"Uma leitura altamente edificante para entender o Brasil"
Em março de 2002, cerca de 250 sem-terra invadiram a fazenda dos filhos do então presidente Fernando Henrique Cardoso em Buritis, no interior de Minas Gerais. Ficaram ali um dia inteiro, mataram cinqüenta galinhas para animar o forró à noite e avançaram sobre a adega consumindo noventa garrafas de vinho, uísque, conhaque e cachaça, além de seis caixas de cerveja. Ao final, dezesseis sem-terra foram presos. Um inquérito policial foi aberto e os dezesseis foram denunciados por três crimes: invasão de estabelecimento agrícola, cárcere privado e resistência à ordem judicial. Um ano depois, o Ministério Público de Minas Gerais pediu o arquivamento do caso, sem nenhuma punição aos sem-terra. O pedido de arquivamento tem 36 páginas, refuta cada um dos três crimes e é uma leitura altamente edificante para entender o Brasil. Um resumo:
INVASÃO DE ESTABELECIMENTO AGRÍCOLA – O relatório do Ministério Público reconhece que os sem-terra efetivamente invadiram a fazenda, mas alega que, para que isso configure crime, é necessário que tenham tido a intenção de impedir o trabalho no local. Como a intenção do MST era defender a reforma agrária, não houve crime. Ponto.
CÁRCERE PRIVADO – O relatório lembra que, no caso desse crime, a vítima precisa ser privada de sua liberdade "em recinto fechado". Mas, como um dos funcionários da fazenda, em seu depoimento, contou que as vias de acesso à propriedade estavam bloqueadas pelos invasores, mas ainda assim era possível andar a pé, o MP concluiu que não houve crime. Os funcionários não saíram de onde estavam porque os sem-terra andavam nas imediações "armados com pedaços de pau". Houve, então, crime de ameaça? Pode ser, diz o MP, mas, se houve, já prescreveu. Ponto.
RESISTÊNCIA À ORDEM JUDICIAL – O relatório admite que, segundo a polícia, "os invasores bradavam palavras de ordem do movimento e mostravam coquetéis molotov, porretes, enxadas, foices, bordunas e machados, exigiam o afastamento da polícia do local e diziam que, caso a polícia permanecesse no local, haveria reação". O MP, porém, achou que, para caracterizar o crime de resistência, é preciso que haja violência ou ameaça. Os sem-terra mostraram suas armas de guerra, mas esses instrumentos não aparecem no auto de apreensão, então... E, além disso, não praticaram violência ou ameaça explícita – então, não houve esse crime. Ponto.
Atento, o MP cogita, por sua própria conta, a hipótese então de ter havido furto, já que os sem-terra abateram cinqüenta aves e arrasaram a adega. Em seguida, o próprio MP diz que, como 250 invadiram a fazenda, mas apenas dezesseis foram presos, não era possível atribuir o crime a eles indiscriminadamente. Mais: diante do "óbvio estado de necessidade", diz o relatório, claro que eles tinham de pegar algo para comer e beber.
Mais atento ainda, o MP cogita se não teria havido crime de dano, diante das notícias de que houve depredação de janelas e portas. Em seguida, o MP diz que o laudo não confirma os dados e, mesmo que confirmasse, para que existisse crime, o dano precisaria ter valor significativo para o dono. E conclui que, quem tem fazenda com "heliponto, parque para crianças, casa-sede luxuosamente decorada", não sentirá falta de umas janelas e portas.
Por fim, o MP lembra: será que não houve então invasão de domicílio? Também não, porque o crime só se comete contra o local de moradia de alguém, e como ninguém morava na fazenda....
E então? Agora deu para entender melhor o Brasil?
André Petry
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