali só se ouvem murmúrios e sussurros. Conversas sempre cifradas. Personagens que se empenham em esconder o que pensam e o que fazem. Caras de anjo que enganam caras de pau e caras de pau que fingem estar sendo enganados...

Primeiro veio o mensalão do PT. Foi um susto, pois o partido era o porta estandarte da moralidade política. Depois apareceu o mensalinho mineiro, exatamente dentro do mesmo modelo. Agora, o mensalão brasiliense, sempre dentro do mesmo modelo.

Por conta deles, várias informações sobre mensalinhos anteriores, só agora descobertos e identificados. Todos seguindo o mesmo modelo: o que o Marcos Valério tornou famoso, que o Dirceu aprovou e para o qual o Delúbio criou toda uma logística.

Podem escrever: ainda vão surgir outros por aí, porque, na verdade, como sentenciou o grande pajé, "tudo isso é caixa 2 e todo mundo sempre fez..."

Muitos sociólogos (!) e cientistas políticos (!) estão oferecendo análises profundas, explicando que a corrupção mora na alma do brasileiro e que todo mundo, em nosso país, por meio do famoso jeitinho ou do sabe-com-quem-está-falando, age assim. Daí a leniência de nossas autoridades e daí a impunidade geral!

O fato é que esse presidencialismo caudilhesco, pelego, sindical, oligárquico e imperial, vigorando há tantos anos, é que cria todas as condições e fornece todas as ocasiões. Depois, providencia as desculpas.

Neste nosso sistema, quando o presidente da República se elege sem que, na mesma eleição e juntamente com ele, fique formada uma segura e legítima base majoritária no Legislativo, o resultado é sempre o mesmo: ou ele compra os aliados, para fingir que governa com o Legislativo, ou dá um golpe.

Tem sido assim ao longo de toda a nossa História republicana. No período da monarquia parlamentar, durante quase sete décadas, o Brasil não viveu um só dia de desobediência às normas constitucionais. Nunca houve estado de sítio nem censura à imprensa. Sem maioria eleita pelo povo, o Gabinete caía e o povo era, de novo, chamado a escolher. Democracia.

Após a implantação da República, durante quase cem anos tivemos dezenas de golpes, quarteladas, revoluções, insurreições e mudanças de Constituição. Sempre por falta de maioria no Congresso. Essa foi a origem do voto proporcional, imposto por Vargas, quando todos os poderes vigilantes dos eleitores do Brasil foram retirados. Esse tipo de voto, além disso, ainda conseguiu ser piorado com a diabólica invenção do coeficiente eleitoral, no governo Geisel. O povo dançou de vez.

O eleitor, no Brasil, é um simples coadjuvante. Nunca tem papel principal e nem sabe o que é voto proporcional... O coitado vota no seu candidato, crente que escolheu alguém. Mal sabe que o voto dele vai servir para eleger outro, que ele talvez nem conheça. Trata-se de uma manobra perversa.

O voto proporcional acabou com o distrito eleitoral. O distrito eleitoral do cidadão passou a ser o seu Estado e o seu município. Para presidente o distrito eleitoral é o País inteiro. E ainda dizem que somos uma República Federativa!

Por conta dessa perversidade política, o eleitor fica a anos-luz de distância dos candidatos. Para estes, o território a ser trabalhado fica imenso. Por isso as campanhas ficaram tão caras, tão dependentes de rádio, televisão, seitas, ONGs e "contribuições generosas de grandes empresas"...

Fica fácil entender a origem do caixa 2. Sujeitas às leis fiscais, as empresas são levadas a encontrar caminhos para financiar os candidatos que lhes parecem ser úteis para seus municípios ou Estados. Mesmo com a ajuda da chamada "propaganda gratuita" no rádio e na TV, os partidos ficam na dependência desses grandes arranjos.

Não é fácil ser candidato a deputado federal num Estado grande ou populoso. Onde, para ir da capital a outra cidade, ele vai levar três dias de embarcação. Ou quatro horas de avião. Ou enfrentar 12 horas de estradas caindo aos pedaços. Daí a importância das telecomunicações. Daí a importância dos minutos de TV e de rádio. Daí essas coligações espúrias, feitas apenas para somar segundos.

Quem provoca caixa 2 é o nosso processo eleitoral! Só quem tem como manobrar caixa 2 faz maioria legislativa. Fica com os representantes do povo em suas rédeas. Faz o que bem entende com o Legislativo, com o orçamento e com a opinião pública.

Isso explica por que jamais será feita uma reforma política neste país. Os donos do poder não querem. Não interessa a eles. E essa história de o atual presidente dizer que enviou uma proposta ao Congresso é um escárnio! Ao contrário, Lula e o PT acabaram com a cláusula de barreira assim que puderam. Montaram um esquema de facilidades para infidelidades. Inventaram tortuosos caminhos para um tal de financiamento público, que é uma vergonha. E agora, quando o último mensalão foi praticado por políticos fora do PT, o chefão estufa o peito e acha que está na hora de tomar providências. Que providências? As que ele tomou com a sua gente? Tirando o autor da denúncia e o líder que foi apanhado com a boca na botija, quem sofreu alguma coisa?

Conversa. Conversa de cara de pau querendo enganar cara de anjo. Ou vice-versa...

Sandra Cavalcanti, professora, jornalista, foi deputada federal
constituinte, secretária de Serviços Sociais no governo Carlos Lacerda, fundou e presidiu o BNH no governo Castelo Branco. E-mail: sandra_c@ig.com.br

segunda-feira, dezembro 14, 2009

Os bons ladrões são os piores

por Nelson Motta

Primeiro foi a Câmara, depois o Senado, e fechando um ano devastador para os políticos brasileiros, o governo de Brasília. Corruptos petistas, tucanos e demos (o PMDB é hors concours) foram denunciados pela Polícia Federal por formação de quadrilha, peculato e suborno. Além da falta de vergonha na cara, o que todos eles têm em comum?

Todos dizem que ninguém roubou para si, mas para a campanha, para o partido. O caixa dois é uma nefasta tradição brasileira, todos lamentam, mas é conseqüência do nosso sistema eleitoral. Sem reforma política, não há salvação, gritam os ladrões. E continuam roubando, pela causa, é claro. Ou pela calça, onde enfiam o dinheiro.

Entre a causa e a calça, está se criando no Brasil uma brasileiríssima jurisprudência ética que considera a corrupção para financiar campanhas e ações políticas um delito leve, muito menor do que roubar para uso próprio. Aqui, até mesmo matar, por motivos políticos, é considerado um atenuante da culpa: “Não foi por mim, foi pelo partido, pela causa, pelo povo”. Mas como não dá para absolver os companheiros e condenar os adversários pelos mesmos crimes, agora eles se defendem em bloco e atacam o sistema eleitoral.

Em países civilizados, com maior tradição jurídica do que o Brasil, como a Itália, a Alemanha e a Inglaterra, a motivação política é um agravante dos crimes. Porque o roubo servirá para fraudar processos legais, para atentar contra as instituições democráticas, e terá conseqüências na vida de todos os cidadãos.

O ladrão em causa própria dá prejuízos pontuais a pessoas físicas ou jurídicas, ou ao Estado. O que usa o dinheiro sujo para fraudar o processo eleitoral e manipular a vontade popular, para corromper políticos e juízes, para impor a sua causa, causa irreparáveis prejuízos a todos porque desmoraliza a democracia, institucionaliza a impunidade e interfere – sejam lá quais forem as suas intenções – de forma decisiva e abusiva nos direitos e na vida dos cidadãos.

Quem acredita que com financiamento público de campanhas eles vão parar de roubar? O problema não é o sistema, é a qualidade dos usuários.

quinta-feira, dezembro 10, 2009

Uma estátua equestre para Lula

por Demétrio Magnoli

Tirando a espuma, o filme Lula, o Filho do Brasil não passa de mais uma versão da fábula do indivíduo virtuoso que, arrostando a adversidade extrema, luta, persevera e triunfa montado apenas nos seus próprios esforços. Como cada um encontra aquilo que procura, o fiel extrai dessa fábula uma lição singela sobre a intervenção misteriosa da providência, enquanto o doutrinário liberal nela encontra o argumento clássico em defesa do princípio do mérito individual. Nenhuma das interpretações se amolda ao pensamento de esquerda, que se articula ao redor das noções de circunstância histórica e sujeito social. Lula, o Filho do Brasil é uma narrativa avessa ao programa do PT.

A espuma é vital. O livro homônimo de Denise Paraná, inspiração original do filme, apresenta Lula como personificação de um ator coletivo que é a classe trabalhadora. A obra mais cara da história do cinema brasileiro rejeita a metáfora esquerdista, substituindo-a por outra, nacionalista. Lula é o Brasil do futuro, que emerge purificado do pântano do sofrimento - eis a mensagem de Lula, o Filho do Brasil. Já se escreveu abundantemente sobre as óbvias finalidades eleitorais da hagiografia produzida pela família Barreto. Mas passou-se ao largo do seu sentido político profundo: o filme condena o PT à vassalagem.

No Palácio de Versalhes, uma imagem que simboliza a França abençoa o leito real de Luís XIV. As monarquias absolutas foram modernas no seu tempo, pois produziram um imaginário nacional. O maior dos soberanos Bourbon completou a tarefa de subordinação da nobreza ao poder central, suprimindo os privilégios políticos dos senhores e convertendo-os em cortesãos. Quando se curvavam diante do rei, os nobres domesticados estavam reverenciando a França. Lula, o Filho do Brasil funciona como instrumento de domesticação do PT, impondo a seus dirigentes e militantes a obrigação de se curvar diante de Lula. Não há, porém, nada de moderno nisso.

A República é a nação sem a figura do soberano, cujo lugar passa a ser ocupado pelo povo. As tiranias republicanas, nas suas modalidades fascistas, comunistas ou caudilhistas, desviam-se patologicamente desse modelo despersonificado da nação. Elas têm um pendor irresistível a erguer estátuas de líderes vivos, que cumprem o papel de lugares de culto. Lula, o Filho do Brasil é a coisa mais parecida com uma estátua equestre de Lula que se pode produzir no Brasil do século 21. Mas, como as instituições políticas da democracia estão de pé, o culto ao líder vivo não se espraia além de um círculo restrito formado essencialmente pelo partido que dele depende.

O PT original viu-se a si mesmo como um projeto coletivo de transformação do Brasil. Lula seria apenas uma face, relevante, mas circunstancial, da caminhada redentora do povo trabalhador. O livro de Denise Paraná inscreve-se nessa visão e, não por acaso, termina com a prisão de Lula em 1980: depois dela começaria uma outra história, que é a do PT. Na ala esquerda petista, enxergou-se Lula como um inconveniente inevitável, mas passageiro, na senda da revolução socialista. No outro extremo do partido, num passado não tão distante, dirigentes como José Genoino e Antonio Palocci procuraram alternativas mais presidenciais à figura rombuda do sindicalista do ABC. Todos eles fracassaram, nos planos prático e simbólico. Lula, o Filho do Brasil salta diretamente da prisão de Lula para a festa da posse na Presidência, colocando entre parêntesis a história inteira do PT. O filme chegará ao público juntamente com a homologação da candidatura de Dilma Rousseff, ungida por Lula na base do dedazo, nome que os mexicanos deram à indicação presidencial dos sucessores nos tempos da hegemonia do PRI.

Na vida real, o filho do Brasil nutriu desprezo completo pelos partidos e correntes de esquerda, algo bem documentado em depoimentos e entrevistas. Indignado com a mistificação cinematográfica dos Barretos, César Benjamim relatou, em artigo publicado pela Folha de S.Paulo, que Lula se gabou durante a campanha presidencial de 1994 de ter tentado currar um menino do MEP, preso político com quem dividiu uma cela no Deops. O filme é uma curra consumada: a violação da narrativa canônica do PT e sua substituição por uma história de cartolina na qual a redenção se identifica com a trajetória do líder providencial.

Lula, o Filho do Brasil tem todos os traços de cinema oficial. A obra foi financiada por empresas com vultosos contratos públicos e sua versão final acolheu sugestões provenientes do entourage presidencial. Segundo os que o viram, é um mau filme, mesmo se analisado nos seus próprios termos. Ele não provoca uma empatia firme nem desata turbilhões emocionais. Dificilmente terá impacto eleitoral significativo. Mas, antes ainda da estreia formal, cumpre a função mais sutil de domesticação simbólica dos petistas.

Na corte de Luís XIV, um sistema sofisticado de regras de precedência e de etiqueta regulava as relações entre o soberano e os nobres cortesãos. No seu conjunto, aquelas regras tinham a finalidade de atestar continuamente a fidelidade à figura real, que personificava a França. A primeira pré-estreia de Lula, o Filho do Brasil, destinada a ministros, diretores de fundos de pensão e altos dirigentes petistas, obedeceu a um improvisado sistema similar. Programam-se sessões especiais para intelectuais, artistas, sindicalistas e militantes, já convocados a prestigiar o filme. Todos, cada um a seu momento, devem fazer a genuflexão diante da nova ordem da história.

Golbery do Couto e Silva, o mago da ditadura militar e da abertura política, profetizou certa vez que Lula cumpriria a missão histórica de destruir a esquerda no Brasil. Se vivo, ele daria um jeito de assistir escondido ao espetáculo proporcionado pelo público de uma dessas pré-estreias voltadas para a corte petista.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia
Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br

terça-feira, dezembro 08, 2009

Excluindo a podridão

por João Bosco Leal*

Ao meditar sobre as manchetes jornalísticas veiculadas na última semana – Mensalão do DEM; Ocupação petista do Banco do Brasil gera prejuízos milionários à instituição; Patrimônio de Arruda cresce mais de 1.000%; Marcos Valério reaparece, envolvido em escândalo do DF; PSDB tenta se blindar e isolar escândalo em MG -, acabo me questionando sobre a popularidade do Presidente Lula e a moral do brasileiro como um todo.

Pelas manchetes, notamos que a corrupção é generalizada, envolvendo os maiores partidos políticos – DEM, PT, PSDB e PMDB -, os Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, a dilapidação do patrimônio público e crescimento assombroso do privado.

Por outro lado, com a distribuição de cestas básicas e tantos outros vales – gás, moradia, etc.-, parece que o presidente comprou a população brasileira menos esclarecida e de menor interesse no noticiário, de tal forma que esta não se preocupa mais com o país e sim com as benesses que receberá a cada fim de mês.

Os brasileiros que recebem essas cestas e vales, normalmente os de mão-de-obra menos qualificada, criarão seus filhos sem nada fazer, e estes também acreditarão que o governo os proverá sempre, pois é assim que estão sobrevivendo seus pais. São brasileiros sem futuro algum, pois o governo não os ensina a pescar, o que poderia ser feito investindo-se em sua qualificação profissional e educando-os, preferindo, no entanto, dar-lhes o peixe na cesta básica.

A classe política alimenta essa população dessa maneira, desejando que permaneçam assim, pensando exclusivamente em votos para continuar no poder, pois a população menos esclarecida culturalmente também o é politicamente, tirando proveito do silêncio da mesma para a dilapidação do país.

O Poder Judiciário se cala diante do quadro e, em contrapartida, aumenta repetidamente seus proventos, tendo ainda alguns de seus membros envolvidos nos mensalões.

O Poder Executivo, na sombra de seu líder maior, sonha com a perpetuação no poder e se abraça cada vez mais a políticos radicais que não têm nenhum interesse em seus povos, a exemplo de Hugo Chaves, Evo Morales, Manuel Zelaya e agora o mais recente amigo de Lula, o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad.

Os patriotas – como o produtor rural brasileiro, a classe operária e os industriais que continuam investindo no país – é que produzem o suficiente para toda essa quadrilha roubar e ainda conseguem pagar a dívida externa e sustentar a enorme máquina do governo com seus apadrinhados, funcionários fantasmas, laranjas e vagabundos em geral.

Só nos faltava agora se Lula aprendesse com Ahmadinejad e tratasse as frutas podres da classe política como se tratam os bandidos e ladrões no Irã, enforcando-os ou amputando-lhes as mãos, coisa que certamente não faria, pois são todos seus amigos.

De qualquer forma, a exclusão da podridão na política brasileira traria com certeza novas e sadias frutas para esse meio, erguendo a moral do povo e, certamente, faria com que aqueles que só recebem passassem também a dar algo ao país.

(*)João Bosco Leal é produtor rural e ex-presidente do MNP.

Geração maldita

por Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 8 de dezembro de 2009

Todo dia recebo dezenas de cartas de leitores, das quais respondo algumas pelo meu programa "True Outspeak" (www.blogtalkradio.com/olavo, segundas-feiras, às 20h00 do Brasil). As outras ficam sem resposta, não por serem desimportantes, mas por simples impossibilidade física de escrever as centenas de páginas diárias que seria preciso para dar a cada uma a atenção merecida. No entanto, algumas são irrespondíveis num outro sentido: o que dizem é tão verdadeiro, tão sério, tão pungente, que nada tenho a lhes retrucar nem acrescentar.

Eis aqui dois exemplos. O primeiro, do leitor Ithamar Paraguassu Ramos, até saiu no Diário do Comércio do dia 17 (http://www.dcomercio.com.br/Materia.aspx?id=32129):

"A única coisa que posso dizer é que eu amo as materias do Olavo. Já faz um bom tempo que tenho reclamado do que eu chamo de 'esquizofrenia' dos formadores de opinião brasileiros. Na mesma sentença eles dizem uma coisa e se contradizem completamente... Mas o ponto é que infelizmente Olavo não esta atingindo uma parcela muito importante da nossa população, isso por causa do declínio da educação... Para o meu horror, os jovens universitários de hoje não sabem o sgnificado de palavras como: 'sofisma', 'erítistica', 'ardil', 'arrazoado', 'verossimilhança' e por aí vai."

O segundo, do leitor Leandro Coelho, sai aqui pela primeira vez:

"Não tenho (e não sei) os meios de verificar se todas as pessoas brasileiras são assim, mas todas as pessoas com as quais converso, todas praticamente sem exceção, só pensam em levar vantagem seja com processos trabalhistas, seja se inscrevendo em programas sociais sem necessidade ou de qualquer outra maneira. Trabalhar para prosperar, talvez, mas ganhar um dinheirinho na base da enganação, processos etc., ah, aí todos querem. Vendo isso, não vejo por que achar triste que estas pessoas sejam governadas pelo Foro de São Paulo. As pessoas que se enquadram no esquema acima merecem toda a miséria nacional. Se o jeitinho acima descrito é aplicável a grande parte da população brasileira, então o Lula, o PT... estão no lugar certo."

Que é que posso dizer diante dessas coisas? Elas são a verdade pura e simples, constatada diariamente por quem quer que tenha um pingo de capacidade de observação. E essa verdade é tão horrível, tão deprimente, que o cérebro humano, ao admiti-la, entra em estado de torpor e busca logo pensar em outra coisa. Quanto mais grave e temível é um estado de coisas, menos atenção ele recebe e mais facilmente é aceito como fatalidade inevitável, na qual não vale a pena pensar. Nem entendo por que há tantos cursos de auto-ajuda ensinando as pessoas a evitar assuntos desagradáveis. Elas já fazem isso por mero automatismo, e precisamente porque o fazem as coisas vão se tornando cada vez mais desagradáveis.

O colapso intelectual do Brasil, ao qual se seguiu a completa deterioração moral da população, ao menos nos grandes centros urbanos, não aconteceu simplesmente porque sim. Foi a obra criminosa da geração mais presumida e torpe que as universidades brasileiras já produziram. Para cada dez mil sexagenários letrados que hoje ocupam posições de destaque na política, nas universidades, no show business, no mundo editorial, mal se encontra um que tenha consciência das suas responsabilidades, que não sufoque sua consciência de culpa sob toneladas de chavões politicamente corretos, de modo a sentir que é bom quando pratica o mal.

Quando se encontra essa exceção memorável, um homem de bem, podem ter a certeza de que ele vem enfraquecido pela contaminação do ambiente geral adverso, ao qual não ousa opor a necessária severidade. Estou lendo, com uma satisfação mista de tristeza, o livro de Boris Tabacof, Espírito de Empresário. Reflexões para Construir uma Gestão Baseada em Valores (São Paulo, Editora Gente, 2009). Quanta boa vontade, quanta sugestão construtiva, quantas idéias úteis, quanto sentimento moral saudável, quanto sincero amor pelo Brasil e quanto desejo de ver sua gente prosperar não perpassam essas páginas que todo empresário deveria ler! E tudo isso dito por quem não se limita a dizer, mas há décadas se esforça para que suas idéias se realizem. No entanto, quantas concessões de ingênua polidez não faz o autor a pessoas e grupos que, se pudessem, gostariam mesmo é de assassiná-lo! Como realizar as mais belas propostas sem primeiro neutralizar as forças que as estrangulam e que, quando não conseguem destrui-las, tratam de corrompê-las e prostitui-las para que acabem servindo ao mesmo mal que pretendiam corrigir? Quando as pessoas imbuídas das melhores intenções neste país vão aprender a lição de Hegel sobre "a obra do negativo", a função preliminar, básica e imprescindível que a crítica corrosiva e a destruição dos antagonismos desempenham na liberação das forças melhores e mais promissoras? Uma só palavra gentil dita aos homens que criaram as situações descritas pelos leitores Ramos e Coelho é o bastante para deitar a perder todos os esforços mais generosos despendidos para corrigi-las. Mais vale um bom palavrão atirado em público à cara de um Tarso Genro, de um Marco Aurélio Garcia, do que mil palavras construtivas atiradas ao vento.

Ninguém, no mundo, tem o monopólio das boas idéias. Elas surgem naturalmente, quando a situação permite -- mas a situação só o permite quando os piores e os mais estúpidos desocupam os altos postos e são devolvidos à sua justa escala de insignificância.

O Brasil, no momento, não precisa de boas idéias. Precisa é de uma ação vigorosa, implacável, contra o império da maldade, da mentira e da estupidez. Esse império foi instaurado pela geração que, nos bancos da universidade, se deixou seduzir pela crença de que era "a parcela mais esclarecida da população" e de que todos os problemas estariam resolvidos quando ela chegasse ao poder. Ela chegou -- e fez do povo brasileiro o mais ignorante, o mais assassino e provavelmente o mais desonesto do mundo.

Posso falar de cátedra, porque essa geração é a minha. Observei como ela se formou e sei o quanto a ilusão de pertencer a uma elite predestinada pode corromper o coração humano. Eu mesmo participei dessa ilusão, e vivo até hoje do arrependimento que ela me infunde. Vejam os cinquenta mil homicídios por ano, vejam o fracasso dos nossos estudantes nos testes internacionais, vejam o poder crescente das gangues de narcotraficantes e de invasores de terras, vejam a amoralidade cínica estampada nos rostos de tantos dos nossos concidadãos -- e me digam se algo de bom é possível construir enquanto os homens que criaram tudo isso continuam mandando no país e acumulam mais poder a cada dia que passa.

Quando nada se faz contra o mal, a apologia do bem torna-se mera desconversa -- a forma passiva e afável da mentira na qual o mal se sustenta.

De joelhos ante sua insolência

Olavo de Carvalho - 6/12/2009 - 18h29

Pelo noticiário dos últimos dias, os leitores devem ter tomado consciência de que são governados por um indivíduo que se gaba de um crime de estupro, real ou imaginário, e revela sentir uma nostalgia profunda dos dias em que os meninos do interior do Nordeste mantinham relações sexuais com cabritas e jumentas.

O que não sei é se percebem o grotesco, a infâmia, a abominação de continuar a chamar esse sujeito de Vossa Excelência, quando Vossa Insolência seria muito mais cabível, fazendo de conta que estão diante de um cidadão respeitável quando estão mesmo é de joelhos ante um sociopata desprezível.

Nenhum político do mundo jamais fez declarações tão insultuosas à moralidade geral e à simples dignidade humana. Muito menos as fez e permaneceu no cargo. Lula não só permanecerá como fará tranquilamente a sua sucessora, porque a sociedade brasileira inteira já se acanalhou ao ponto de aceitar como decreto divino tudo o que venha do "Filho do Brasil". Todos preferem antes ser humilhados, achincalhados, envergonhados ante o universo, do que correr os riscos de uma crise política. Sabem por que? Porque foram reduzidos a uma tal impotência que já não têm meios nem de criar uma crise política.

Em fevereiro de 2004 escrevi: "Quem quer que, a esta altura, ainda sonhe em 'vencer o PT', seja nas próximas eleições, seja ao longo das décadas vindouras, deve ser considerado in limine um bobão incurável, indigno de atenção.

O PT, como digo há anos, não veio para alternar-se no poder com outros partidos – muito menos com os da 'direita' – segundo o rodízio normal do sistema constitucional-democrático. Ele veio para destruir esse sistema, para soterrá-lo para sempre nas brumas do passado, trocando-o por algo que os próprios petistas não sabem muito bem o que há de ser, mas a respeito do qual têm uma certeza: seja o que for, será definitivo e irrevogável.

Não haverá retorno. O Brasil em que vivemos é, já, o 'novo Brasil' prometido pelo PT, e não tem a menor perspectiva de virar outra coisa a médio ou longo prazo, exceto se forçado a isso pela vontade divina ou por mudanças imprevisíveis do quadro internacional."

Fui chamado de radical, de paranoico, de tudo quanto é nome. Os que assim reagiam não tinham – e não têm até hoje – a menor ideia de que existe uma ciência política objetiva, capaz de fazer previsões tão acertadas quanto as da meteorologia, com a diferença de que estas são feitas, no máximo, com antecedência de algumas horas. Quão preciosa não seria essa ciência nas mãos dos planejadores estratégicos, seja na política, seja nos negócios! Recusando-se a acreditar que ela existe, preferem confiar-se aos pareceres dos acadêmicos consagrados, que são tão bem educadinhos e jamais os assustam com previsões certeiras.

Ainda lembro que, em 2002, o Los Angeles Times consultou duas dúzias de eminentes "especialistas" sobre as eleições no Brasil. Todos disseram que Lula não teria mais de 30 por cento dos votos. Só eu – o radical, o alucinado – escrevi que a vitória do PT era não apenas certa, mas absolutamente inevitável.

Do mesmo modo, sob insultos e cusparadas, anunciei que a passagem do tempo desfaria a lenda da "moderação" lulista, pondo à mostra o compromisso inflexível do nosso partido governante com o esquema revolucionário internacional.

Hoje isso está mais do que evidente, e sinais de um temor geral que antes ninguém desejava confessar começam a despontar por toda parte. E que fazem, diante do perigo tardiamente reconhecido, essas consciências recém-despertadas? Correm em busca dos mesmos luminares acadêmicos que já os ludibriaram tantas vezes com suas palavras anestésicas, como instrutores de auto-ajuda.

A elite brasileira é vítima de seu próprio desamor ao conhecimento, agravado de um culto idolátrico aos símbolos exteriores de prestígio e bom-mocismo. Seguindo essa linha inflexivelmente ao longo dos anos, enfraqueceu-se ao ponto de, hoje, ter de baixar a cabeça ante a torpeza explícita, arrogante, segura de si.

Olavo de Carvalho é ensaísta, jornalista e professor de Filosofia

segunda-feira, dezembro 07, 2009

Sócios, parceiros e companheiros

por Nelson Motta

É incrível, mas o nosso Senado ainda considera a possibilidade de aceitar a Venezuela no Mercosul. Porque a Venezuela não é Chávez, é uma grande compradora do Brasil, traz divisas e empregos, diz o governo, tentando parecer pragmático, mas movido pelo esquerdismo terceiromundista que (des)orienta nossa política externa e tantas vergonhas e derrotas nos tem custado, as últimas em Honduras. Argumentam que Chávez passa e a Venezuela fica, mas do jeito que as coisas vão quem está passando é a Venezuela, Chavez ficará hasta la vitória final, gritando pátria o muerte sobre montanhas de cadáveres de inimigos da revolução bolivariana.

Mas o homem não ajuda. Sem que ninguém lhe perguntasse, defendeu ardorosamente a libertação do terrorista venezuelano Carlos Ramirez, o Chacal, que cumpre prisão perpétua na França por diversos atentados e assassinatos, como um heróico militante da causa palestina. Depois dessa, só faltava elogiar o Idi Amin.

