sexta-feira, março 24, 2006

Inaceitável!

Políticos e jornalistas perguntaram ao ministro Antonio Palocci se ele processaria o seu ex-assessor Rogério Buratti. Sua resposta foi que jamais processaria alguém enquanto fosse ministro, porque não usaria o poder do cargo que ocupa contra um cidadão ou um jornalista. No caso Francenildo, o governo Lula faz muito pior: está usando todo o poder do Estado contra o cidadão. Isso é inadmissível na democracia, mas previsível no governo Lula.

O que está se passando com o caseiro, que acusa o ministro Palocci de mentir quando diz que não esteve na casa do lobby, é o uso grosseiro, abusivo e inconstitucional do aparelho do Estado pelo governo para servir a seus propósitos de obstruir a apuração dos fatos.

Ontem o governo escalou e emitiu sinais de que está usando a Caixa, o Coaf e a Polícia Federal para acuar a testemunha. O Coaf investiga as grandes movimentações financeiras. É informado automaticamente apenas de saques acima de R$ 100 mil. Os valores da conta de Francenildo são abaixo disso.

Encurralado, o governo primeiro pôs em prática a manobra protelatória, mentindo sobre a agilidade da Caixa Econômica Federal de encontrar os dados que permitirão o rastreamento do crime. Os bancos brasileiros fizeram grandes investimentos em informática. Todos os bancos, mesmo os estatais, que foram mais lentos nesse processo. Só com pesados investimentos em tecnologia de informação um banco sobrevive no mercado financeiro sofisticado de hoje. Portanto a hipótese levantada inicialmente, hoje totalmente desmascarada, de que precisava de tempo para buscar a informação é falsa. Visava a dar tempo à Caixa, onde o presidente, Jorge Mattoso, arrumava tranqüilamente as malas, certo da impunidade, para ir ao Japão. Quando o tempo fechou em Brasília, ele decidiu não decolar.

O segundo passo da tentativa de escapar ileso do crime cometido é o governo entregar uma “cabeça” aos políticos e à opinião pública. Não ajuda muito. O caso revela a sem-cerimônia com que o governo Lula se apossou do Estado, como se fosse seu protetorado e capitania. O governo do PT tem mostrado uma crônica incapacidade de enxergar a fronteira entre público e privado; entre Estado e governo.

O filho do presidente convida os amigos para férias por conta do erário. Os amigos viajam em avião da FAB e usam o Palácio Alvorada como resort. Quando o governo foi questionado pela imprensa, o presidente determinou que ninguém falasse sobre o assunto, nem mesmo a FAB, e reagiu indignado como se sua privacidade estivesse sendo invadida.

Os limites da privacidade de uma pessoa que ocupa um cargo público são diferentes de uma que não está a serviço do governo. Interessa saber, não os segredos pessoais, mas até que ponto o interesse público foi atingido. O ministro Palocci não pode reclamar de privacidade para proteger a informação sobre se ele foi ou não à casa do lobby montada por seus ex-assessores e amigos. Como ministro da Fazenda, com os poderes que tem, ele não pode ir a uma casa suspeita como aquela; qualquer que tenha sido a sua motivação. Não há como separar o público e o privado no caso. Simplesmente um ministro não pode freqüentar local onde secretamente se faz lobby.

Quando aparelhou todos os órgãos públicos, indicando pessoas sem qualquer capacidade para grande parte dos cargos da máquina pública; quando permitiu que dirigentes do PT usassem as instalações do Palácio do Planalto como se fossem propriedade petista; quando transformou a auto-suficiência de petróleo, conquistada por cinco séculos de esforço nacional, em campanha da atual gestão e em ano eleitoral, o governo Lula estava mostrando que não sabe diferenciar Estado de governo.

O governo Lula foi um retrocesso em inúmeros processos de aperfeiçoamento que o país vinha conquistando nos últimos tempos. O uso das agências como cabide de emprego de políticos sem mandato representou um enorme prejuízo em termos de avanço regulatório. No caso do petróleo, em que uma empresa é praticamente detentora de monopólio, a independência da ANP era fundamental para que a regulação fosse cumprida. Hoje, que poder teria a agência para impor qualquer limitação à poderosa estatal?

O caso Francenildo é o mais grave, o mais grosseiro, dos desrespeitos às fronteiras institucionais. Mas, quando era oposição, como bem lembrou ontem Tereza Cruvinel, o PT se aproveitava de informações que certos militantes dentro dos bancos passavam para o partido.

Certa vez, numa coluna que jamais esqueci, o nosso mestre Castelinho usou a expressão “imprecisos limites éticos” para se referir à equipe econômica do governo Collor, naquela época, sob denúncias de uso do dinheiro de PC Farias. Esta mesma imprecisão se alastrou no atual governo, contaminou a base partidária e deteriora as instituições brasileiras como a máxima do “fiz, mas quem não faz?” que parece imperar no governo.

Os deputados mensaleiros estão escapando desta ilesos, bastando, para isso, dizer que o dinheiro foi usado para o pagamento de contas de campanha. Isso é uma descarada forma de legalizar o caixa dois, aquilo que Lula afirma ser feito sistematicamente no país. Um político que recebe dinheiro em espécie, sem origem conhecida, de uma empresa de publicidade que presta serviços ao governo, e, além disso, não declarava o valor recebido à Justiça Eleitoral, é perdoado se usou o dinheiro para pagar dívidas de campanha. Isso cria então a lavanderia oficial do dinheiro sujo.

O que está acontecendo com o caseiro Nildo é uma perturbação inaceitável do estado de direito, um desrespeito aos direitos individuais. Não é mero evento da campanha eleitoral, como os petistas afirmam. É o governo usando o Estado para ameaçar um cidadão. A democracia não tolera um fato assim.
Miriam Leitão

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