terça-feira, junho 27, 2006

O caráter demoníaco do poder

"O poder encerra em si mesmo a semente de sua própria degeneração"
Karl Loewenstein

Afinal, o segredo de polichinelo foi revelado: Lula "aceita" ser candidato à reeleição. Numa reunião do PT - presente a nata que sugeriu a refundação do partido envergonhado -, consumou-se a farsa. Desde o primeiro dia do seu governo Lula já fazia campanha pela reeleição. O poder revelou a falta de compostura do líder sindicalista que chegava à Presidência da República com os trabalhadores e a classe média de mãos dadas. O refrão de Duda, "a esperança vencerá o medo", recebeu 52 milhões de votos. De um lado, os operários ávidos por se livrarem da velha classe dominante, que teria dividido o Brasil entre incluídos e excluídos. Logo, 400 "excluídos", dirigentes sindicais, foram nomeados por Lula para funções de relevo, em que a maioria revelou atroz incapacidade.

Raymond Aron escreveu: "A Revolução Francesa deu aos burgueses o poder político exercido anteriormente pelo rei e pelos nobres. Ao assumir o poder, os burgueses mantiveram-se iguais. Ao contrário, os representantes do proletariado deixam de viver como proletários no dia em que dirigem uma fábrica, uma estatal ou um ministério." Aron, porém, era o anti-Marx. Mas Mikhail Bakunin, nobre dissidente, revolucionário anarquista rompido com Marx, insistiu: "O governo da maioria das massas populares se faz, porém, por uma minoria privilegiada de marxistas, antigos operários que tão logo se tornem governantes cessarão de ser operários e não mais representarão o povo, mas a si mesmos. Quem duvida disso não conhece a natureza humana."

Quando surgiram os escândalos do chamado núcleo duro do PT, os velhos companheiros do Lula, metalúrgicos "para os quais a sua palavra era lei", concederam uma entrevista de página inteira à Folha de S.Paulo. A grande maioria, constante da foto que ilustrava a matéria, mostrava faces marcadas pelo tempo. Quase todos fundadores do PT, alguns poucos haviam sido deputados federais e estaduais. Profundamente decepcionados, haviam se afastado de Lula, que não mais lhes merecia respeito. Nas entrevistas, as queixas eram fortes: dos que nunca mais tiveram oportunidade de ser recebidos pelo líder de outrora, apesar de pedidos feitos para falar com ele. A totalidade, até a humilde servidora do sindicato, que chegava a casa tarde da noite, obrigada a satisfazer os sindicalistas nas pesadas libações alcoólicas, fazia coro na queixa e na decepção. Ao tempo, as denúncias de Roberto Jefferson faziam minguar para 20%, nas pesquisas, a aprovação a Lula, que se poupava de apresentar-se em público. Hoje, ele aparece com mais de 50%, candidato favorito logo no primeiro turno eleitoral, ajudado por uma oposição que já se considerava vitoriosa e receava tentar o impeachment porque Dirceu prometia uma convulsão social em represália.

Tancredo Neves, quando se submeteu ao famigerado colégio eleitoral, menosprezava a capacidade de Maluf vencer em eleição indireta, em que vencera duas vezes. Ironizava: "Maluf enfrentou amadores." Lula não é amador. Conseguiu fazer o povo acreditar que não sabia da ladroagem que o PT fazia para que ele tivesse maioria folgada na Câmara. O incorruptível Hélio Bicudo deixou o partido dizendo: "Lula esconde a sujeira embaixo do tapete." Com 91 deputados, aprovava o que queria, graças aos atuais "picaretas", clientes do "valerioduto".

Getúlio matou-se, moralmente arrasado, por infinitamente menos. Mas era um estadista honesto, cuja honra não fora atingida pelo "mar de lama" de que se queixou. Lula, como profissional, aprendeu na política sindicalista, que tem critérios próprios. Fez crer aos ingênuos que nada sabia e que fora traído. O ministro da Justiça, menos ministro e mais criminalista, acostumado a defender criminosos, salvou-o. O crime de compra de votos com dinheiro público virou crime eleitoral: o caixa 2. O governo, infenso a CPIs, logo criou uma com parlamentares dóceis, com a missão (rapidamente cumprida) de concluir que "mensalão" não houvera. Lula completou: "Caixa 2 é tradicional nas eleições brasileiras." Fez absolver todos os parlamentares corrompidos, com exceção de três para coonestar a fraude.

Farto em gabar-se, suas promessas não foram cumpridas. Nem por isso entrou em descrédito. Até hoje os desempregados, que acreditaram nele, esperam os 10 milhões de empregos que prometeu, mas Lula blasona que ninguém criou tantos empregos com carteira assinada. Em vez do Fome Zero, fracassado, apelou prontamente para a Bolsa-Família, soma da Bolsa-Escola, do Auxílio-Alimentação e do Vale-Gás, criados nos governos anteriores. Adicionou-lhe um cartão e aumentou o pagamento do benefício. Trocou o emprego pela esmola a que se referia antes. Garantiu o voto do assistencialismo.

Em lugar de manter e criar rodovias, mandou tapar os inúmeros buracos. Em cada um, um comício. Ganhou voto dos caminhoneiros.

Uma dona de casa na pobre União dos Palmares, assistida pela Bolsa-Família, disse ao repórter: "Sei que tem corrupção, quadrilha organizada, mas para mim o presidente não é ruim." Voto garantido, pragmático.

Milhões de pessoas de renda até R$ 120 recebem Bolsa-Família de valor recentemente aumentado. Voto de gratidão à bondade eleitoreira do presidente.

Uma feirante, pobre e com quatro filhos, prefere Lula: "Tenho medo de que o próximo presidente corte as bolsas." Voto do medo que vence a esperança.

O bispo que foi parte da guerrilha comunista de Marighella abandona o governo, constrangido, e diz: "O poder mostrou face real de Lula." Mas votará nele, novamente. Voto piedoso e ideológico.

Tancredo, cuja integridade moral não lhe permitiria macular a honra, não diria que Lula é amador, mas que é um tipo de profissional, dos que se enganam a si próprios antes de enganar os outros. É a sua maior habilidade.

Jarbas Passarinho, ex-presidente da Fundação Milton Campos, foi senador pelo Estado do Pará e ministro de Estado