Pois não falta mais nada. Chávez disse que o monstro carniceiro de Uganda era um nacionalista lutando por seu povo contra o imperialismo, vítima de conspiração da mídia internacional, dominada pelo capitalismo. Claro, o grande guru de Chávez é o feiticeiro Fidel Castro, que em 50 anos fez de Cuba a prova irrefutável do fracasso do seu modelo. O sonho de Chávez é fazer da Venezuela uma grande Cuba. E depois, toda a América Latina. Fidel deve pensar “ah, se eu tivesse o petróleo desse bobalhão teria dominado o mundo…”

Com Chávez no Mercosul, além das bravatas habituais, teremos como bônus um representante de Fidel participando das decisões do bloco. Tudo pelo comércio? Alguém acredita que nossas exportações vão ser afetadas se a Venezuela não entrar no Mercosul? Eles não produzem nada além de petróleo e compram tudo barato do Brasil. Se Chávez se ofender e bravatear um boicote, o tiro será no pé, nos quatro. Vão comprar comida de quem? Do Evo, do Correa ou do Ortega? Por que ele não para de vender petróleo para os Estados Unidos?

É este sócio que Brasília quer no Mercosul? Ou quem sabe os nossos socialistas prefiram o Brasil na ALBA?

quarta-feira, dezembro 02, 2009

Por que agora?

CÉSAR BENJAMIN ESPECIAL PARA A FOLHA

DEIXO de lado os insultos e as versões fantasiosas sobre os "verdadeiros motivos" do meu artigo "Os Filhos do Brasil". Creio, porém, que devo esclarecer uma indagação legítima: "por quê?", ou, em forma um pouco expandida, "por que agora?". A rigor, a resposta já está no artigo, mas de forma concisa. Eu a reitero: o motivo é o filme, o contexto que o cerca e o que ele sinaliza.
Há meses a Presidência da República acompanha e participa da produção desse filme, financiado por grandes empresas que mantêm contratos com o governo federal.
Antes de finalizado, ele foi analisado por especialistas em marketing, que propuseram ajustes para torná-lo mais emotivo.
O timing do lançamento foi calculado para que ele gire pelo Brasil durante o ano eleitoral. Recursos oriundos do imposto sindical -ou seja, recolhidos por imposição do Estado- estão sendo mobilizados para comprar e distribuir gratuitamente milhares de ingressos. Reativam-se salas pelo interior do país e fala-se na montagem de cines volantes para percorrerem localidades que não têm esses espaços. O objetivo é que o filme seja visto por cerca de 5 milhões de pessoas, principalmente pobres.
Como se fosse pouco, prepara-se uma minissérie com o mesmo título para ser exibida em 2010 pela nossa maior rede de televisão que, como as demais, também recebe publicidade oficial. Desconheço que uma operação desse tipo e dessa abrangência tenha sido feita em qualquer época, em qualquer país, por qualquer governante. Ela sinaliza um salto de qualidade em um perigoso processo em curso: a concentração pessoal do poder, a calculada construção do culto à personalidade e a degradação da política em mitologia e espetáculo. Em outros contextos históricos isso deu em fascismo.
O presidente Lula sabe o que faz. Mais de uma vez declarou como ficou impressionado com o belo "Cinema Paradiso", de Giuseppe Tornatore, que narra o impacto dos primeiros filmes na mente de uma criança. "O Filho do Brasil" será a primeira -e talvez a única- oportunidade de milhões de pessoas irem a um cinema. Elas não esquecerão.
Em quase oito anos de governo, o loteamento de cargos enfraqueceu o Estado. A generalização do fisiologismo demoliu o Congresso Nacional. Não existem mais partidos. A política ficou diminuída, alienada dos grandes temas nacionais. Nesse ambiente, o presidente determinou sozinho a candidata que deverá sucedê-lo, escolhendo uma pessoa que, se eleita, será porque ele quis. Intervém na sucessão em cada Estado, indicando, abençoando e vetando. Tudo isso porque é popular. Precisa, agora, do filme.
Embalado pelas pré-estreias, anunciou que "não há mais formadores de opinião no Brasil". Compreendi que, doravante, ele reserva para si, com exclusividade, esse papel. Os generais não ambicionaram tanto poder. A acusação mais branda que tenho recebido é a de que mudei de lado. Porém os que me acusam estão preparando uma campanha milionária para o ano que vem, baseada em cabos eleitorais remunerados e financiada por grandes grupos econômicos. Em quase todos os Estados, estarão juntos com os esquemas mais retrógrados da política brasileira. E o conteúdo de sua pregação, como o filme mostra, estará centrado no endeusamento de um líder.
Não há nada de emancipatório nisso. Perpetuar-se no poder tornou-se mais importante do que construir uma nação. Quem, afinal, mudou de lado? Aos que viram no texto uma agressão, peço desculpas. Nunca tive essa intenção. Meu artigo trata, antes de tudo, de relações humanas e é, antes de tudo, uma denúncia do círculo vicioso da extrema pobreza e da violência que oprime um sem-número de filhos do Brasil. Pois o Brasil não tem só um filho.
Reitero: o que escrevi está além da política. Recuso-me a pensar o nosso país enquadrado pela lógica da disputa eleitoral entre PT e PSDB. Mas, se quiserem privilegiar uma leitura política, que também é legítima, vejam o texto como um alerta contra a banalização do culto à personalidade com os instrumentos de poder da República. O imaginário nacional não pode ser sequestrado por ninguém, muito menos por um governante.
Alguns amigos disseram-me que, com o artigo, cometi um ato de imolação. Se isso for verdadeiro, terá sido por uma boa causa.

CÉSAR BENJAMIN, 55, militou no movimento estudantil secundarista em 1968 e passou para a clandestinidade depois da decretação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro desse ano, juntando-se à resistência armada ao regime militar. Foi preso em meados de 1971, com 17 anos, e expulso do país no final de 1976. Retornou em 1978. Ajudou a fundar o PT, do qual se desfiliou em 1995. Em 2006 foi candidato a vice-presidente na chapa liderada pela senadora Heloísa Helena, do PSOL, do qual também se desfiliou. Trabalhou na Fundação Getulio Vargas, na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, na Prefeitura do Rio de Janeiro e na Editora Nova Fronteira. É editor da Editora Contraponto e colunista da Folha.

quarta-feira, novembro 11, 2009

Anotações para uma reedição da história universal da infâmia

por Augusto Nunes aqui
Em novembro de 1984, por não enxergar diferenças entre Paulo Maluf e Tancredo Neves, o Partido dos Trabalhadores optou pela abstenção no Colégio Eleitoral que escolheria o primeiro presidente civil depois do ciclo dos generais. Em janeiro de 1985, por entenderem que não se tratava de um confronto entre iguais, três parlamentares do PT ─ Airton Soares, José Eudes e Bete Mendes ─ votaram em Tancredo. Foram expulsos pela direção.

Em 1988, num discurso em Aracaju, o deputado federal Luiz Inácio Lula da Silva qualificou o presidente José Sarney de “o grande ladrão da Nova República”. No mesmo ano, a bancada do PT na Constituinte rejeitou o texto da nova Constituição.

Em 1989, derrotados no primeiro turno da eleição presidencial, Ulysses Guimarães, candidato do PMDB, e Mário Covas, do PSDB, declararam que ficariam ao lado de Lula na batalha final contra Fernando Collor. Imediatamente recusado, o apoio acabou aceito por insistência dos parceiros repudiados. Num comício em frente do estádio do Pacaembu, Ulysses e Covas apareceram no palanque ao lado do candidato do PT. Foram vaiados pela plateia companheira.

Em 1993, a ex-prefeita Luiza Erundina, uma das fundadoras do partido, aceitou o convite do presidente Itamar Franco para assumir o comando de um ministério. Foi expulsa. Em 1994, ainda no governo de Itamar Franco, os parlamentares do PT lutaram com ferocidade para impedir a aprovação do Plano Real. No mesmo ano, transformaram a revogação da providencial mudança de rota na economia numa das bandeiras da campanha presidencial.

Entre o começo de janeiro de 1995 e o fim de dezembro de 2002, a bancada do PT votou contra todos os projetos, medidas e ideias encaminhados ao Legislativo pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Todos, sem exceção. Uma das propostas mais intensamente combatidas foi a que instituiu a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Em janeiro de 1999, mal iniciado o segundo mandato de Fernando Henrique, o deputado Tarso Genro, em nome do PT, propôs a deposição do presidente reeleito e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. O lançamento da campanha com o mote “Fora FHC!” foi justificado por acusações, desacompanhadas de provas, que Tarso enfeixou num artigo publicado pela Folha de S. Paulo. Trecho: Hoje, acrescento que o presidente está pessoalmente responsabilizado por amparar um grupo fora da lei, que controla as finanças do Estado e subordina o trabalho e o capital do país ao enriquecimento ilegítimo de uns poucos. Alguns bancos lucraram em janeiro (evidentemente, por ter informações privilegiadas) US$ 1,3 bilhão, valor que não lucraram em todo o ano passado!

O que diriam Tarso, Lula e o resto da companheirada se tal acusação, perfeitamente aplicável ao atual chefe de governo, fosse subscrita por alguém do PSDB, do DEM ou do PPS? Coisa de traidor da pátria, inimigo da nação, gente que aposta no quanto pior, melhor, estariam berrando todos. “Tem gente que torce pra que tudo dê errado”, retomaria Lula a ladainha entoada há quase sete anos.

Faz sentido. Desde a ressurreição da democracia brasileira, a ação do PT oposicionista foi permanentemente orientada por sentimentos menores, miúdos, mesquinhos. É compreensível que os Altos Companheiros acreditem que todos os políticos são movidos pelo mesmo combustível de baixíssima qualidade.

Desfigurado pela metamorfose nauseante, o chefe de governo não teria sossego se o intratável chefe da oposição ainda existisse. O condutor do rebanho não tem semelhanças com o Lula do século passado, mas continua ouvindo o som dos balidos aprovadores. O caçador de gatunos hoje é padroeiro da quadrilha federal. O parlamentar que recusou a conciliação proposta por Tancredo é o presidente que se reconcilia com qualquer abjeção desfrutável. O moralizador da República presidiu e abafou o escândalo incomparável do mensalão.

Mas não admite sequer criticas formuladas sem aspereza pelo antecessor que atacava com virulência. É inveja, Lula deu de gritar agora. O espelho reflete o contrário. Nenhum homem culto prefere ser ignorante, nenhum homem educado sonha com a grosseria, gente honrada não quer conversa com delinquentes.

Lula não esquece que foi derrotado por FHC duas vezes, ambas no primeiro turno. E sabe que o vencedor nunca inveja o vencido.

quinta-feira, novembro 05, 2009

A ministra optou pelo atraso

por Rubens Harry Born

É de grande apreensão a noticia de que a ministra Dilma Rousseff exigiu revisão da proposta apresentada pelo Ministério do Meio Ambiente para que o país seja menos ambicioso no esforço de limitar as emissões de gases de efeito estufa, a fim de permitir maiores taxas de crescimento econômico do Brasil. Também é preocupante o fato de que os governantes considerem que somente a redução de 80% do desmatamento e o fomento aos agrobiocombustíveis são respostas suficientes aos desafios de fazer o país transitar para uma sociedade de baixo carbono.

Posturas como a defendida pela ministra Dilma Rousseff revelam concepções ultrapassadas de desenvolvimento, em que o “crescimento econômico” por si seria a forma de prover dignidade e qualidade de vida, e que tal crescimento necessariamente implica em desconsiderar questões de segurança e integridade ambiental.

A premissa implícita nesta posição é de que seguiremos usando modelos de desenvolvimento e tecnologias que estão intimamente vinculados às causas antrópicas do aquecimento global: forte dependência da exploração e uso de combustíveis fósseis; geração de energia elétrica a partir de grandes usinas hidroelétricas, termoelétricas e nucleares; sistema de transporte rodoviário para cargas e pessoas; uso inadequado e ocupação descontrolada do território para atividades altamente impactantes, nas cidades ou no meio rural.

É certo que precisamos de investimentos em infraestrutura, tais como escolas, postos de saúde, geração de energia com base em fontes renováveis, transporte público limpo e eficiente, e que todas atividades humanas geram emissões de gases de efeito estufa. Mas é no mínimo falta de visão achar que o Brasil não pode trilhar para uma trajetória de sustentabilidade que concilie o bem-estar de sua população com maior zelo ambiental e responsabilidade internacional.

Faltam menos de 50 dias para a 15aConferência das Partes (CoP-15) da Convenção Quadro da ONU sobre Mudança de Clima, na qual se espera sejam tomadas decisões políticas que reorientem as atividades econômicas e sociais a fim de buscar reverter o aquecimento global. O Brasil pode e deve ter um papel de liderança para a adoção de políticas globais e nacionais condizentes com o enfrentamento da crise climática. E esse enfrentamento pode gerar inúmeras oportunidades de empregos “verdes”, em atividades social, econômica e ambientalmente sustentáveis, e portanto servir de resposta para a “outra” crise — a financeira — cujos elementos vinculamse também à noção de crescimento ilimitado e a qualquer custo. Mudar hábitos de consumo ou sistemas e tecnologias de produção pode significar tanto melhor saúde, qualidade de vida, diminuição de custos, e simultaneamente, promoção da qualidade ambiental, mitigação do aquecimento global e geração de empregos.

RUBENS HARRY BORN é coordenadoradjunto da organização não governamental Vitae Civilis. O Globo

sexta-feira, outubro 23, 2009

Primores de ternura - 2

por Olavo de Carvalho

Nos anos 50-60, a união simbiótica de revolução e crime passou por um upgrade formidável, deixando de ser apenas uma prática consagrada e um objeto de exortações retóricas e tornando-se alvo de teorização sistemática por parte dos pensadores marxistas, especialmente da Escola de Frankfurt. Segundo Herbert Marcuse, o mais popular dentre esses autores na época e um queridinho da grande mídia americana, o proletariado industrial já não servia como classe revolucionária, por ter sido corrompido pelas benesses do capitalismo. Em vez de tirar desse óbvio desmentido dos prognósticos de Marx quanto à miséria crescente dos trabalhadores no livre mercado a conclusão lógica de que o marxismo não servia para grande coisa, Marcuse achou que podia consertar a teoria simplesmente buscando uma nova classe revolucionária, definida não pela desvantagem econômica, mas por qualquer tipo de frustração psicológica. Em vez de uma ele descobriu três: (1) os intelectuais e estudantes, sempre revoltados contra uma sociedade que não lhes dá toda a importância que julgam merecer; (2) todos os insatisfeitos com qualquer coisa – esposas mal amadas, gays enfezados com a empáfia masculina, crianças rebeldes à autoridade paterna, etc.; (3) os marginais em geral: prostitutas, viciados, assassinos, estupradores e tutti quanti. Eram essas pessoas maravilhosas, e não os proletários, que tinham de ser organizadas para corromper o "sistema", enfraquecê-lo e destruí-lo por dentro. A influência de Marcuse, fundindo-se às propostas de "revolução cultural" inspiradas em Antonio Gramsci, foi tão vasta e profunda que hoje o marcusismo em ação já nem aparece associado ao nome de seu inventor: tornou-se o modo de ser natural e universal do movimento revolucionário por toda parte.

No Brasil, a íntima colaboração entre a esquerda revolucionária e o banditismo, da qual já se viam amostras esporádicas desde os anos 30, começou a existir de forma mais organizada durante o regime militar, quando os terroristas adestrados em Cuba, na Coréia do Norte e na China passaram a transmitir seus conhecimentos de estratégia e tática da guerrilha urbana aos delinqüentes comuns com os quais compartilhavam o espaço no Presídio da Ilha Grande, RJ. Foi daí que nasceram as mega-organizações criminosas, o Comando Vermelho e depois o PCC. A esperança que inspirou a sua fundação não foi decepcionada. Em poucos anos, o guru do narcotráfico carioca, William Lima da Silva, o "Professor", já podia se gabar de haver superado seus mestres:

"Conseguimos aquilo que a guerrilha não conseguiu: o apoio da população carente. Vou aos morros e vejo crianças com disposição, fumando e vendendo baseado. Futuramente, elas serão três milhões de adolescentes, que matarão vocês nas esquinas. Já pensou o que serão três milhões de adolescentes e dez milhões de desempregados em armas?"

O recorde anual de homicídios no Brasil, entre 40 e 50 mil mortos, segundo a ONU, e o crescimento acelerado do consumo de drogas neste país – enquanto diminui nos países em torno - mostram que esta segunda expectativa também não foi totalmente frustrada.

Mais tarde os terroristas subiram na vida, tornaram-se deputados, senadores, desembargadores, ministros de Estado, tendo de afastar-se de seus antigos companheiros de presídio. Estes não ficaram, porém, desprovidos de instrutores capacitados. A criação do Foro de São Paulo, iniciativa daqueles terroristas aposentados, facilitou os contatos entre agentes das Farc e as quadrillhas de narcotraficantes brasileiros – especialmente do PCC –, dos quais logo se tornaram mentores, estrategistas e sócios. Foi o que demonstrou o juiz federal Odilon de Oliveira, de Ponta Porã, MS, pagando por essa ousadia o preço de ter de viver escondido, como de fosse ele próprio o maior dos delinqüentes (v. http://www.eagora.org.br/arquivo/Farc-ensina-seqestro-a-PCC-e-CV-afirma-juiz/ e sobretudo http://odilon.telmeworlds.sg/), enquanto os homens das Farc transitam livremente pelo país, têm toda a proteção da militância esquerdista em caso de prisão e até são recebidos como hóspedes de honra por altos próceres petistas. (O secretário de Relações Internacionais do PT, Valter Pomar, diz que as Farc nem mesmo pertencem ao Foro de São Paulo.. Ele mente e sabe que mente. Dezenove anos de documentos oficiais do Foro provam isso acima de qualquer possibilidade de dúvida.)

Mesmo apoiada pela mais vasta e permanente campanha de mutação cultural, a articulação direta de bandidos e revolucionários não seria suficiente para produzir seus efeitos se, ao mesmo tempo, a própria estrutura jurídico-policial do Estado não fosse submetida a alterações destinadas a dificultar a atividade repressiva, fornecendo aos delinqüentes todas as vantagens na sua luta contra a sociedade. O desarmamento da população civil, a criminalização fácil das ações policiais mais corriqueiras, a leniência proposital para com os delinqüentes juvenis, a tolerância ou mesmo incentivo à violência nas escolas – tudo isso converge com a estratégia geral do movimento revolucionário em seu empenho de demolir as defesas da sociedade por meio da criminalidade triunfante.

O auxílio-reclusão – ou "Bolsa-Bandido", como o povo prefere chamá-lo – não tem nada de extravagante ou surpreendente. É apenas mais uma expressão da "imensa ternura para com os ferozes", o sentimento mais profundo e permanente da religião revolucionária, que de há muito já deixou de ser só um estado de alma e se transformou em temível instrumento de ação prática.

sexta-feira, outubro 16, 2009

Lula testa transposição de votos às margens do rio S. Francisco

por Raymundo Costa - Valor Econômico

No lugar onde circulavam caminhões basculantes e escavadeiras retiravam pedras gigantescas partidas e repartidas por perfuratrizes, na noite de quarta-feira, às 19h15 de ontem reinava o silêncio. Não havia um só trabalhador. Os potentes holofotes que iluminaram basculantes e perfuratrizes estavam parados ao lado da escavação na qual, na noite anterior, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva inspecionou o terceiro turno de trabalho do consórcio de empreiteiras que toca o lote 11 do projeto de transposição das águas do rio São Francisco.

Era uma viagem feita para emoldurar a imagem da candidata Dilma Rousseff a presidente. O fato de não haver trabalho ontem não significa que o consórcio encarregado do lote 11 não fará mais um turno, mas também é fato que as obras não estão sendo desenvolvidas no ritmo mostrado ao presidente, à sua candidata à sucessão e aos jornalistas que cobriram a viagem e outros que percorreram as obras um dia antes a convite da Presidência. Nas próximas semanas, é que será possível medir se a popularidade de Lula na região será suficiente para transferir os votos necessários para eleger sucessora a ministra da Casa Civil nas eleições de 2010.

Depois de 16 anos, Lula reeditou com Dilma as caravanas da cidadania de 1993, com as quais o presidente reiniciou o projeto do PT de chegar ao Palácio do Planalto, após a derrota para Fernando Collor numa eleição que dividiu o país, em 1989. Faz 20 anos. Agora, uma pesquisa qualitativa determinou cada detalhe da viagem. A sondagem em poder dos marqueteiros de Lula indicou que é grande o poder de transferência do presidente, quando o entrevistado é perguntado se votaria num candidato por ele indicado.

O resultado foi melhor que o esperado, inclusive em São Paulo, segundo fontes próximas ao jornalista João Santana, o Patinhas, responsável pela vitoriosa campanha de Lula nas eleições presidenciais de 2006 e que já trabalha em função da candidatura Dilma 2010. E nada melhor do que apresentar a ministra eleita de Lula para o melhor público do presidente, o Nordeste, junto com a obra cujo verbete sempre estará associado a Lula, em qualquer enciclopédia, se efetivamente for realizada - o fato é que vencidas as barreiras ambientais e jurídicas, o trabalho nos canteiros de obras foi acelerado.

Essa obra está sendo pensada desde 1847, discursou Lula para um pequeno grupo de trabalhadores que ouviu com impaciência o secretário-executivo do Ministério da Integração Nacional, João Reis Santana Filho, fazer uma longa descrição técnica da obra, sob um sol escaldante e temperatura acima dos 35 graus à sombra. O imperador Pedro II queria fazer essa obra. Eu estou falando de 200 anos. E eu resolvi fazer. Não por ser engenheiro e conhecer. É porque eu, com sete anos, carreguei pote de água na cabeça, eu sei o sacrifício.

As queixas que sobraram para o longo discurso de Santana também alcançaram o presidente. Pela razão oposta: falou pouco. O suficiente, no entanto, para mais uma vez se identificar com o povo nordestino, incentivar o imaginário da incompreensão de quem toma café da manhã, almoça, janta e toma água gelada com o nordestino sofrido, atacar adversários da transposição (convenientemente, o bispo Luiz Flávio Cappio participava de um evento fora da região) e para dizer que comanda uma das maiores obras em execução no planeta.

Lula se comparou a Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), o presidente que tirou os EUA da Grande Depressão de 1929. É uma das maiores obras em realização no mundo. Só tem igual quando o presidente Roosevelt pegou o lugar mais pobre dos EUA, chamado Vale do Tennessee, e transformou aquela região numa região produtiva, disse, para depois acrescentar que obras como a transposição servem para desenvolver a região: O Nordeste não precisa produzir mais pedreiro; o Nordeste tem que produzir engenheiro, disse o presidente.

Lula não percebeu, mas ao lado dele a ministra Dilma perdeu o equilíbrio. Refeita, bateu a poeira da calça e permaneceu o resto do discurso em pé, firme. O palco, armado por uma empresa do Recife que faz shows, festa de 15 anos e casamento tinha tantas armadilhas quanto as tendas e cercados construídos às pressas pelo consórcio que comanda as obras do lote 11, formado pelas empreiteiras OAS, Galvão, Coesa e Barbosa Mello.

Nem o consórcio nem o Ministério da Integração Nacional revelaram o custo dessas obras, um oásis no meio do sertão do Pajeú: a sala de imprensa e os quartos destinados ao presidente, ministros e jornalistas tinham ar condicionado e água corrente. O maior apartamento, com cama king size, entre ministros, governadores e deputados que integravam a comitiva era de Geddel Vieira Lima, titular da Integração Nacional. Só perdia para os de Lula e Dilma, próximos.

O desequilíbrio de Dilma não foi o único imprevisto da viagem, marcada por diferenças políticas desde o seu planejamento. Na véspera do embarque de Lula, ao amanhecer de quarta-feira, o governador da Bahia, Jaques Wagner, pernoitou em Brasília. Estava convencido de que seria o único baiano a desembarcar com Lula na Bahia, mas teve de engolir em seco a presença, no avião, de Geddel, que rompeu politicamente com o governador e ameaça disputar o cargo de Wagner em 2010.

Lula é amigo de Jaques Wagner, mas deixar Geddel de fora era difícil. Além de ministro responsável pelas obras do São Francisco, Geddel diz que apoiará a candidatura da ministra Dilma nas eleições presidenciais, independentemente do fato de concorrer contra o PT na Bahia. O ministro é figura-chave para a consolidação da aliança com o PMDB. Os petistas torceram o nariz, pois estão convencidos de que Geddel acabará no palanque do provável candidato tucano a presidente, José Serra.

No avião que partiu de Brasília, Geddel e Wagner trocaram gentilezas numa roda com Lula, Dilma, o ministro Franklin Martins e o deputado Ciro Gomes (PSB-CE), também pré-candidato a presidente. O governador de Pernambuco, Eduardo Campos, que preside o PSB, disse que o partido fez, até agora, tudo o que foi combinado com o presidente. E que mais adiante haverá uma nova conversa, definitiva. Ministros que acompanharam Lula, como Franklin Martins, segundo apurou o Valor, se dizem convencidos de que, no fim, os partidos da base aliada, como é o caso do PSB de Ciro, terão um candidato único em 2010, a ministra Dilma. Ciro insiste que será candidato.

No primeiro dia da caravana, um constrangimento: Lula desembarcou em Pirapora, município governado por um prefeito do DEM, e seguiu direto para Buritizeiro, município governado pelo PT. Aécio estava no aeroporto e posou para fotos com Lula e os outros dois presidenciáveis, assim como ele no PSDB: Dilma e Ciro. Mas não seguiu com Lula. O governador e o presidente, em conversa, gesticulavam como se discutissem. Aécio negou, dizendo que apenas falara sobre a Lei Kandir com o presidente. Ficou o mal-estar (ver reportagem ao lado).

Implicâncias políticas à parte, o fato é que as obras do Projeto São Francisco, um rio melhor, um rio para todos, o slogan que tomou o lugar da polêmica transposição também chamada de interligação, está andando e transformando as regiões onde está mais adiantado, como os lotes 11 e 1 visitados por Lula e Dilma. A obra tem dois eixos: o Eixo Norte, com 402 quilômetros, terá duas pequenas centrais hidrelétricas e levará água para Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte; o Eixo Leste, com 220 quilômetros, irrigará parte do sertão e as regiões do agreste de Pernambuco e da Bahia. Emprega atualmente 8 mil trabalhadores, ninguém ganha menos de R$ 600. O contraste entre o novo e o velho já é visível ao longo das obras.

Esse é o caso de Custódia, município localizado a pouco mais de 30 quilômetros do lote 11, que já atingiu 16% das obras previstas. Há dois anos, a cidade vivia pendurada no fundo de participação, algo em torno de R$ 900 mil. A arrecadação de ISS era de R$ 20 mil. Houve um salto gigantesco e hoje Custódia arrecada do tributo R$ 600 mil. O mesmo ocorre em Sertânia, o município na outra ponta do vértice formado com Custódia e o lote 11.

O empresário Iuri Gonçalves de Souza, 45 anos, é um exemplo do boom. Ele já está pensando em expandir com mais 30 apartamentos o hotel Macambira, que antes vivia vazio e hoje mantém a ocupação em 100%. Tive de hospedar gente em casa dos meus parentes na visita do presidente Lula, diz. Iuri também está no comando da segunda maior fábrica de sucos de fruta e extrato de tomate do Nordeste. Ele é obrigado a comprar tomate em Goiás, às vezes até na Espanha, para manter a fábrica, com 800 funcionários, a todo vapor. Ele compra em torno de 6 mil toneladas de frutas/safra e torce para que a transposição viabilize projetos de irrigação na região, o que faria baixar os preços que atualmente paga.

O agronegócio é um dos principais alvos dos críticos do projeto do São Francisco, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, criticados ontem por Lula. O bispo Cappio foi citado nominalmente. Não é difícil identificar o destinatários das palavras de Lula em uma entrevista às rádios do Nordeste: Ser contra lá na Tijuca, no Rio de Janeiro, na Avenida Paulista é fácil. Eu sou contra depois abro a geladeira e abro uma água Perrier marca de água francesa geladinha. Agora, vem pra carregar uma lata de água na cabeça com caramujo e tudo para depois tirar com uma canequinha uma água barrenta para beber.

