Jogo de destreza (não de azar) é coisa séria. Tem valor educativo insubstituível. A criança que se dedica aos jogos de infância com amigos ou na escola está assimilando princípios de disciplina e boa conduta que se inculcam em outras áreas da vida social, na convivência familiar, na profissão e na formação ética: por meio das regras do jogo aprende a respeitar as regras sem as quais a vida em comum se torna impossível. Brincando, educa-se a criança para ser responsável em todas as frentes. O esporte se introduz nas favelas, ocupa o tempo dos jovens e os desvia do crime e dos atos anti-sociais. A quadra de esportes complementa, motiva e dinamiza a freqüência na sala de aula.
A importância histórica do esporte é bem conhecida e já foi sobejamente avaliada por historiadores e pensadores. As cidades gregas, ciumentas de sua soberania, viviam divididas e em luta umas com as outras. Somente por ocasião dos Jogos Olímpicos se uniam em torno de um objetivo comum. Nem a política nem a economia conseguiram na Grécia semelhante unificação, precária, é verdade, porque a Grécia nunca se unificou de verdade. Mas por isso mesmo fica ainda mais admirável a força de mobilização e de coesão dos jogos celebrados de quatro em quatro anos em honra de Zeus, como ponto culminante das festas pan-helênicas. Píndaro (518 a.C.), um dos maiores líricos gregos e de todos tempos, escreveu odes triunfais em homenagem aos vencedores das grandes competições esportivas. Na luta do atleta para vencer, ele ultrapassa seus limites e realiza a imagem mais alta do próprio ser, da própria pessoa.
Esta tensão sobre-humana do homem para se superar serviu a Píndaro para forjar o maior imperativo ético de todos os tempos, um imperativo heróico: Transforma-te em quem és! Sejamos com perfeição o que já somos imperfeitamente por natureza. A ética pindárica, hoje mais atual do que nunca, aferra-se não ao modelo universal do dever, válido indiferentemente para todos os homens, sim que adota para cada qual o seu modelo, já virtualizado na própria pessoa. O dever não é único e universal (como em Kant), mas pessoal e exclusivo. O que eu tenho que fazer só eu posso fazer, ninguém pode substituir-me na minha performance.
Durante a Copa os brasileiros fervem de entusiasmo pelo Brasil. Saem vestidos de verde e amarelo, pintam ruas e praças com as cores da bandeira, colocam bandeirinhas no carro e torcem apaixonadamente pela vitória da seleção. Um delírio coletivo. Nos dias em que a seleção brasileira joga, o País pára, o expediente de trabalho se reduz e praticamente todos os brasileiros ficam grudados na televisão, com olhos e ouvidos usurpados pela bola que rola no gramado. Brasileiros de todas as classes e de todas as idades ficam eletrizados pelo jogo, divididos pela expectativa da vitória ou da derrota, literalmente fora de si. A alma brasileira vibra de norte a sul e se identifica dramaticamente com o destino da Pátria representada pelo que há de melhor entre os jogadores verde-amarelos. A população inteira se mobiliza num só corpo, magnetizada pelo chamado "patriotismo de chuteiras", durante 40 dias, de quatro em quatro anos. E depois?
Será que os brasileiros que dão tudo de si pela Pátria nos períodos da Copa vão ter a coragem de votar nulo na hora de escolher os homens que vão decidir sobre nosso destino, não no campo de futebol, mas em todos os aspectos da vida pública, na política, na sociedade, na economia, no direito, no trabalho, na segurança, na cultura? O voto nulo terá lugar após o surto de exaltação frenética de amor à Pátria, em que se ouve gritar a toda hora "Brasil, Brasil, Brasil"? Não seria uma contradição das mais absurdas, chocantes e surrealistas?
Está em marcha a campanha pelo voto nulo, inclusive na internet. O voto nulo é uma aberração. Significa atirar no que se vê (os maus políticos) e acertar no que não se vê (o País e a democracia, os maiores prejudicados). Constitui uma forma de protesto que gera resultados contrários ao que se pretende. Voto nulo é o suicídio da cidadania, a imolação do civismo nas aras da ignorância, a renúncia à participação ativa na vida pública. O voto representa uma conquista histórica muito cara e muito penosa, que custou muito sangue, suor e lágrimas, à qual não se pode renunciar levianamente. Cabe ao eleitor zelar pelo voto a que tem direito. Voto nulo equivale a voto vago, vazio, que pode ser preenchido por outro a favor dos políticos mais indesejáveis. Se eu não voto, alguém vota em meu lugar. O feitiço virando contra o feiticeiro.
O voto constitui a expressão mais avançada na face da Terra da igualdade entre os homens e da reciprocidade entre sociedade e Estado. Assinala a maioridade política do homem e da mulher e repele toda tentativa de manipulação de sua vontade pelo arbítrio e venalidade de grupos irresponsáveis. Na democracia o voto é a única arma de conquista de direitos futuros e de defesa dos direitos já existentes. Anular o voto equivale a entregar-se, indefeso, à sanha dos poderes obscuros que rondam o Estado e ameaçam sua estabilidade. É abrir as portas para a ilegitimidade. No limite, se todos votam nulo, que grupo de energúmenos vai ocupar o poder?
A democracia é um sistema de tentativa e erro, como as demoradas pesquisas científicas, ou como o atirador que só acerta na mosca depois de perder inúmeras balas, aprendendo a corrigir a pontaria a cada disparo efetuado. Vamos parar com tanto simplismo, com essas ingenuidades salvacionistas que só têm o efeito de nos fazer regredir para o pior obscurantismo, fraudes primárias, do tipo monopólio da ética, o carisma de Lula e, agora, anulação do voto.
Voto, logo existo. Quem anula o voto se anula.
Gilberto de Mello Kujawski, escritor e jornalista,
Um comentário:
Nossa você fala muito bonito.Mas vejo de forma diferente essa questão.Acho o VOTO NULO absolutamente válido já que representa minha inconformidade com os políticos do meu país .Não sou contra o voto acho que ainda tem pessoas(muito poucos) que ainda querem fazer algo de bom por esse país, mas enquanto achar que nenhum(absolutamente nenhum) deles vale meu voto, ele não o terá.
Postar um comentário