terça-feira, dezembro 13, 2005

A mentira e suas variantes

Jarbas Passarinho

Montaigne, ao seu tempo, escrevia que os gramáticos faziam uma diferença entre dizer uma mentira e mentir: 'Dizer uma mentira é dizer uma coisa falsa que a gente crê verdadeira, ao passo que mentir é falar contra a própria consciência.' Nos dias atuais há quem identifique o dizer uma mentira com a 'mentirinha carioca', que não causa dano algum.
Responder a um convite que não se quer aceitar, por exemplo, alegando 'compromissos anteriores'. Há, porém, a mentira de quem fala contra a própria consciência pretendendo estar dizendo como verdade o que sabe que não o é. Não faz muito, num elevador, uma senhora respeitável disse que eram tolos os que acreditaram terem os americanos chegado à Lua, pois não passava de montagem de computador. A porta do elevador se fechou sem que eu pudesse retrucar à ilustre senhora que milhões de pessoas viram, na TV, Neil Armstrong andar na superfície deserta da Lua, no tempo em que os computadores não dispunham da tecnologia de hoje.
Semelhante a isso foi o presidente do Irã negar o Holocausto, provado, e os campos de extermínio, filmados quando os Aliados chegaram a eles, após vencerem o nazismo.
Muito mais grave é a mentira dos que falam em desacordo com o que sabem, comprometendo a própria consciência. Uns, porque a memória é fraca. Daí se dizer que consciência tranqüila às vezes é falta de memória. Outros, porque a memória é mais prolixa do que a imaginação. É o que se passa atualmente no Brasil, desde que a TV mostrou Waldomiro Diniz extorquindo modestamente 1% para si mesmo, ao negociar vantagem que envolvia dinheiro público.
Tratava-se do subchefe da Casa Civil, um amigo íntimo do então poderoso ministro José Dirceu, com quem partilhara o apartamento funcional ao tempo em que o ministro era deputado federal. O flagrante mereceu do bondoso Waldomiro a versão de que o modesto 1% não era para si mesmo, mas para socorrer financeiramente um amigo que, como dizia dos moribundos o padre Antonio Vieira, estava 'em artigo de morte'. Generosidade que, morto o amigo, negou a viúva a versão caridosa. O prestígio do assessor fraterno do ministro José Dirceu foi, porém, tão grande que, peculatário, foi demitido honrosamente a pedido, e não a bem do serviço público, como ocorre devidamente com os deserdados do poder.
A mentira veio a ter muitos seguidores, a começar pelo diretor dos Correios flagrado ao receber e embolsar R$ 3 mil, mostrados na TV. A propina, fez crer, dela não se beneficiara, pois pertenceria a uma cota do PTB. Era, apenas, um intermediário, agindo pelo bem da causa nobre de arrecadar dinheiro público para a tesouraria do partido que apoiava o governo. O PT defendia-se dizendo que nem um nem outro pertenciam ao partido da estrela vermelha.
Depois da sucessão de escândalos que abarrotaram a choldra do caixa 2, agora já se tratava de preeminentes próceres petistas, supostos defensores imaculados da ética. A Lula, alçado à Presidência da República, caberia lavar, como Hércules, as sujas cavalariças deixadas pelos antecessores antiéticos. Indignado, o presidente bradou: 'Fui traído!' Pobre presidente, sem nada saber, traído pelo seu entourage associado a Marcos Valério, o rei Midas que transformou em ouro a tesouraria de Delúbio. Meses funestos para o presidente, um líder que veio do segmento mais baixo da população brasileira. Torneiro mecânico, já fora traído pela máquina que lhe roubara um dedo, no acidente de trabalho, culpa da empresa capitalista, no afã de produzir mais lucro, insensível à dignidade da vida humana e à segurança no trabalho. Em seu auxílio, o honesto Tarso Genro assumiu interinamente o espólio disposto a 'refundar o PT'. Brava confissão do síndico da massa falida.
Na política, é regra o criador ser traído pela criatura.
Sem uma palavra de confirmação, Roberto Jefferson identificou na criatura o então ministro José Dirceu. Em defesa de Lula, intimou: 'Sai daí, Zé. Você está comprometendo um homem bom.' A imediata exoneração de Dirceu deu a impressão de que Jefferson acertara na mosca, ainda que o presidente, ao despedir-se do auxiliar, lhe haja dirigido carinhosas palavras seguidas ao vocativo 'querido Zé'. Dava para imaginar a mágoa, pois, como canta Milton Nascimento, 'amigo é coisa para se guardar no lado esquerdo do peito'. Júlio César, traído e apunhalado no Senado romano, agonizante, ainda exclamou: 'Até tu, Brutus?!' Abandonado pelo Palácio, Dirceu foi cassado. Entrevistado, disse ser Lula uma pessoa difícil e seu governo, acabado. Bem antes dizia que tudo o que fazia era do conhecimento de Lula. Logo, este se obriga a dizêlo inocente. Do contrário, teria sido conivente, como acusam os poucos que falam em impeachment.
Sem poder defender-se da enxurrada de escândalos revelados pelas CPIs, ressuscita a teoria do golpismo. Lula lembra a deposição fugaz de Hugo Chávez pela elite venezuelana. Aqui Lula tem excelentes relações com as elites: o Congresso; quase todos os governadores; o patronato, especialmente os bancos logrando lucros sem igual no passado; a Igreja; a mídia, notadamente a televisão. E conta com o respeito dos militares disciplinados, nos seus quartéis. Decepções são gerais, mas não passam disso.
De onde viriam as forças golpistas que levaram o senador Aloizio Mercadante (PT-SP) a lembrar que nos últimos 60 anos nenhum presidente chegou ao fim do mandato? Parafraseando Marx, um fantasma ronda o PT: o da invenção do golpismo. Deveria ter, sim, vergonha da série interminável dos escândalos escabrosos que enlameiam este país e nos revoltam há mais de sete meses.?
Golpismo? Deviam é se envergonhar dos escândalos que enlameiam o País

Jarbas Passarinho, ex-presidente da Fundação Milton Campos, foi senador pelo Estado do Pará e ministro de Estado

Um comentário:

Anônimo disse...

Best regards from NY! »