Rui Barbosa sabiamente dizia que, no Brasil, o senso comum é o menos comum dos sensos. Não por acaso, a nossa língua é um arranjo de curvas e imprecisões, desde o "até logo" para significar "até mais tarde", o "pois não" para dizer "pois sim" e "fique à vontade, a casa é sua", expressão educada para lembrar ao visitante: "a casa é minha". Os paradoxos que inundam espaços semânticos e estéticos da campanha eleitoral exibem, de um lado, maior assepsia nas ruas, em comparação com a campanha de 2002, exigência de nova legislação, e, de outro, um volume inusitado de sujeira jogada para baixo do tapete. Nos três maiores colégios eleitorais do País - São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro - um terço dos parlamentares que se candidatam à reeleição está às voltas com a Justiça. E dos 429 históricos de candidatos de 21 Estados, divulgados até o momento pela ONG Transparência Brasil, 150 têm pendências judiciais. Logo, a Casa das Leis abrirá as portas em 2007 sob suspeita de que parcela considerável de seus legisladores não é, digamos assim, muito chegada à legalidade.
O entulho que se amontoa por todos os lados causa perplexidade porque nunca foi tão necessária uma campanha ética, regrada pelo bom comportamento e respeito aos estatutos da política. É o mínimo que se podia esperar após a hecatombe que começou com as articulações de Waldomiro Diniz, continuou com os mensaleiros e desaguou nas águas de sanguessugas. Ao contrário, o País assiste a um desfile despudorado de traições, mentiras, oportunismo, embromação, sofismas e covardia, cujas conseqüências se projetam sobre a sociedade, afunilando as expectativas de aperfeiçoamento das instituições e alargando a convicção de que, no Brasil, o crime realmente compensa. A criminalidade, desta feita, pega em cheio a classe política. É evidente que os 67 deputados acusados pela CPI dos Sanguessugas de envolvimento no esquema de ambulâncias superfaturadas esperam ser absolvidos porque contam com o voto secreto e "amigo" de colegas.
Nas frentes eleitorais, as batalhas usam o fel da traição ou o molho do oportunismo. O governador Lúcio Alcântara, tucano cearense, quer se reeleger endeusando Lula, que apóia Cid Gomes, do PSB, irmão de Ciro, lulista até a alma, mas amigo de Tasso Jereissati, o chefe do tucanato, sob suspeição de apoiar Cid. É artimanha para todo lado. Alckmin é jogado para trás das cortinas em campanhas de tucanos e pefelistas. Até os francos favoritos José Serra, em São Paulo, e Aécio Neves, em Minas Gerais, são arredios ao palanque do correligionário, impregnados pela velha lição de Maquiavel de que a derrota do amigo Geraldo, hoje, servirá para pavimentar a vitória de um deles, amanhã. Ambos arregaçarão as mangas para ocupar a cadeira presidencial em 2010. A continuar zen, o cultor de acupuntura Alckmin não conseguirá os 6% a mais de votos para ganhar o passaporte rumo ao segundo turno. E qual a lógica do petista Aloizio Mercadante em incentivar uma "aliança branca" entre Orestes Quércia e Lula, em São Paulo? A ocorrer, Lula poderá puxar o ex-governador peemedebista para o segundo lugar no pleito ao governo paulista, liderado pelo tucano Serra. É engodo ou sofisma do candidato petista, menos ingenuidade.
A mentira e a manipulação dão o tom. O presidente enche os pulmões para dizer que a inflação de 5,69% foi a menor da década - é apenas a terceira, pois a mais baixa, de 1,65%, ocorreu em 1998. E anuncia a antecipação do 13º salário a aposentados e pensionistas, grupo insatisfeito com o aumento recebido. Para fechar o leilão de disparates, o bispo Marcelo Crivella, candidato ao governo do Rio de Janeiro, coloca Jesus Cristo no palanque com o surpreendente argumento: "Você culparia Cristo pela traição de Judas?" Foi o argumento que usou para dizer que Lula não sabia da existência do mensalão. O bispo nem se deu conta de que Cristo deu o aviso na Santa Ceia de que alguém iria traí-lo. Valeu-se Crivella de metade do sofisma. Que cara-de-pau! Do conforto do favoritismo, o candidato à reeleição, agora apresentado como conservador, pode se dar ao desconforto de abraçar o novo companheiro, o mineiro Newton Cardoso, considerado em tempos idos pelo PT uma das mais pérfidas figuras da política brasileira. É incrível, porém verdadeiro, o que se passa no front político. As coisas estão de ponta-cabeça. Quando se esperava que a crise fosse o prenúncio de uma era iluminada pela lisura, dá-se conta de que o País assiste a uma sórdida campanha eleitoral, que nem chega a afetar o ânimo de eleitores apáticos, pois a denúncia, a rapinagem, a violência e as ondas de crimes, de tão banais, entorpeceram as mentes.
Qual a conseqüência de um país tomado pela alienação? Interesses venais generalizados, sentimentos degenerados, doutrinas esfaceladas, valores conspurcados, unidade moral destruída, patriotismo se apagando. A Nação, sincronismo de espíritos, comunhão de esperanças, cede lugar aos politiqueiros e regride à condição de país, mera expressão geográfica. Algo como uma volta à barbárie. Há saída? Sim. A fuga da encruzilhada se dá pela via da mobilização social. A miríade de entidades e núcleos da sociedade têm condições de cortar os nós que ligam o Brasil às mazelas do passado. Um deles é constituído pela galeria dos candidatos indiciados. Devem ser postos de lado até limparem a ficha. O voto consciente é a maior arma do povo para depurar a política de sangue contaminado. Ao contrário, o voto nulo, que grupos procuram defender como maneira de vetar a representação política, é um suicídio. Forças centrípetas, partindo da sociedade, têm condições de influenciar a opinião pública, agir sobre o poder centrífugo e evitar o descalabro. Os contingentes esclarecidos têm o dever moral de mobilizar seus entornos com vista à participação ativa no processo eleitoral. Aquele que deixa de participar da vida de uma cidade (polis, política) é um ser vil, ensina o velho Aristóteles.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político. E-mail: gautor@gtmarketing.com.br
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