domingo, dezembro 11, 2005

O governo num boteco do Leblon

— Não, isso eu sei. Nós vivemos numa república democrática e temos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Isso eu sei.

—- Tu quer dizer que tu aprendeu isso na escola. Na prova da escola estaria certo, mas a realidade é completamente diferente.

— Como é completamente diferente? Nós temos os três poderes. Tem até a praça deles, lá em Brasília.

— Chute, tudo chute, papo pra otário que nem tu. Metem na cabeça do sujeito certas coisas, ele se acostuma e nem vê que a realidade não é assim.

— Quem não vê é você. Você pode não gostar do governo, mas que tem Executivo, Legislativo e Judiciário você não pode negar. E te explico até mais, eu fui bom aluno de Organização Social e Política do Brasil. São poderes separados e cada um tem sua função. O Executivo executa as leis, o Legislativo faz as leis e o Judiciário aplica a lei aos casos em disputa.

— Bonito, muito bonito. E é assim que funciona?

— É, sim. Qualquer um pode ver. O Executivo...

— Executa as leis que quiser, as que não quiser não executa.

— Não, isso não, executa. Bem ou mal, executa.

— Não executa direito nem o que está na Constituição! Não interessou, não executa nada. Além disso, ele manda lá onde ele pode. Com banqueiro, por exemplo, não manda nada a não ser para pagar juros eternamente.

— Não, isso é sua maneira de ver as coisas, que eu já conheço. Eu repito que você pode não gostar do governo, mas que o Executivo executa as leis, isso para mim ninguém pode contestar.

— Executa, executa. Manda ele executar alguma coisa que desagrade os banqueiros. Ele nem discute. E quem chefia o Executivo?

— Lula, o presidente.

— Lula faz os discursos. Nesse ponto eu entendo até a amizade dele com o Bush, toda vez que se encontram só faltam ficar aos beijos e abraços. Aí, depois dos agrados, eles saem discursando que são isso e são aquilo e que fazem e acontecem. Pode até ser assim lá com o Bush, mas aqui o presidente nem faz nem acontece, a não ser viajando. E, assim mesmo, olhe lá.

— Olhe lá, não, essas viagens podem até ser exageradas, mas muitas delas são importantes para estabelecer ligações, abrir mercados...

— Você não me mostra um tratado, um acordo, uma vantagem, nada, é tudo gogó! Até agora as viagens só renderam viagens mesmo e ele faz qualquer negócio pra sair de Brasília, até a chupeta inaugural de uma creche em Xique-Xique ele é capaz de ir lá para botar na boca do neném e, se deixarem, bota uma chupeta na boca também, como faz com os bonés e as camisetas que enfia a qualquer oportunidade. Está na cara que o Executivo não executa nada e, se executa, não é com ele. Com ele é o discurso. E com o pessoal dele é o Legislativo.

— Como assim, não entendi nada.

— O Legislativo, seu bendito Legislativo. O Legislativo aqui é com o Executivo.

— Tu já deve estar de porre, como é que são feitas as leis, não é no Le-gislativo?

— Absolutamente. É no Executivo, é na medida provisória. Como o presidente não entende nada do que vão fazer, nem quer entender, escrevem uma medida provisória, ele pergunta o que é em poucas palavras e manda ver. Ele disse que nunca iria abusar da medida provisória e desceu a lenha no FH por causa delas, mas agora todo dia tem uma medida provisória ou mais. Por conseguinte, você não está certo. O Legislativo não legisla. E inclusive nem tempo tem, trabalhando do jeito que trabalha e agora se ocupando em investigar a trambicagem e aparecer bem na tevê. O Espetáculo da Trambicagem está rolando que parece que nunca mais vai acabar, todo dia pinta uma novidade.

— Vamos dar de barato que você tenha razão, mas o Judiciário?

— Que é que tem o Judiciário? É a mesma coisa. Agora é que eu vou ver se tu estudou mesmo. Qual é a característica do Judiciário que torna ele diferente dos outros poderes? Essa tu tem que ter aprendido também. Mas tu tá com cara de que não se lembra, então eu te lembro. O Judiciário, de modo geral, só funciona se provocado, sacou? Ou seja, ele fica lá parado, até que alguém não concorda com outro alguém e pede uma decisão. Se for o Zé Dirceu, a decisão sai logo, se for eu, pode chegar ao cinqüentenário de meu neto mais novo. Mas é assim que ele funciona. É assim que ele funciona aqui?

— Bem, que eu saiba é, não é?

— Como é que diziam antigamente? Tu tá mais por fora que umbigo de vedete, cara. Eu te conto um troço que meu sogro me falou. Ele é advogado e advogado sério, nunca andou roubando cliente e defendeu muito pobre, é um homem muito correto. Ele me disse que é verdade consagrada na prática do Direito que o juiz só fala nos autos, sacou? Nos autos! E aqui o presidente do Supremo deita toda hora falação, outro ministro fica confraternizando com advogado de defesa, dizem que, pelo jeito, um deles está fazendo campanha, onde já se viu isso? Por muito menos, nos Estados Unidos, já tinha neguinho pedindo impeachment, aquilo ali era pra ser um lugar sagrado, inatacável. Juiz da Suprema Corte americana nem entrevista dá, eles se compenetram.

— É, pensando bem...

— Pensando bem, mais uma vez a Europa se curva ante o Brasil, foi aqui que nasceu a esculhambocracia.

JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor.