domingo, março 05, 2006

Entrevista imaginária

Bem, terminou o carnaval, o ano finalmente vai começar aqui no Brasil, não é verdade? O senhor...

— Não, ainda tem a semana santa. Só começa mesmo depois do feriadão da semana santa. Quer dizer, para os otários, para mim já começou desde o primeiro dia, eu não paro.

— Quer dizer que o senhor vai continuar firme na campanha.

— Campanha, que campanha? Eu não estou fazendo campanha nenhuma, não anunciei decisão nenhuma sobre minha candidatura. Não sou candidato, sou presidente da República.

— Sim, de fato o senhor não se declarou candidato. Mas parece óbvio que está se conduzindo como se estivesse em plena campanha.

— Parecer não é ser. É por isso que vocês dizem que eu não acho que estudar é importante. Não é isso, é que você, por exemplo, deve ter não sei quantos anos de estudo nas costas, mas não distingue ser de parecer. Quer dizer, estudou para quê, para dizer besteira? Eu posso parecer candidato, mas não sou. Se bem que a imprensa, não atingindo a todos, costume ser bastante irresponsável e saia bradando por aí que eu estou em campanha. Tudo jogada das elites para querer me pegar, mas, quando eles iam plantar o milho, eu já tinha traçado o cuscuz, eles pensam que eu cheguei onde cheguei porque sou besta. É ótimo isso, vão pensando, vão pensando e eu só “créu” neles.

— A que elites o senhor se refere? Ultimamente o senhor tem falado muito nas elites, mas que elites são essas?

— As elites, as elites, todo mundo sabe o que é elite, vá ao dicionário e procure, eu não preciso, aprendi no dicionário da vida.

— Mas eu sei o que é elite, presidente. O que eu quero dizer tem justamente a ver com isso. As elites, segundo me consta, são os que estão no poder. No poder político, no poder econômico, no poder dos países desenvolvidos e assim por diante. O senhor mesmo é da elite política. E o senhor há de convir que essas elites não estão contra o senhor, antes pelo contrário, vivem elogiando o senhor e estão se dando muito bem no seu governo.

— Todo mundo está se dando bem no meu governo! O meu governo é o melhor que este país já viu em toda a sua história! Tudo, em todo e qualquer setor, está indo muito bem. Você veja, até o show dos Rolling Stones foi o maior que este país já viu. Nem na Inglaterra teve um show deles assim. Entre o Tony Blair e eu, eu sou mais eu. Você se lembra do dia em que eu acordei meio atravessado e dei um esporro no Bush? Eu não fico a dever a nenhum líder internacional, falo com eles de igual para igual. O único brasileiro mais popular do que eu no mundo todo é Pelé. Mas eu sigo ali na cola, pergunte a qualquer gringo, de qualquer extração, eles são loucos por mim, até o Bush é meu chapa, já disse várias vezes que vai com a minha cara. Eu não quero ser imodesto, mas também não quero ser hipócrita e, para não ser hipócrita, tenho de reconhecer o meu carisma, eu tenho carisma, isso é o que deixa neguinho doido na oposição.

— O senhor me desculpe, talvez nós estejamos fugindo um pouco do assunto, ou dos assuntos que mais interessam.

— Eu sei os assuntos que mais interessam a vocês, eu conheço a imprensa, mas tudo bem. Vocês fazem todo o possível para desacreditar meu governo, mas não adianta e você sabe disso. Essa eleição está no papo.

— Eu pensei que o senhor disse que não era candidato.

— Olhe aí outro exemplo de distorção. Eu por acaso disse agora que era candidato? Seu gravador não gravou isso. Cheque aí, eu disse uma coisa muito diferente. Eu disse que essa eleição está no papo e está. Você viu as pesquisas? Já fizeram tudo para desmoralizar essas pesquisas, mas está na cara o recado que elas deram: não vem que não tem. Não tem pra ninguém, meu caro amigo.

— O senhor desculpe, mas não posso deixar de lembrar de novo que o senhor disse que não era candidato.

— E eu disse isso? Eu posso vir a ser candidato, mas não sou candidato.

— Desculpe outra vez, mas...

— Está desculpado. Eu já disse uma porção de vezes que tem que ter paciência de Jó para governar esta me..., para governar este país, vá em frente, tudo bem.

— É que todas essas suas aparições públicas, as inaugurações, o anúncio da operação tapa-buracos, o tal saco de bondades, tudo isso não pode ser visto como uma campanha, digamos, mal disfarçada, com o senhor usando eleitoralmente sua posição como presidente? Nem transporte o senhor paga nessas viagens de campanha, quem paga é o governo, ou seja, o povo.

— Olhe aqui, eu não processo você porque não só o que vem de baixo não me atinge como não quero dar trela aos que dizem que eu sou inimigo da imprensa. Mas essa é uma acusação grave, é praticamente uma acusação de crime eleitoral, é calúnia, difamação e injúria. Eu quero provas! Chega de denuncismo vazio e comprometido com as elites. Onde estão as provas?

— Não é questão de prova, é uma percepção.

— Pois continue percebendo, meu jovem. Você vai percebendo e eu vou me mexendo. Bom proveito. Agora, com licença, que eu estou de viagem a Cobrobó, para a pedra fundamental de uma lavanderia popular. Ou seja, trabalhando para depois vocês escreverem que estou fazendo campanha.

João Ubaldo Ribeiro

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