Dias antes, o governador de São Paulo, José Serra, tucano líder das pesquisas de opinião sobre a eleição presidencial de 2010, fizera críticas a projetos de irrigação que visitara no Nordeste, região que se tornou também rotineira na agenda de pré-candidato do governador paulista.

Lula culpou novamente o Tribunal de Contas da União (TCU) pelo atraso de obras, Segundo o presidente, o problema hoje não é falta de dinheiro para as obras. Dinheiro tem, disse na entrevista aos radialistas, mas muitas vezes, o Tribunal de Contas diz que tem indícios de provas de sobrepreço, e aí para, aí você tem que fazer todo um processo. Muitas vezes, a empresa que perde a licitação entra na Justiça e para a obra. Fazer uma obra no Brasil hoje é muito difícil.

Didático, deu o exemplo de uma licitação para a compra de computadores para escolas públicas: Nós ficamos dois anos fazendo licitação para entregar 350 mil computadores às crianças, nas escolas. Demorou dois anos para que o Tribunal de Contas permitisse que houvesse a licitação. Agora, as pessoas não medem qual é o prejuízo para a nação e para as crianças se você ficar dois anos esperando.

Lula, como é costumeiro, atrasou a viagem em praticamente todas as etapas, mas pelo menos em uma ocasião incluiu de última hora um compromisso: foi na manhã de ontem, para propiciar aos fotógrafos e cinegrafistas imagens da implosão de um trecho de canal no lote 11. Mesmo local onde, na noite de quarta-feira, vistoriou o trabalho do terceiro turno. Perfuratrizes (ligadas quando o presidente estava prestes a chegar, depois de assistir no acampamento ao jogo entre Brasil e Venezuela), tratores e caminhões basculantes, davam a impressão de um ritmo frenético, acelerado no andamento das obras. No lote 11 trabalham 1,25 mil operários.

Ao contrário de 16 anos atrás, quando liderou as caravanas da cidadania, desta vez Lula desfrutou de confortos como ar condicionado, cama king size e água gelada. O presidente se deslocou entre os eixos do projeto São Francisco de helicóptero, o que, em algumas ocasiões, provocou situações embaraçosas. Quando decolou do lote 11, por exemplo, uma espessa nuvem de poeira encobriu os trabalhadores e populares que foram se despedir do presidente.

No chão, Lula várias vezes teve de percorrer estradas de terra batida. Antes, um carro-pipa molhava a estrada, para que não levantasse poeira quando o presidente passasse.

No Nordeste, Lula teve 77,10% dos votos, na eleição de 2006. Na Bahia e Pernambuco, os dois Estados visitados na Caravana do São Francisco, bateu nos 78% dos votos. É uma situação diferente das caravanas de 1993. Trata-se agora de um presidente quase idolatrado, na região, num esforço para eleger a candidata que impôs ao PT numa eleição que prefere plebiscitária, na base do nós contra eles.

quarta-feira, outubro 14, 2009

Será que Lula está testando seu teflon?

por José Neumanne

Desde que noço líder genial dos povos da floresta, Luiz Inácio Lulinha Paz e Amor o Cara da Silva, envergou a toga, travestindo-se ao mesmo tempo de supremo magistrado perdoador dos amigos e condenador dos adversários tornados inimigos e senador romano defensor do lema in dubio pro reo (na dúvida, a favor do réu), seus desesperados adversários tucanos e dêmicos se torturam com a imbaixável (apud Magri) popularidade dele. E foi aí que cunharam a teoria do teflon. Pois é. Sabe aquela película que é posta nas frigideiras para evitar que a fritura adira a elas? Sua Insolência também teria tal propriedade, pois sujeira nenhuma gruda nele. Por mais evidências que surjam à tona sobre a eventual participação de assessor próximo, amigo do peito, senhorio compadre ou filho prático, sua imagem sempre sai, impávido colosso, de quaisquer complicações, sem máculas nem sequer nódoas de gordura. Nem os dólares na cueca do irmão do companheiro o sujaram.

Lula comporta-se como se desfilasse despido em praça pública, mas num carro protegido por um permitido insulfilm (o teflon da indústria automobilística) que evita que o guri xereta lhe aponte o dedo e berre à multidão que o aplaude: O reizinho está nu. Mas, magnânimo, como seria um califa de mil e uma urnas abarrotadas de votos, Sua Insolência aventura-se às vezes a testar a consistência da camada protetora que mantém sua efígie imaculada, enfrentando desafios nunca antes arriscados por quaisquer antecessores mais temerários. É o caso de apostar nisso neste momento em que ele surfa sobre mais de 80% de aprovação do eleitorado a um ano de se tornar paraninfo da eleição da chefe de sua Casa Civil, Dilma Rousseff, que enfrentará o ogro favorito da oposição, José Serra, na sucessão presidencial. Nunca antes na história deste governo seu chefe desafiou com tanto destemor os favores dos fados benfazejos.

Sua Insolência mandou, por exemplo, que os generais da política econômica desafiassem o dogma da poupança intocável. E fez mais: permitiu que os econometecas do governo cometessem a suprema blasfêmia de fixar como limite da taxação R$ 50 mil, lembrando os Cr$ 50 mil da medida governamental mais impopular da História do Brasil: o confisco da poupança por seu antecessor Fernando Collor e pela ministra dele Zélia Cardoso de Melo, que dizem alguns engraçadinhos ter sido a primeira piada a se casar com um humorista. A única explicação próxima da lógica para a lambança da taxação da poupança seriam os arrepios de náusea que essa modalidade popular de investimento para evitar a corrosão da moeda provocam hoje nas instituições financeiras. Se essa hipótese de maledicentes da oposição for absurda, resta o dilema atroz provocado pelo anúncio da medida: para que mexer nesse vespeiro em véspera de eleição difícil com candidato pesado para enfrentar adversário favorito? Só pode ser a disposição de Lula de testar a consistência de seu teflon.

Ousada? Pode ser. Tanto que o próprio Lula, ao que tudo indica, mandou a turma da economia voltar atrás na medida, não por ser absurda, mas por não haver razões políticas para adotá-la. E ainda houve outras piores. Que tal essa de o governo não devolver o dinheiro, tomado antecipadamente das pessoas físicas, do Imposto de Renda? O próprio presidente disse que esse empréstimo compulsório sem devolução à vista não atende aos princípios elementares da economia, pois o governo quer é ver o cidadão com dinheiro no bolso para poder comprar, gastando mais. O comentário seria de uma lógica cristalina se não fosse o comentarista chefe do governo que tomou a medida antipática, apostando na certa no fato de a grande maioria do eleitorado, residente nas favelas que ardem e nos morros que deslizam, não ter um tostão guardado com o infidelíssimo depositário federal. E mais: lembrou que já houve similares batidas de carteira do contribuinte no passado. Quer dizer, então, que para a tunga - e só para a tunga - não vale o refrão nunca antes na História deste país, é? Tá bom!

Os exemplos de Lula testando seu teflon se multiplicam, não havendo aqui espaço para citar todos. Vamos apenas a mais um. O Ministério da Educação (MEC) contratou uma empresa privada para cuidar das provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que vinha reunindo cacife para substituir o vestibular como uma forma mais transparente e justa de selecionar universitários. Alguns funcionários temporários da gráfica carregaram a prova impressa debaixo da blusa e dentro da cueca, evidenciando o vazamento, do qual saíram prejudicados milhões de estudantes que se beneficiariam com a inclusão da nota do Enem para terem acesso à universidade. Chamar os autores da façanha de pés de chinelo seria exagerado: não chegam a sê-lo. A Polícia Federal (PF) detalhou as falhas da segurança da empresa contratada e elas atingem as raias do incrível. Ainda assim, a PF das operações espetaculares, a PF republicana que não dá mole para bandidos, forjou um perdão para o contratante de fazer corar frade de pedra. A fragilidade foi da empresa contratada, que ganhou a licitação. Não houve fragilidade do governo, disse seu superintendente, Fernando Duran.

A mesma Federal não teme prender banqueiros que promotores e juízes consideram inescrupulosos, mas não dá ao Ministério Público uma informação que o autorize a pedir a prisão de Valdomiro Diniz, o factótum da Casa Civil do tempo de Zé Dirceu, que confessou ter achacado um empresário da jogatina e passeia sua impunidade pelo Planalto Central. Uma pergunta que não quer calar é se essa dubiedade pode explicar o teflon de Lula. Outra é se o insulfilm que impede a visão da nudez real não resultaria da suspeição inepta da oposição, incapaz de apontar o dedo por temer que vejam que ele não está muito limpinho.

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde

terça-feira, outubro 13, 2009

O PT e a sétima arte

por Solange Amaral

Enganam-se aqueles que pensam que a sucessão presidencial, em 2010, será marcada pela modernidade na comunicação, seguindo o modelo de sucesso adotado pelo presidente Barack Obama, que inovou ao usar com competência as redes sociais da internet. O governo federal e o PT sabem que o grosso do seu eleitorado nunca ouviu falar em Twitter ou Facebook, e por isso apostarão suas fichas num aparelho criado pelos irmãos Lumière, no século 19, batizado de cinematógrafo.

Peço licença aos patrulheiros de plantão, mas a verdade é que o filme "Lula, o filho do Brasil", que será lançado no ano da eleição, é o trunfo que o governo precisa para eleger até um poste. Trata-se de um filme-exaltação, contando o drama de um homem igual a milhões de outros brasileiros que vivem em situação de miséria no país. O problema é que o filme conta apenas a verdade que interessa ao Planalto, omitindo os desvios éticos do protagonista, já como presidente, como a compra de parlamentares no escândalo do Mensalão, o aparelhamento de organizações sociais e os acordos para consolidar sua base política.

Será que o Planalto, através do seu diligente ministro da Justiça, Tarso Genro, permitiria a exibição de um documentário, no estilo Michael Moore, contando os bastidores dos oito anos do governo petista? O público, que será brindado com cenas lacrimosas de um retirante que se tornou presidente, também tem interesse em conhecer os métodos usados pelo "Cara" para domesticar a UNE, o MST e as centrais sindicais.

O cruzamento de imagens de arquivo, onde Lula chamava de corruptos aqueles que hoje são seus aliados, é reflexão necessária sobre uma realidade que não pode ser omitida, para o filme ter começo, meio e fim.

Para quem não está convencido de que "Lula, o filho do Brasil" é um panfleto eleitoral, o próprio presidente dá a pista sobre a verdade que se esconde no escurinho do cinema. Com o filme pronto, sua meta é criar salas de exibição nas periferias do Brasil. A proposta de criação do Vale Cultura, encaminhada com pedido de urgência urgentíssima ao Congresso, é excelente. Mas por uma questão de respeito e equilíbrio do jogo democrático, é inaceitável que o acesso à cultura seja impregnado por intenções político-eleitoreiras.

A senadora Marina Silva e os governadores José Serra e Aécio Neves rendem excelentes filmes. Nas mãos habilidosas de um cineasta, qualquer história toca a sensibilidade de um povo.

"Lula, o filho do Brasil" não foi feito para emocionar. A meta é eleger sua candidata em 2010.

sexta-feira, outubro 02, 2009

El Gran Circo

por Nelson Motta aqui

Eu confesso: não consigo viver sem o Gran Circo Latinoamericano, sem seus palhaços e dinossauros, sem seus domadores de multidões com seus trajes típicos, sem suas bravatas retumbantes. É diversão garantida. Leio diariamente jornais de Caracas, La Paz e Buenos Aires, e não perco as “Reflexões do companheiro Fidel” no “Granma”. No picadeiro digital, o velho apresentador do circo, em vez do “respeitável público”, saúda os “compañeros revolucionários”. E passa o microfone ao seu sucessor Hugo Chávez.

Aos colegas da Unasul e ao mundo, Chávez denuncia com provas cabais um plano de dominação do Império sobre a América Latina a partir da Colômbia, como se fossem documentos secretos do Pentágono capturados pelos serviços de inteligência bolivarianos. Era só um velho estudo acadêmico, publicado na internet. Um sketch de comédia à altura de um “Zorra Total”, só que menos sofisticado.

Logo depois, Evo “Zacarias” Morales denuncia que os americanos oferecem ajuda para o combate ao narcotráfico com o único objetivo de desmoralizar as Forças Armadas da região, que não teriam competência para combatê-lo sozinhas. E, por desprezarem as nossas forças guerreiras, são desafiados, de punhos cerrados: “Que vengan los gringos!”

O público grita “Pátria o muerte”! Que filme de Cantinflas ou Chapolin, que comédia dos Trapalhões pode ser mais cômica? Pena que, pelas bravatas e trapalhadas do Gran Circo Lationamericano, sempre morra muita gente inocente.

Agora, com a entrada em cena do quase inverossímil “Mel” Zelaya e seu chapelão, o Gran Circo vive um grande momento, palhaços gritam bravatas, domadores de multidões bradam seus slogans e palavras de ordem, malabaristas da lógica e trapezistas da democracia as usam para tentar destruir a democracia e a lógica.

No picadeiro central, a luta do século: O Perfeito Idiota Latinoamericano enfrenta o Politicamente Correto Norteamericano. É um telecatch com tudo combinado e ensaiado, e no final, os adversários descobrem que são irmãos e se abraçam. E juram lutar juntos contra o capitalismo, pelo povo. A multidão delira, o circo pega fogo.

quarta-feira, setembro 30, 2009

A única saída para o Brasil

Editorial do Estadão

Desde que o presidente deposto Manuel Zelaya entrou no recinto ocupado pela embaixada brasileira durante seu governo, como hóspede e não como asilado político, ninguém consegue impedir que ele faça das antigas instalações diplomáticas uma plataforma política da insurreição. Ao receber Zelaya, naquelas condições, o governo brasileiro, que não mantém relações com o atual governo, já cometeu um grave erro diplomático, pois não se tratava de um político proscrito que buscava refúgio para escapar da perseguição de seus adversários, mas de um presidente deposto e expatriado que voltava a seu país clandestinamente. Só com isso, passou a militar ativamente a favor de uma das duas facções em que se divide Honduras - aquela protegida pelas imunidades mantidas pelo atual governo à embaixada que deixara de ter esse status desde que o embaixador brasileiro dali se retirou. Esse erro foi agravado desde o momento em que ficou comprovado que o controle interno do antigo recinto da embaixada havia escapado dos funcionários brasileiros encarregados de zelar pela antiga sede da missão diplomática e era exercido plenamente por Zelaya e seus seguidores.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o chanceler Celso Amorim, mais de uma vez, pediram a Zelaya que se abstivesse de fazer a propaganda da insurreição enquanto estivesse no recinto da antiga embaixada. Não foram atendidos. No sábado, obedecendo a instruções estritas, o diplomata Lineu Pupo de Paula voltou a transmitir a Zelaya o pedido do governo brasileiro para não fazer da antiga embaixada uma central de agitação política. Mais uma vez não houve resposta.

