terça-feira, março 07, 2006

Lula, PT e o neopopulismo

Muita gente se pergunta em que se tornarão, no futuro próximo, Lula e o PT. Essa é uma questão que interessa ao país. Na comemoração do 26º aniversário de fundação do PT, ficou clara a preocupação dos dirigentes e do próprio Lula em mostrar que a crise passou e que o partido "deu a volta por cima". E é precisamente essa preocupação que demonstra o quanto ele foi atingido.

Lula e o PT confiam na fraca memória do povo e, como as denúncias de caixa dois e "mensalão" saíram do noticiário, torcem para que tudo seja esquecido. Lula argumenta que "errar é humano", e Ricardo Berzoini reduz todo o escândalo às falcatruas praticadas por Delúbio Soares; falcatruas cuja gravidade, aliás -sugerem os dirigentes petistas- foram exagerados pela imprensa. Enfim, no fundo, no fundo, foi apenas uma tempestade em copo d'água. Mas uma tempestade que obrigou Lula a destituir a direção do partido, composta por petistas históricos, demitir o ministro-chefe da Casa Civil, responsável por sua campanha vitoriosa à Presidência da República, além de afastar ocupantes de numerosos cargos do alto escalão do governo, sem falar nos deputados do primeiro time petista processados pela Comissão de Ética da Câmara dos Deputados, mais parece um tsunami. Lançando mão de artimanhas e sofismas, dirigentes petistas procuram levar a opinião pública a crer que o PT foi vítima de uma conspiração. Para livrar-se da acusação de que toleram a corrupção por ela fazer parte da sua estratégia de poder, admitem agora vagamente que alguns companheiros erraram. Mas, como errar é humano...

Convenhamos, o PT não pode fazer outra coisa. Até que tentou, quando Tarso Genro, no auge do escândalo, falou em "refundar" o partido, o que era admitir a gravidade da situação. (Naquele instante, muitos petistas choravam em público, ninguém se atrevia a negar os fatos). Mas José Dirceu, que ainda mandava na máquina petista, não o permitiu, uma vez que a "refundação" resultaria em entregar o comando aos adversários do Campo Majoritário.

Na verdade, a tal refundação era inviável: se não interessava ao campo majoritário, não poderia interessar a Lula. Por isso mesmo, Tarso foi substituído por Berzoini que, pau-para-toda-obra, faz o que Lula determina. O PT é hoje, na verdade, um partido dividido: metade defende a volta às origens e a outra metade, o governo, ainda que fingindo autonomia; trata-se de um equilíbrio difícil, que obriga Berzoini a sucessivas acrobacias. O que torna as coisas menos difíceis é que ambos os lados têm um interesse comum: evitar o naufrágio definitivo do PT e do governo Lula.

Esse interesse não é apenas das duas facções, mas de todo petista convicto que, embora eventualmente discorde do rumo que o governo tomou, votará em Lula outra vez. Pode-se deduzir que, para eles, um governo petista, ainda que tisnado pela corrupção, é melhor que qualquer outro. Errar é humano, quando quem erra é gente nossa; já erro de adversário não tem perdão.

Uma tal atitude pressupõe que o PT não é essencialmente corrupto e, por isso, aprenderá a lição, não voltará a pecar. Certamente, é difícil sustentar essa tese quando nos lembramos de que a corrupção antecede ao governo Lula -ela já grassava nas administrações petistas de Santo André e Ribeirão Preto, já estava na campanha presidencial de 2002, no conluio com Duda Mendonça e nas inexplicáveis caixas de uísque transportadas clandestinamente como se contivessem alguma coisa secreta.

Outro argumento usado para absolver o PT é o de que ele não é apenas Delúbio, Silvinho e os deputados do "mensalão"; o PT, na verdade, seria sobretudo os milhares e milhares de militantes anônimos espalhados pelo país. O que não fica claro é se esses militantes concordam ou não com a impunidade dos dirigentes corruptos. Se, como garante Berzoini, o partido, em vez de murchar, cresceu com o escândalo, devemos concluir que os militantes acham, como Lula, que caixa dois e "mensalão" não têm mesmo importância, pois é prática comum a todos?

Talvez não seja bem assim. Estamos assistindo aos esforços do PT e de Lula para apagar da memória de seus correligionários e do eleitorado brasileiro as falcatruas cometidas, embora saibam que não será fácil. Uma parte dos petistas, seja por paixão partidária ou por interesses diversos, vai fingir que esqueceu, mas aqueles que, sem serem petistas, votaram em Lula por confiar nele, dificilmente voltarão a fazê-lo. Por isso, para se reeleger, ele distribui benesses a torto e a direito, compra o voto dos pobres com o Bolsa-Família, dá aumento ao funcionalismo e inaugura obras inexistentes, fazendo o que sempre criticara nos políticos fisiológicos.

Quanto ao PT, que já não pode falar em ética, tampouco atacará, durante a campanha eleitoral, a política econômica de Palocci; à ala esquerda do partido, restará, portanto, compor-se com o neopopulismo de Lula ou cair fora. Em qualquer das hipóteses, a conseqüência será um PT não-ideológico, ajustado à imagem e semelhança do novo Lula que vemos nascer, descaradamente, a cada comício pré-eleitoral.
Ferreira Gullar

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