Em abril e julho de 2002, o então candidato Lula me deu duas entrevistas no “Espaço Aberto”, da Globonews. Não há relação entre o que ele dizia e o que ele fez. Disse que mudaria a política econômica porque para isso o PT estava concorrendo; afirmou não acreditar “nesses fundamentos econômicos”; prometeu uma reforma tributária para acabar com PIS, Cofins e CPMF. Pediu que eu cobrasse dele a seguinte promessa: acabar com as ocupações de terra e mortes no campo. A cobrança: até março deste ano os dados do próprio governo são de que houve 880 ocupações de terra e 72 mortes em conflitos agrários.
Visto com olhos de hoje, Lula está irreconhecível, exceto pelos clichês que ainda usa. Ele garantiu em todos os momentos daquela campanha que só ele poderia lidar com a questão dos sem terra. Na entrevista que me concedeu em abril de 2002, ele foi além.
— Eu vou lhe dizer uma coisa, e eu vou lhe dizer porque quero que você me cobre. Pode me cobrar em 14 meses. Nós somos a única possibilidade de fazer a reforma agrária sem uma morte e sem uma ocupação. Vamos nos sentar em torno de uma mesa, temos 90 milhões de hectares que não estão produzindo e que poderiam ser usados para a reforma agrária. Vamos fazer um fórum para discutir a questão.
Perguntei sobre os grupos mais radicais e ele respondeu:
— O país tem regras e leis. Não existe espaço para sectarismos. Aí entra o papel do Estado.
Como ele pediu cobrança, aqui está: Lula não apenas não cumpriu essa promessa, como no primeiro ano o número de ocupações pulou de 103 para 222, e as mortes, de 20 para 42. Só nos primeiros três meses de 2006 houve mais ocupações do que em todo o ano de 2002. Por causa da sua ambigüidade, o governo não conseguiu estabelecer a fronteira entre a reivindicação justa e o desrespeito às leis do país.
Na segunda entrevista, o PT já havia divulgado a Carta aos Brasileiros, com promessas de manter a política econômica, mas, nos comícios, o candidato dizia o oposto. Em São Bernardo havia dito, uma semana antes, que iria mudar a política econômica no primeiro dia. Perguntei em qual Lula deveria acreditar.
— A Carta ao Povo Brasileiro foi escrita em função de uma crise de mercado; a gente assumiu o compromisso de manter o superávit primário e metas de inflação. Esse era o limite da nossa conversa para os investidores, porque sabemos que tem um tempo de transição. A busca de mudança do modelo econômico tem que ser uma constante, só para isso é que o PT está concorrendo às eleições para presidente. Nós não acreditamos nesses fundamentos da política econômica que subordinou o país. Como não podemos mudar do dia para a noite, não vamos fazer isso a toque de caixa, temos que ter um tempo de transição. Temos que fazer com que haja mecanismos para que esse país possa até ter um superávit primário se ele arrecadar mais, acabar com a sonegação, acabar com a corrupção.
Voltei ao tema e perguntei se o que ele queria dizer era que o que estava escrito na Carta era só temporário. E ele respondeu:
— É lógico. O compromisso é fazermos uma transição para um modelo que acredite na produção.
A reforma tributária foi tema nos dois programas e ele prometeu fazê-la:
— O companheiro Palocci apresentou uma proposta de reforma tributária com apoio de todos os partidos. E não foi feita. Significa que esse governo não quer fazer a reforma tributária.
A reforma seria: reduzir a carga tributária, mudar o Imposto de Renda criando uma alíquota de 5% até a mais alta de 50%, desonerar a produção acabando com PIS, Cofins e CPMF, desonerar a exportação, tributar as grandes fortunas e as heranças. Sobre a CPMF ele disse que reduziria a alíquota para 0,08% já em 2004, deixando apenas com sentido fiscalizatório. Na segunda entrevista, prometeu uma reforma tributária emergencial e culpou o governo da época que “não age e não faz”. Ele prometeu também “vontade política” para reduzir os juros.
No item segurança há igualmente distância entre o dito e o feito:
— O governo federal vai assumir a responsabilidade de ser o gestor na área de segurança, o governo vai assumir a construção de presídios federais, vai unificar as ações policiais de Roraima ao Rio Grande do Sul.
Na política social, ele defendia a versão original do Fome Zero, que era a distribuição de um cupom para ser usado em supermercados cadastrados em troca de comida. Perguntei se não era melhor investir em Bolsa Escola em vez de em um programa assim tão burocrático.
— O Fome Zero quer resolver o problema da fome e tem alternativas como cesta básica, por exemplo. Com o cupom, o cidadão vai ao supermercado e compra comida, e vamos cadastrar todos os supermercados.
Essa idéia era ruim, foi abandonada sem ter sido implementada, e o que funcionou foi mesmo uma versão ampla do Bolsa Escola, que mudou de nome para Bolsa Família.
Claro que na prática muita teoria se comprova errada. Mas impressiona a distância entre as promessas de Lula e seu governo.
Miriam Leitão, O Globo (10/08/06)
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