Manuel Zelaya é o hóspede inconveniente que se comporta como dono da casa. Ali ele dispõe de tamanha liberdade de ação que lhe permite fomentar uma insurreição política de dentro dela, já que o governo que o depôs ainda respeita o recinto como sede de uma missão diplomática.

Mas é cada vez maior o risco de esse respeito ser substituído por ações violentas, uma vez que o governo de facto de Honduras, obviamente, não assiste a tudo isso de braços cruzados. No domingo, decretou estado de sítio por 45 dias, estabelecendo restrições, principalmente, aos direitos de ir e vir e de livre manifestação. E ordenou às forças de segurança que reprimam com energia qualquer manifestação popular não autorizada.

Nenhum país pode tolerar que uma embaixada estrangeira seja utilizada como base de comando para gerar violência e romper a tranquilidade, como o senhor Zelaya está fazendo desde sua chegada ao território nacional, afirmou nota oficial do governo de facto. Em vista disso, foi dado ao governo brasileiro um ultimato para que defina dentro de dez dias o status do presidente deposto. Se de asilado, receberá salvo-conduto para ser transportado para o Brasil. Se de abrigado, o governo de facto retirará os privilégios diplomáticos da embaixada brasileira, que passará a ser considerada um simples escritório privado.

O presidente Lula, que estava na Venezuela, repeliu o ultimato. Apresentando-se como o paladino de um país da América Central que nunca fez parte das prioridades da política externa brasileira, o presidente fez exatamente aquilo que o ex-chanceler do México Jorge Castañeda recomendava em entrevista no Estado de domingo que o governo brasileiro não fizesse: um país que tem aspirações a ser um líder mundial não pode aparentar cumplicidade com radicais. O conselho chegou tarde. O presidente Lula não apenas caiu na armadilha armada por Hugo Chávez em Honduras, como foi procurar apoio para sua luta pela democracia na América Central, numa reunião de cúpula de países sul-americanos e africanos realizada na Venezuela na qual pontificavam lutadores da democracia do estofo de Robert Mugabe, presidente há 30 anos do Zimbábue, e de Muamar Kadafi, ditador há 40 anos da Líbia. Obteve-o por unanimidade.

Em compensação, mereceu crítica do representante dos Estados Unidos no Conselho Permanente da OEA, pelo apoio de seu governo ao comportamento irresponsável e tolo do presidente deposto Manuel Zelaya.

A única saída digna para o governo brasileiro da armadilha em que se meteu parece ser a concessão de asilo a Zelaya em território nacional.

O problema é convencê-lo aceitar essa solução.

segunda-feira, setembro 28, 2009

Pantomima

por Denis Lerrer Rosenfield*

A política exterior brasileira está enveredando, perigosamente, pelos caminhos bolivarianos, ditatoriais, que rompem com décadas de neutralidade e não ingerência em assuntos de outros países.

O caso de Honduras é, particularmente, aterrador, pois, em nome da democracia totalitária, estão sentando as bases de supressão da liberdade.

Façamos, primeiro, um breve retrospecto.

Lula e Amorim realizaram, nos últimos anos, périplos por países africanos, que têm em comum o menosprezo pela democracia e pelas liberdades em geral. Trata-se de países ditatoriais, que foram considerados pelo nosso governo como dignos parceiros de reconhecimento internacional. O exterrorista e ditador Kadhafi chegou a ser considerado como um irmão. Irmão de quê? De empreitadas ditatoriais, de uma pessoa há décadas no poder e exercendo uma dominação inflexível sobre o seu próprio povo.

Seguindo a mesma linha, a diplomacia brasileira permaneceu silenciosa sobre o genocídio do Sudão, onde mais de 200.000 pessoas foram assassinadas, não contabilizando aqui as pessoas esquartejadas, mutiladas e estupradas.

Em nome do quê? Da não ingerência nos assuntos de outros Estados.

Qual foi, então, o recado? Assassinar o seu próprio povo pode, em nome da soberania interna.

O caso do Irã, do “presidente? Ahmadinejad, foi — e continua — escandaloso.

As eleições foram fraudadas, o povo iraniano foi à rua, até alguns aiatolás já não suportam o despotismo em vigor naquele país, pessoas foram torturadas e assassinadas em prisões. O governo brasileiro se contentou em dizer que se tratava de um mero jogo de futebol, em que os perdedores tinham ficado insatisfeitos.

Na ONU, Lula, agora, reiterou a mesma posição de menosprezo aos direitos humanos. Temos uma prova tangível da podridão dessa esquerda que traiu, inclusive, os ideais de Marx. Fechou questão com o islamismo totalitário. Como se não bastasse, um “presidente?, que se caracteriza pelo antissemitismo militante, propugnando pela eliminação do Estado de Israel, é convidado a visitar o Brasil.

Provavelmente, em nome de uma qualquer "solidariedade" internacional, a dos déspotas.

Frente a esse quadro, que é um quadro de horror, a "nossa" diplomacia, ou melhor, a "deles", a dos bolivarianos com afinidades totalitárias, patrocina e é conivente com a volta de Zelaya a Honduras. Só um tolo acreditaria nas palavras de "diplomatas" (sic!), segundo os quais o Brasil só soube do ingresso do ex-presidente bolivariano, de tendências golpistas "democráticas", quando já tinha ingressado naquele país. Ainda conforme o nosso "chefe" do Itamaraty, deulhe "boas-vindas", oferecendo-lhe a hospitalidade brasileira. Pelo menos, Zelaya e sua mulher foram "honestos" ao agradecerem ao chanceler Amorim e ao presidente Lula o seu apoio.

Para acreditar na versão oficial, é necessário acreditar em duendes. Os cidadãos brasileiros são tidos por crédulos, mal-informados ou, melhor, tolos. Nada bate com nada nas versões oferecidas, salvo o seu objetivo de dar o máximo de sustentação ao projeto bolivariano do golpista fracassado Zelaya. O que é para eles insuportável é que ações inconstitucionais tenham sido abortadas pela Corte Suprema daquele país, pelo Legislativo e pelos militares. Querem encobrir tudo isto, dizendo que se tratou de um "golpe militar", que a América Latina não pode mais suportar.

O que pode a América Latina suportar? Deve suportar a subversão da democracia por meios democráticos, com destaque para eleições e assembleias constituintes. Deve suportar a eliminação da divisão de poderes, com líderes máximos solapando progressivamente todas as instituições representativas.

Deve suportar a eliminação da liberdade de imprensa, num cenário liberticida que relembra a vereda totalitária de uma esquerda, que já nem mais sabe o significado de valores universais.

As palavras começam a perder o seu sentido, ganhando um novo, que guarda uma remota ligação com o seu significado original.

A diplomacia brasileira fala que concedeu refúgio a Zelaya. Como assim? Ele estava sendo perseguido dentro de seu próprio país? Precisa ele de asilo? Ora, trata-se de uma pessoa que foi obrigada a deixar o poder por conspirar contra a Constituição. Por isto, foi ele conduzido para fora de seu próprio país, sem que tivesse sofrido dano físico, nem tenha estado a sua vida em perigo. O que a diplomacia brasileira fez foi patrocinar a sua volta a Honduras, em aliança com Hugo Chávez, que reconheceu ter organizado toda a operação.

O Brasil atrelou-se à Venezuela.

A diplomacia brasileira está se ingerindo nos assuntos internos de outro país, numa escancarada violação da Constituição brasileira, das Cartas da OEA e da ONU.

Numa completa tergiversação, o chanceler Amorim pede que o governo de Honduras não pratique nenhuma violência contra o bolivariano Zelaya.

Ora, é a diplomacia brasileira que está suscitando violência e tumulto naquele país. Os mortos já se contam. Os bolivarianos estão entrincheirados na embaixada, a partir da qual fazem manifestações públicas e organizam os seus partidários para levar a cabo o seu projeto de subversão da democracia. Como são politicamente corretos, dizem estar defendendo a democracia.

Na subversão do sentido das palavras, clamam que não reconhecerão as eleições em curso. Como assim? Por que elas estavam previstas na Constituição, antes mesmo da deposição de Zelaya? Não faz o menor sentido! As eleições seguem um cronograma constitucional, num regime de plenas liberdades, em particular de imprensa e partidária. É precisamente isto que se torna insuportável para esses socialistas autoritários.

Os países que parecem encantados com os cantos bolivarianos, como os EUA e os países europeus, estão cortando as fontes de financiamento deste pequeno país resistente. Enquanto isto, Lula negocia com Obama o fim do embargo comercial a Cuba. Deve estar fazendo isto em nome da democracia!

*DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

terça-feira, setembro 15, 2009

Geisel e Lula

por Carlos Alberto Sardenberg

Não foi por acaso que parte da esquerda brasileira se encantou com a política econômica do presidente Ernesto Geisel, na década de 70. O general, que trazia uma bronca dos americanos, a qual caía muito bem para o figurino, tinha uma visão de economia muito ao gosto do que se chamou de ala desenvolvimentista da América Latina: o Estado comanda as atividades econômicas, investindo, financiando, subsidiando, autorizando (ou vetando) os negócios e a atuação de empresas, determinando ainda quais setores devem ser estimulados. Mais ainda: com a força das estatais e seus monopólios, o governo organizava empresas para atuar em determinadas áreas.

O presidente Geisel, como se vê, tinha mais poderes do que o presidente Lula. Todos os setores importantes da economia estavam nas mãos de estatais, de modo que o controle era mais direto. Além disso, havia o AI-5, instrumento de poder absoluto. Quando o presidente dizia a um empresário ou banqueiro o que deveria fazer, a proposta, digamos assim, tinha uma força extra.

Lula, mesmo com menos poderes, tenta fazer do mesmo modo. Geisel era o dono da Vale. Lula não é, mas pressiona os atuais controladores da mineradora para que ajam deste ou daquele modo.

Geisel montou empresas, como as famosas companhias da área petroquímica, tripartites, constituídas por uma companhia estrangeira, uma nacional privada e uma estatal, na base do um terço cada. Aliás, convém notar: não faltaram multinacionais interessadas. O capital não se move por ideologia, mas por… dinheiro. Devia ser um bom negócio entrar num país sem competição e com apoio do governo local.

Do mesmo modo, as multinacionais do petróleo vão topar (ou não) o novo modelo de exploração do pré-sal não por motivos políticos, mas pela possibilidade de ganhar (ou não) dinheiro. E pela segurança do negócio.

De certo modo, o ambiente todo era mais seguro no tempo de Geisel. Não havia como se opor às determinações do presidente. Fechado o negócio com o seu governo, estava fechado. Com o Legislativo, o Judiciário, partidos e imprensa manietados, como se opor ou mesmo discutir?

Hoje, o presidente Lula tem as limitações de um regime democrático, além de seu poder econômico ter sido muito reduzido depois das privatizações e da rearrumação da ordem econômica. Ainda assim, tem instrumentos poderosos, como o BNDES, e a possibilidade de manipular a carga tributária, aumentando e reduzindo conforme seu interesse neste ou naquele setor.

Ora, o financiamento do BNDES, por ser subsidiado pelo contribuinte brasileiro, é o mais vantajoso da praça. Num país de carga tributária tão elevada, qualquer redução dá uma vantagem enorme ao setor beneficiado. Assim, em vez de se concentrar em seu negócio, pode ser mais útil para o empresário fazer o lobby em Brasília.

De certo modo, Lula até organizou essa ida a Brasília, ao pôr representantes dos empresários no Conselhão (o Conselho de Desenvolvimento) e em diversos comitês, como este mais recente, de avaliação da crise.

Geisel fortaleceu a Petrobrás, da qual, aliás, havia sido presidente. Verdade que a esquerda não gostou dos tais contratos de risco de exploração de petróleo, criados pelo presidente numa tentativa de atrair mais capitais. Mas não funcionou. O que funcionou foi a enorme expansão da Petrobrás, que então já era dona exclusiva do monopólio do petróleo.

Geisel levou-a à petroquímica, ao comércio externo e ao varejo dos postos de gasolina. Com privilégios. Geisel reservou para a estatal a instalação de postos de gasolina em determinadas estradas e áreas.

O presidente Lula trata de devolver à Petrobrás privilégios que perdeu com a Lei do Petróleo de 1997.

Outra coisa comum aos dois governos é o apreço por obras grandiosas. Não é por acaso que Lula tenta retomar alguns programas de Geisel, como as usinas nucleares.

Mas há aí uma grande diferença. Geisel fazia, punha os projetos na rua, como a Ferrovia do Aço, o programa nuclear (feito com os alemães, para bronca dos americanos) e tantos outros. Mais fácil, claro: não tinha licença ambiental, não tinha Ministério Público, nem sindicatos, nem juízes para parar obras na base de liminares.

Hoje, Lula tenta driblar esses “estorvos”, mas vai tudo mais devagar.

E - quer saber? - pode até ser bom para o País. O estrago será menor. Porque, esse é o resultado geral, o governo Geisel deixou uma ampla coleção de cemitérios fiscais e empresariais. Enquanto o Brasil conseguiu financiamento externo - com os bancos internacionais passando para os países em desenvolvimento os petrodólares, a juros baratos -, o modelo ficou de pé.

Com a crise mundial dos anos 70 - com inflação e recessão, consequência da alta dos preços do petróleo, de alimentos e, em seguida, do choque de juros - a fonte secou e o Brasil quebrou.

Resultaram estatais tão grandes quanto ineficientes. Lembram-se das teles? Havia a Telebrás e uma estatal federal em cada Estado. E uma linha fixa de telefone, em São Paulo, custava US$ 5 mil.

Resultaram também empresas mistas e privadas absolutamente ineficientes, as produtoras das carroças, que só vendiam alguma coisa aqui dentro porque era proibido importar. De computadores e carros a macarrão. Só quando o comércio externo começou a ser aberto, no governo Collor, a gente soube o que era um verdadeiro espaguete.

Não foi por azar que tivemos uma década perdida, com inflação descontrolada, contas públicas falidas, dívida externa não financiável e empresas incapazes, que só existiam à sombra do dinheiro e da proteção do Estado. Ou seja, com o dinheiro do contribuinte.

Convém pensar nisso quando Lula, por exemplo, força o Banco do Brasil a ampliar o crédito e reduzir os juros na marra ou quando leva o BNDES a financiar cada vez mais bilhões. Os bancos públicos já quebraram mais de uma vez. O Brasil também.

quarta-feira, setembro 09, 2009

Um soviete ambiental em articulação

por Denis Rosenfield
Várias medidas estão aumentando o controle sindical. A revisão dos índices de produtividade, por exemplo, dará mais força ao MST.

No dia 8 de agosto a CUT e o Ministério do Meio Ambiente assinaram um Protocolo de Entendimento que dará aos sindicatos e às representações nos locais de trabalho "o poder de participar dos projetos de política ambiental no interior das empresas de todos os ramos de atividade". Na mesma ocasião, o ministro Carlos Minc também anunciou uma portaria governamental, assinada pelo Meio Ambiente e pelo Ibama, que garante aos sindicatos "participação direta na elaboração e aprovação dos Relatórios de Impacto Ambiental (RIMA) e do licenciamento para novos empreendimentos."

Temos aí dois movimentos simultâneos: a) o de um Protocolo de Entendimento entre a CUT e o Ministério do Meio Ambiente, inaugurando a participação sindical nos assuntos ambientais. Segundo os termos desse protocolo, essa central sindical e, logo, as demais, passarão a ter ingerência nos assuntos empresariais relativos ao meio ambiente; b) o Ministro Carlos Minc também assinou um projeto de portaria governamental, junto com o Ibama, que concederá às centrais sindicais o "direito" a essa participação.

Observe-se que a portaria em questão frisa que sua abrangência diz respeito às "empresas de todos os ramos de atividade". Ou seja, na criação de qualquer empresa, além dos já demorados trâmites burocráticos, será necessário consultar os sindicatos e suas centrais. Em vez de maior agilidade administrativa, temos a criação de uma nova instância, que é, ademais, de caráter eminentemente político e sindical.

Se essa portaria vier a ser publicada, será criada uma espécie de soviete ambiental. Os dois textos, a portaria e o protocolo, ressaltam a participação social e sindical, conferindo a esses conselhos, que seriam então formados, poder de ingerência e decisão dentro das próprias empresas. A questão é basicamente política e só aparentemente ambiental, porque se trata da instituição, dentro da própria empresa, de um poder sindical com poder de dizer "não" a um novo empreendimento empresarial. Poderia apresentar-se como defendendo o meio ambiente, quando, na verdade, estará somente consolidando o seu próprio poder sindical.

A experiência histórica mostra que esse tipo de conselho, na ex-União Soviética e nos estados socialistas e comunistas que seguiram essa orientação, foi o embrião de um poder que passou a controlar as empresas. Na época, chamavam-se "sovietes" ou "conselhos de trabalhadores", que foram, progressivamente, controlados pelas centrais sindicais e pelos governos e partidos – que controlavam, por sua vez, essas mesmas centrais sindicais.

O protocolo de acordo prevê que os sindicatos "poderão analisar se as empresas, de todos os ramos de atividade, têm políticas ambientais adequadas para a saúde de seus trabalhadores e para as comunidades no entorno e propor soluções tecnológicas e produtivas mais limpas".

Observe-se: a) a apresentação politicamente correta do problema, de forma a melhor passar sua mensagem junto à opinião pública, que é aqui seu alvo; b) com tal objetivo, o protocolo cria um maior embaraço administrativo porque, para além das instâncias já existentes que cuidam da saúde do trabalhador, e que são suficientemente presentes, teríamos ainda uma outra, duplicando o mesmo trabalho. Além dos Ministérios da Saúde e do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho, entre outros, teríamos, agora, o Ibama, os sindicatos e as confederações sindicais. Um novo empreendimento seria facilmente inviabilizado.

O projeto de portaria conjunta Ministério do Meio Ambiente/IBAMA frisa que o Ibama deverá submeter o licenciamento ambiental à "central sindical à qual o sindicato da categoria majoritária está filiada" (Art. 3º), da mesma maneira que deverá repetir o mesmo procedimento quando da Licença de Instalação. Logo, todo o processo de licenciamento ambiental e de instalação efetiva das empresas ficaria subordinado ao – estando na decisão do – Poder Sindical, que passaria a legislar em questões ambientais. Imaginem os trâmites burocráticos e as pressões políticas daí advindas!

Não se trata de uma mera consulta, mas de um poder de voto – e de veto – conferido a esses sindicatos e a essas centrais. No Protocolo de Entendimento, é dito claramente que se trata de aumentar o "controle social", eufemismo para caracterizar o Poder Sindical.

O Protocolo de Entendimento parte de um diagnóstico seu, de crise do capitalismo, para justificar esse maior controle social, apresentado como contraparte de um maior papel a ser exercido pelo Estado. Em seu considerando inicial, está escrito: "1. que o modelo de desenvolvimento vivenciado pelo planeta nas últimas décadas, de superexploração de mão de obra e destruição do meio ambiente, levou à situação de hoje: crise alimentar, social, energética, ambiental e financeira, e que a melhor resposta é a recuperação do papel do Estado como regulador da economia e promotor do desenvolvimento sustentável". Ou seja, uma crise cíclica do capitalismo, sobretudo na área financeira, é aproveitada para aumentar o controle social, o que é uma forma de engessar ainda mais as empresas, vindo, inclusive, a prejudicar sua recuperação. E tudo isto é apresentado sob a forma de uma "recuperação do papel do Estado".

Nada disso é casual. Há um conjunto de medidas tomadas nos últimos anos que vai no sentido de um controle social que significa, na verdade, controle sindical. As centrais sindicais passaram a usufruir do imposto sindical, tornando-se ainda mais atreladas ao Estado. O rodízio até então observado na presidência do Codefat não foi mais seguido, com as confederações empresariais mais importantes abandonando esse conselho, que passa a responder diretamente ao Ministro do Trabalho.

Os índices de produtividade são objeto de revisão, conferindo, assim, um enorme poder ao MST, que aumentará o ritmo e a abrangência de suas invasões. Trata-se de ações articuladas, que procuram cercear a liberdade econômica e relativizar o direito de propriedade.

Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRS

terça-feira, setembro 08, 2009

Dois códigos morais

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 8 de setembro de 2009

A entrevista do Cabo Anselmo ao programa “Canal Livre” (TV Bandeirantes, 26 de agosto, é um dos documentos mais importantes sobre a história das últimas décadas e mereceria uma análise detalhada, que não cabe nas dimensões de um artigo de jornal. Limito-me, portanto, a chamar a atenção do leitor para um detalhe: o confronto do entrevistado com os jornalistas foi, por si, um acontecimento revelador, talvez até mais que o depoimento propriamente dito.

Logo de início, o apresentador Boris Casoy perguntou se Anselmo se considerava um traidor. Ele aludia, é claro, ao fato de que o personagem abandonara um grupo terrorista para transformar-se em informante da polícia. Para grande surpresa do jornalista, o entrevistado respondeu que sim, que era um traidor, que traíra seu juramento às Forças Armadas para aderir a uma organização revolucionária. A distância entre duas mentalidades não poderia revelar-se mais clara e mais intransponível. Para a classe jornalística brasileira em peso, o compromisso de um soldado para com as Forças Armadas não significa nada; não há desdouro em rompê-lo. Já uma organização comunista, esta sim é uma autoridade moral que, uma vez aceita, sela um compromisso sagrado. Nenhum jornalista brasileiro chama de traidor o capitão Lamarca, que desertou do Exército levando armas roubadas, para matar seus ex-companheiros de farda. Traidor é Anselmo, que se voltou contra a guerrilha após tê-la servido. Anselmo desmontou num instante a armadilha semântica, mostrando que existe outra escala de valores além daquela que o jornalismo brasileiro, com ares da maior inocência, vende como única, universal e obrigatória.

O contraste mostrou-se ainda mais flagrante quando o jornalista Fernando Mitre, com mal disfarçada indignação, perguntou se Anselmo não poderia simplesmente ter abandonado a esquerda armada e ido para casa, em vez de passar a combatê-la. Em si, a pergunta era supremamente idiota: ninguém – muito menos um jornalista experiente – pode ser ingênuo o bastante para imaginar que uma organização revolucionária clandestina em guerra é um clube de onde se sai quando se quer, sem sofrer represália ou sem entregar-se ao outro lado. Conhecendo perfeitamente a resposta, Mitre só levantou a questão para passar aos telespectadores a mensagem implícita do seu código moral, o mesmo da quase totalidade dos seus colegas: você pode ter as opiniões que quiser, mas não tem o direito de fazer nada contra os comunistas, mesmo quando eles estão armados e dispostos a tudo. Ser anticomunista é um defeito pessoal que pode ser tolerado na vida privada: na vida pública, sobretudo se passa das opiniões aos atos, é um crime. Não que todos os nossos profissionais de imprensa sejam comunistas: mas raramente se encontra um deles que não odeie o anticomunismo como se ele próprio fosse comunista. Essa afinidade negativa faz com que, no jornalismo brasileiro, a única forma de tolerância admitida seja aquela que Herbert Marcuse denominava “tolerância liberdadora”, isto é: toda a tolerância para com a esquerda, nenhuma para com a direita.

Mais adiante, ressurgiu na entrevista o episódio do tribunal revolucionário que condenara Anselmo à morte. Avisado por um policial que se tornara seu amigo, Anselmo fugira em tempo, enquanto os executores da sentença, ao chegar à sua casa para matá-lo, eram surpreendidos pela polícia e mortos em tiroteio. De um lado, os entrevistadores, ao abordar o assunto, tomavam como premissa indiscutível a crença de que Anselmo fora responsável por essas mortes, o que é materialmente absurdo, já que troca o receptor pelo emissor da informação. De outro lado, todos se mostraram indignados – contra Anselmo – de que no confronto com a polícia morresse, entre outros membros do tribunal revolucionário, a namorada do próprio Anselmo. Em contraste, nenhum deu o menor sinal de enxergar algo de mau em que a moça tramasse com seus companheiros a morte do namorado. Entendem como funciona a “tolerância libertadora”?

A quase inocência com que premissas esquerdistas não-declaradas modelam a interpretação dos fatos na nossa mídia mostra que, independentemente das crenças conscientes de cada qual, praticamente todos ali são escravos mentais da auto-idolatria comunista.

Ao longo de toda a conversa, os jornalistas se mantiveram inflexivelmente fiéis à lenda de que os guerrilheiros dos anos 70 eram jovens idealistas em luta contra uma ditadura militar, como se não estivessem entrevistando, precisamente, a testemunha direta de que a guerrilha fôra, na verdade, parte de um gigantesco e bilionário esquema de revolução comunista continental e mundial, orientado e subsidiado pelas ditaduras mais sangrentas e genocidas de todos os tempos. Anselmo colaborou com a polícia sob ameaça de morte, é certo, mas persuadido a isso, também, pela sua própria consciência moral: tendo visto a verdade de perto, perdeu todas as ilusões sobre o idealismo e a bondade das organizações revolucionárias – aquelas mesmas ilusões que seus entrevistadores insistiam em repassar ao público como verdades inquestionáveis – e optou pelo mal menor: quem, em sã consciência, pode negar que a ditadura militar brasileira, com todo o seu cortejo de violências e arbitrariedades, foi infinitamente preferível ao governo de tipo cubano ou soviético que os Lamarcas e Marighelas tentavam implantar no Brasil? Ao longo de seus vinte anos de governo militar, o Brasil teve dois mil prisioneiros políticos, o último deles libertado em 1988, enquanto Cuba, com uma população muito menor, teve cem mil, muitos deles na cadeia até hoje, sem acusação formal nem julgamento. A ditadura brasileira matou trezentos terroristas, a cubana matou dezenas de milhares de civis desarmados. Evitar comparações, isolar a violência militar brasileira do contexto internacional para assim realçar artificialmente a impressão de horror que ela causa e poder apresentar colaboradores do genocídio comunista como inofensivos heróis da democracia, tal é a regra máxima, a cláusula pétrea do jornalismo brasileiro ao falar das décadas de 60-70. Boris Casoy, Fernando Mitre e Antonio Teles seguiram a norma à risca. Desta vez, porém, o artificialismo da operação se desfez em pó ao chocar-se contra a resistência inabalável de uma testemunha sincera.

Conhecendo as muitas complexidades e nuances da sua escolha, Anselmo revelou, no programa, a consciência moral madura de um homem que, escorraçado da sociedade, preferiu dedicar-se à meditação séria do seu passado e da História em vez de comprazer-se na autovitimização teatral, interesseira e calhorda, que hoje rende bilhões aos ex-terroristas enquanto suas vítimas não recebem nem um pedido de desculpas.

Moral e intelectualmente, ele se mostrou muito superior a seus entrevistadores, cuja visão da história das últimas décadas se resume ao conjunto de estereótipos pueris infindavelmente repetidos pela mídia e consumidos por ela própria. O fato de que até Boris Casoy, não sendo de maneira alguma um homem de esquerda, pareça ter-se deixado persuadir por esses estereótipos, ilustra até que ponto a pressão moral do meio tornou impossível a liberdade de pensamento no ambiente jornalístico brasileiro.

