domingo, junho 25, 2006

O preço moral da crise

Com uma lanterna acesa, em plena luz do dia, o grego Diógenes (400 a.C.) andava nas ruas de Atenas procurando um homem com as qualidades de coerência, ética, integridade, firmeza e bondade. Queria encontrar um homem em condições de governar a Grécia. Não encontrou, mas acabou criando a Filosofia Cínica, que pregava que a felicidade não dependia de fatores externos, como o poder político. A hipótese do velho filósofo não encontra eco por aqui. Entre nós, a lição da felicidade está mais próxima dos bens materiais, como escreveu Jules Michelet, autor do clássico O Povo, ao lembrar que o homem constrói sua alma de acordo com a situação material, parecendo ser um mero acessório da fortuna. Esse retrato está mais próximo do homem brasileiro.

Pergunte-se ao anônimo das ruas se ele tem idéia da gravidade da crise moral que corrói a energia da Nação. Crise? Que crise? Duas interrogações secas apontam para o irrefreável processo de embrutecimento social que ataca o coração nacional. Pergunte-se, também, qual seu maior sonho. A resposta terá alguma relação com o bolso. O Brasil foi submetido a sucessivos escândalos. Mensaleiros, sanguessugas, quadrilheiros, empresários e funcionários públicos especializados em rapinagem entraram na contabilidade do último ano. A soma alcança bilhões. Mas alguém sabe dizer qual o preço moral que o País paga por essa catástrofe?

Poucos se habilitam. E a razão é plausível. Custos morais são imensuráveis. A doença da alma atravessa gerações. Trata-se de doença que ataca um dos maiores patrimônios intangíveis, que é o conceito das instituições. A constatação dos sintomas se dá pelo apreço dos cidadãos à ordem constituída. No Brasil, o apreço cede lugar ao desprezo. As instituições perdem força e simbologia. A imagem da política se desmancha. Da própria Câmara dos Deputados vem o veredicto: a pior legislatura de toda a história. Os governos são desacreditados. A maioria das 5.560 prefeituras passa ao largo da Lei de Responsabilidade Fiscal. O Poder Judiciário desce do altar da respeitabilidade para o chão sujo das tutelas. Nepotismo e politização mancham o véu da deusa da Justiça. Credos expandem-se em empreendimentos e ocupam latifúndios na mídia eletrônica. A imprensa esgota a capacidade de cobrir, com dinamismo e criatividade, a mesmice de eventos escabrosos.

Os jovens, de todos os matizes, alheiam-se dos acontecimentos, fazendo pouco-caso da leitura e cumprindo o ritual para obter notas mínimas que os habilitem a passar de ano. Pergunte-se a eles, que são o esteio do futuro, o que acham dos políticos, dos governos, da situação do País. Quem não ouvir uma expressão de baixo calão terá sorte. Cidadãos de todos os quadrantes e classes sociais se distanciam da esfera pública. Gigantescos vazios se multiplicam, enquanto a canoa do “deixa pra lá” navega ao léu, esperando que um vento mais firme a conduza a um porto seguro. Triste é constatar que o mau-caratismo entra com naturalidade no dia-a-dia das pessoas. Em reveladora entrevista, o noveleiro Silvio de Abreu confessa-se estupefato com os resultados de pesquisas que mostram “a moral do País em frangalhos”. Nos folhetins, os canalhas são os mais aplaudidos. Os bonzinhos são enfadonhos. A retidão de caráter já não faz a cabeça dos telespectadores como antigamente.

Se no campo do lazer televisivo a voz moral não encontra mais eco, o show de indecências exibido pelos atores públicos também não causa espécie. A pele de um povo exposto constantemente ao sol perde o viço. E da voz corrente das ruas se extrai a dura lição: para se realizar na vida vale tudo. Os políticos? Ora, roubam mesmo. Não fazem mais que pôr a mão na massa (o mensalão) à sua disposição. Esse é o preço moral que o Brasil está pagando. É o preço do asco por coisas como solidariedade, disciplina, respeito, ética, fidelidade a princípios, zelo pela coisa pública. É o preço que se paga pelo desencanto, pela descrença e morte da fé.

Os traumas psíquicos provocados pela crise atingem todos os estratos sociais. Os contingentes da base da pirâmide social, com menor capacidade crítica para acompanhar desdobramentos de denúncias, nivelam por baixo os seus participantes. Deixam espaços na memória para guardar as emoções novelísticas. Apagam tudo o que se fixa na memória negativa. Por política boa, apontam para os R$ 65 do Bolsa-Família e o “adjutório” do prefeito na forma de remédios, cestas básicas, transporte público e escola para os filhos. O meio da pirâmide abriga grupamentos com pontos de vista diferenciados e corporativos. Quem ganha salários de classe média se refugia ou no conforto do bom emprego ou nos negócios próprios e quer distância da política. Aí estão os trabalhadores especializados, parcelas de funcionários públicos e a massa de pequenos comerciantes, que reservam aos políticos um extenso acervo de onomatopéias críticas.

Os núcleos de formação de opinião, formados por empresários, educadores e profissionais liberais, entre outros, se reúnem em entidades (clubes, sindicatos, associações, movimentos). Alguns setores agregam forte poder de pressão, como as corporações de advogados, professores, grupos étnicos, de mulheres e credos religiosos. Trata-se do eixo social mais crítico e consciente. Daí poderá advir uma encenação de mobilização por mudanças. Do topo da pirâmide nada se pode esperar. A elite refestela-se no status quo. Por que trocar o certo pelo duvidoso? Com esta sinalização cognitiva a sociedade brasileira não cria ilusões sobre o futuro imediato. Sabe que nenhum Diógenes encontrará o homem maior para governar a Grécia, perdão, o Brasil. Mas constata que as lições da Filosofia Cínica do velho filósofo grego são o livro de cabeceira da maior parte dos políticos tupiniquins. E até percebe que um deles poderá convencer de que não sabia de nada, mesmo sabendo de tudo.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político.
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