Comente este artigo no fórum:

http://www.seminariodefilosofia.org/forum/15



















Dois códigos morais

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 8 de setembro de 2009

A entrevista do Cabo Anselmo ao programa “Canal Livre” (TV Bandeirantes, 26 de agosto, http://www.averdadesufocada.com/index.php?option=com_content&task=view&id=2267&Itemid=34) é um dos documentos mais importantes sobre a história das últimas décadas e mereceria uma análise detalhada, que não cabe nas dimensões de um artigo de jornal. Limito-me, portanto, a chamar a atenção do leitor para um detalhe: o confronto do entrevistado com os jornalistas foi, por si, um acontecimento revelador, talvez até mais que o depoimento propriamente dito.

Logo de início, o apresentador Boris Casoy perguntou se Anselmo se considerava um traidor. Ele aludia, é claro, ao fato de que o personagem abandonara um grupo terrorista para transformar-se em informante da polícia. Para grande surpresa do jornalista, o entrevistado respondeu que sim, que era um traidor, que traíra seu juramento às Forças Armadas para aderir a uma organização revolucionária. A distância entre duas mentalidades não poderia revelar-se mais clara e mais intransponível. Para a classe jornalística brasileira em peso, o compromisso de um soldado para com as Forças Armadas não significa nada; não há desdouro em rompê-lo. Já uma organização comunista, esta sim é uma autoridade moral que, uma vez aceita, sela um compromisso sagrado. Nenhum jornalista brasileiro chama de traidor o capitão Lamarca, que desertou do Exército levando armas roubadas, para matar seus ex-companheiros de farda. Traidor é Anselmo, que se voltou contra a guerrilha após tê-la servido. Anselmo desmontou num instante a armadilha semântica, mostrando que existe outra escala de valores além daquela que o jornalismo brasileiro, com ares da maior inocência, vende como única, universal e obrigatória.

O contraste mostrou-se ainda mais flagrante quando o jornalista Fernando Mitre, com mal disfarçada indignação, perguntou se Anselmo não poderia simplesmente ter abandonado a esquerda armada e ido para casa, em vez de passar a combatê-la. Em si, a pergunta era supremamente idiota: ninguém – muito menos um jornalista experiente – pode ser ingênuo o bastante para imaginar que uma organização revolucionária clandestina em guerra é um clube de onde se sai quando se quer, sem sofrer represália ou sem entregar-se ao outro lado. Conhecendo perfeitamente a resposta, Mitre só levantou a questão para passar aos telespectadores a mensagem implícita do seu código moral, o mesmo da quase totalidade dos seus colegas: você pode ter as opiniões que quiser, mas não tem o direito de fazer nada contra os comunistas, mesmo quando eles estão armados e dispostos a tudo. Ser anticomunista é um defeito pessoal que pode ser tolerado na vida privada: na vida pública, sobretudo se passa das opiniões aos atos, é um crime. Não que todos os nossos profissionais de imprensa sejam comunistas: mas raramente se encontra um deles que não odeie o anticomunismo como se ele próprio fosse comunista. Essa afinidade negativa faz com que, no jornalismo brasileiro, a única forma de tolerância admitida seja aquela que Herbert Marcuse denominava “tolerância liberdadora”, isto é: toda a tolerância para com a esquerda, nenhuma para com a direita.

Mais adiante, ressurgiu na entrevista o episódio do tribunal revolucionário que condenara Anselmo à morte. Avisado por um policial que se tornara seu amigo, Anselmo fugira em tempo, enquanto os executores da sentença, ao chegar à sua casa para matá-lo, eram surpreendidos pela polícia e mortos em tiroteio. De um lado, os entrevistadores, ao abordar o assunto, tomavam como premissa indiscutível a crença de que Anselmo fora responsável por essas mortes, o que é materialmente absurdo, já que troca o receptor pelo emissor da informação. De outro lado, todos se mostraram indignados – contra Anselmo – de que no confronto com a polícia morresse, entre outros membros do tribunal revolucionário, a namorada do próprio Anselmo. Em contraste, nenhum deu o menor sinal de enxergar algo de mau em que a moça tramasse com seus companheiros a morte do namorado. Entendem como funciona a “tolerância libertadora”?

A quase inocência com que premissas esquerdistas não-declaradas modelam a interpretação dos fatos na nossa mídia mostra que, independentemente das crenças conscientes de cada qual, praticamente todos ali são escravos mentais da auto-idolatria comunista.

Ao longo de toda a conversa, os jornalistas se mantiveram inflexivelmente fiéis à lenda de que os guerrilheiros dos anos 70 eram jovens idealistas em luta contra uma ditadura militar, como se não estivessem entrevistando, precisamente, a testemunha direta de que a guerrilha fôra, na verdade, parte de um gigantesco e bilionário esquema de revolução comunista continental e mundial, orientado e subsidiado pelas ditaduras mais sangrentas e genocidas de todos os tempos. Anselmo colaborou com a polícia sob ameaça de morte, é certo, mas persuadido a isso, também, pela sua própria consciência moral: tendo visto a verdade de perto, perdeu todas as ilusões sobre o idealismo e a bondade das organizações revolucionárias – aquelas mesmas ilusões que seus entrevistadores insistiam em repassar ao público como verdades inquestionáveis – e optou pelo mal menor: quem, em sã consciência, pode negar que a ditadura militar brasileira, com todo o seu cortejo de violências e arbitrariedades, foi infinitamente preferível ao governo de tipo cubano ou soviético que os Lamarcas e Marighelas tentavam implantar no Brasil? Ao longo de seus vinte anos de governo militar, o Brasil teve dois mil prisioneiros políticos, o último deles libertado em 1988, enquanto Cuba, com uma população muito menor, teve cem mil, muitos deles na cadeia até hoje, sem acusação formal nem julgamento. A ditadura brasileira matou trezentos terroristas, a cubana matou dezenas de milhares de civis desarmados. Evitar comparações, isolar a violência militar brasileira do contexto internacional para assim realçar artificialmente a impressão de horror que ela causa e poder apresentar colaboradores do genocídio comunista como inofensivos heróis da democracia, tal é a regra máxima, a cláusula pétrea do jornalismo brasileiro ao falar das décadas de 60-70. Boris Casoy, Fernando Mitre e Antonio Teles seguiram a norma à risca. Desta vez, porém, o artificialismo da operação se desfez em pó ao chocar-se contra a resistência inabalável de uma testemunha sincera.

Conhecendo as muitas complexidades e nuances da sua escolha, Anselmo revelou, no programa, a consciência moral madura de um homem que, escorraçado da sociedade, preferiu dedicar-se à meditação séria do seu passado e da História em vez de comprazer-se na autovitimização teatral, interesseira e calhorda, que hoje rende bilhões aos ex-terroristas enquanto suas vítimas não recebem nem um pedido de desculpas.

Moral e intelectualmente, ele se mostrou muito superior a seus entrevistadores, cuja visão da história das últimas décadas se resume ao conjunto de estereótipos pueris infindavelmente repetidos pela mídia e consumidos por ela própria. O fato de que até Boris Casoy, não sendo de maneira alguma um homem de esquerda, pareça ter-se deixado persuadir por esses estereótipos, ilustra até que ponto a pressão moral do meio tornou impossível a liberdade de pensamento no ambiente jornalístico brasileiro.

Comente este artigo no fórum:

http://www.seminariodefilosofia.org/forum/15







Dois códigos morais

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 8 de setembro de 2009

A entrevista do Cabo Anselmo ao programa “Canal Livre” (TV Bandeirantes, 26 de agosto, http://www.averdadesufocada.com/index.php?option=com_content&task=view&id=2267&Itemid=34) é um dos documentos mais importantes sobre a história das últimas décadas e mereceria uma análise detalhada, que não cabe nas dimensões de um artigo de jornal. Limito-me, portanto, a chamar a atenção do leitor para um detalhe: o confronto do entrevistado com os jornalistas foi, por si, um acontecimento revelador, talvez até mais que o depoimento propriamente dito.

Logo de início, o apresentador Boris Casoy perguntou se Anselmo se considerava um traidor. Ele aludia, é claro, ao fato de que o personagem abandonara um grupo terrorista para transformar-se em informante da polícia. Para grande surpresa do jornalista, o entrevistado respondeu que sim, que era um traidor, que traíra seu juramento às Forças Armadas para aderir a uma organização revolucionária. A distância entre duas mentalidades não poderia revelar-se mais clara e mais intransponível. Para a classe jornalística brasileira em peso, o compromisso de um soldado para com as Forças Armadas não significa nada; não há desdouro em rompê-lo. Já uma organização comunista, esta sim é uma autoridade moral que, uma vez aceita, sela um compromisso sagrado. Nenhum jornalista brasileiro chama de traidor o capitão Lamarca, que desertou do Exército levando armas roubadas, para matar seus ex-companheiros de farda. Traidor é Anselmo, que se voltou contra a guerrilha após tê-la servido. Anselmo desmontou num instante a armadilha semântica, mostrando que existe outra escala de valores além daquela que o jornalismo brasileiro, com ares da maior inocência, vende como única, universal e obrigatória.

O contraste mostrou-se ainda mais flagrante quando o jornalista Fernando Mitre, com mal disfarçada indignação, perguntou se Anselmo não poderia simplesmente ter abandonado a esquerda armada e ido para casa, em vez de passar a combatê-la. Em si, a pergunta era supremamente idiota: ninguém – muito menos um jornalista experiente – pode ser ingênuo o bastante para imaginar que uma organização revolucionária clandestina em guerra é um clube de onde se sai quando se quer, sem sofrer represália ou sem entregar-se ao outro lado. Conhecendo perfeitamente a resposta, Mitre só levantou a questão para passar aos telespectadores a mensagem implícita do seu código moral, o mesmo da quase totalidade dos seus colegas: você pode ter as opiniões que quiser, mas não tem o direito de fazer nada contra os comunistas, mesmo quando eles estão armados e dispostos a tudo. Ser anticomunista é um defeito pessoal que pode ser tolerado na vida privada: na vida pública, sobretudo se passa das opiniões aos atos, é um crime. Não que todos os nossos profissionais de imprensa sejam comunistas: mas raramente se encontra um deles que não odeie o anticomunismo como se ele próprio fosse comunista. Essa afinidade negativa faz com que, no jornalismo brasileiro, a única forma de tolerância admitida seja aquela que Herbert Marcuse denominava “tolerância liberdadora”, isto é: toda a tolerância para com a esquerda, nenhuma para com a direita.

Mais adiante, ressurgiu na entrevista o episódio do tribunal revolucionário que condenara Anselmo à morte. Avisado por um policial que se tornara seu amigo, Anselmo fugira em tempo, enquanto os executores da sentença, ao chegar à sua casa para matá-lo, eram surpreendidos pela polícia e mortos em tiroteio. De um lado, os entrevistadores, ao abordar o assunto, tomavam como premissa indiscutível a crença de que Anselmo fora responsável por essas mortes, o que é materialmente absurdo, já que troca o receptor pelo emissor da informação. De outro lado, todos se mostraram indignados – contra Anselmo – de que no confronto com a polícia morresse, entre outros membros do tribunal revolucionário, a namorada do próprio Anselmo. Em contraste, nenhum deu o menor sinal de enxergar algo de mau em que a moça tramasse com seus companheiros a morte do namorado. Entendem como funciona a “tolerância libertadora”?

A quase inocência com que premissas esquerdistas não-declaradas modelam a interpretação dos fatos na nossa mídia mostra que, independentemente das crenças conscientes de cada qual, praticamente todos ali são escravos mentais da auto-idolatria comunista.

Ao longo de toda a conversa, os jornalistas se mantiveram inflexivelmente fiéis à lenda de que os guerrilheiros dos anos 70 eram jovens idealistas em luta contra uma ditadura militar, como se não estivessem entrevistando, precisamente, a testemunha direta de que a guerrilha fôra, na verdade, parte de um gigantesco e bilionário esquema de revolução comunista continental e mundial, orientado e subsidiado pelas ditaduras mais sangrentas e genocidas de todos os tempos. Anselmo colaborou com a polícia sob ameaça de morte, é certo, mas persuadido a isso, também, pela sua própria consciência moral: tendo visto a verdade de perto, perdeu todas as ilusões sobre o idealismo e a bondade das organizações revolucionárias – aquelas mesmas ilusões que seus entrevistadores insistiam em repassar ao público como verdades inquestionáveis – e optou pelo mal menor: quem, em sã consciência, pode negar que a ditadura militar brasileira, com todo o seu cortejo de violências e arbitrariedades, foi infinitamente preferível ao governo de tipo cubano ou soviético que os Lamarcas e Marighelas tentavam implantar no Brasil? Ao longo de seus vinte anos de governo militar, o Brasil teve dois mil prisioneiros políticos, o último deles libertado em 1988, enquanto Cuba, com uma população muito menor, teve cem mil, muitos deles na cadeia até hoje, sem acusação formal nem julgamento. A ditadura brasileira matou trezentos terroristas, a cubana matou dezenas de milhares de civis desarmados. Evitar comparações, isolar a violência militar brasileira do contexto internacional para assim realçar artificialmente a impressão de horror que ela causa e poder apresentar colaboradores do genocídio comunista como inofensivos heróis da democracia, tal é a regra máxima, a cláusula pétrea do jornalismo brasileiro ao falar das décadas de 60-70. Boris Casoy, Fernando Mitre e Antonio Teles seguiram a norma à risca. Desta vez, porém, o artificialismo da operação se desfez em pó ao chocar-se contra a resistência inabalável de uma testemunha sincera.

Conhecendo as muitas complexidades e nuances da sua escolha, Anselmo revelou, no programa, a consciência moral madura de um homem que, escorraçado da sociedade, preferiu dedicar-se à meditação séria do seu passado e da História em vez de comprazer-se na autovitimização teatral, interesseira e calhorda, que hoje rende bilhões aos ex-terroristas enquanto suas vítimas não recebem nem um pedido de desculpas.

Moral e intelectualmente, ele se mostrou muito superior a seus entrevistadores, cuja visão da história das últimas décadas se resume ao conjunto de estereótipos pueris infindavelmente repetidos pela mídia e consumidos por ela própria. O fato de que até Boris Casoy, não sendo de maneira alguma um homem de esquerda, pareça ter-se deixado persuadir por esses estereótipos, ilustra até que ponto a pressão moral do meio tornou impossível a liberdade de pensamento no ambiente jornalístico brasileiro.