Por Reinaldo Azevedo
Um leitor me acusa de arrogante por causa de um texto da edição anterior, em que afirmo que o mal maior do jornalismo político é a ignorância — especialmente aquela sobre a ciência política. Pode ser. Nunca me orgulhei da minha humildade. Nem mesmo acredito que isso exista. Acho a modéstia uma forma disfarçada de chantagem ou um refinamento da soberba. Como certas celebridades que gostam de usar sandálias de dedo em festas requintadas. É uma suposta nobreza de origem ou conquistada que lhes garante a licença. Trata-se de concupiscência do despojamento. Vão ler Santo Agostinho e não me torrem a paciência. Seu despojamento corresponde a um casaco cheio de brocados. Não é por acaso que, nessas festas, os serviçais estão sempre com roupa impecável. Só trouxa cai nessa conversa.
Por isso, queridos, esse papo de “modéstia”, “humildade” ou “despojamento”, comigo, não cola. Os que baixam os olhos podem estar pensado coisas horríveis. Prefiro gente de nariz empinado. Entre a subserviência instrumental e a arrogância, fico com a segunda. Portanto, não tentem me ofender por aí. Não dou a mínima. Nunca disse que era modesto. Modesto era Lula... Não é, por exemplo, a arrogância de José Dirceu que me faz combatê-lo. Ao contrário. Acho o melhor traço do seu caráter. Melhor ele do que aqueles petistas que gostam de sambar miudinho ou de fazer proselitismo bossa-nova — falando macio e com o autoritarismo sempre no diminutivo ético: Renato Janine Ribeiro, por exemplo. Até me identifico um pouco com o apelo olímpico do ex-superministro. A diferença é que eu só posso fazer mal a mim mesmo. Meu hospício é minha vida privada. O de Dirceu é o Brasil. As coisas se complicam. Por que cheguei aqui?
Eu falava sobre a necessidade de haver certos pressupostos de formação intelectual para que a análise política não degenere em puro impressionismo e para que a mistificação não seja o galardão dos picaretas (com copyright de Lula) ideológicos. Pensei nisso ao ler alguns panegíricos, que se fingiam de análise crítica, dedicados a José Dirceu. Leiam atentamente. A maioria lamenta que aquele jovem romântico e namorador, cheio de ideais, tenha-se tornado essa figura algo cinzenta, com coragem — ah, a fidelidade! — para defender “o companheiro Delúbio Soares”. Vêem nele um desvio, não uma continuidade.
Para Marcelo Coelho, colunista da Folha, “Dirceu não foi cassado por suas relações com Che Guevara e Fidel Castro, e sim por suas relações com Marcos Valério e Valdemar Costa Neto”. Errado. É uma análise, à diferença do que parece, generosa com o ex-ministro. Ele só se meteu com os dois últimos (o que nega) porque é íntimo moral e ideológico dos dois primeiros. É seu apego a uma ideologia finalista que o faz não distinguir os meios. Se o “bem final” existe, então tudo lhe é permitido. E é fácil provar que é assim.
Roberto Jefferson, o nosso traidor virtuoso, foi cassado, e ninguém o chamou para dar uma entrevista na TV ou analisar a conjuntura política. Dirceu, ao que vejo, dois dias depois, já é o “magister dixit” dos programas de debate político. Coelho há de admitir que isso acontece não por causa de suas “relações com Marcos Valério e Valdemar Costa Neto”, e sim por causa de sua proximidade ideológica com Che Guevara e Fidel Castro. Jefferson, que ajudou a nos livrar de uma tentação totalitária, afinal de contas, é só um bode da “direita” ou um monstrengo do fisiologismo. Ah, Dirceu, não! Este tem tutano, a gente lê nas estrelinhas. Ah, esse tem história. Qual história?
A imprensa que Dirceu acusa de tê-lo derrubado, que os seus sequazes chamam de “burguesa”, está coalhada de formas variadas de petistas e petismos — ou de “esquerdismo”, para ser mais genérico. O termo pode assumir significações distintas a depender do que esteja em debate. Sob certo ponto de vista, defender uma distribuição de renda um pouco mais justa já pode significar um alinhamento com essa tal esquerda. Mas não é a isso que estou me referindo, não. Falo mesmo é da ideologia que, de fato e para todos os efeitos, justifica o crime desde que se esteja mirando um futuro redentor.
Ou alguém me explique o que faz Dirceu na TV como uma espécie de ombudsman do processo político e fino analista da conjuntura brasileira. Ora, tenham a santa paciência! Por quê? Voltando a Coelho, creio que não sejam as suas credenciais junto a Marcos Valério ou a Costa Neto a habilitá-lo. Não sendo estas, então são quais? A resposta é tristemente óbvia. Confere-se legitimidade tanto à forma como Dirceu tentou mudar o país no passado — ele queria uma ditadura comunista — como às suas aspirações presentes. A adesão a métodos eventualmente heterodoxos de ação política foi, como dizer?, um “erro”, palavra que ele emprega muito.
Aliás, esse “erro” merecia especial atenção semiológica no discurso do deputado cassado. Eu, até agora, não o vi fazer mea-culpa de nada. Ao contrário. Só o vejo negando que tenha cometido qualquer irregularidade, cada vez mais “convencido” da sua “inocência”. Quando ele recorre ao termo “erro”, parece estar designando tão-somente uma falha de operação, de logística. Não teria sabido fazer a coisa direito; teria se descuidado do modus operandi; teria subestimado os fatores adversos da conjuntura. Mas, na essência, não há um miserável recuo. Age, parece, como alguém que, pego em flagrante, lamente não a derrocada, mas a falta de planejamento para cometer o crime perfeito.
Cada um se divirta e se encante com o que quiser. Rica e rara, para mim, foi a vida de Ulysses Guimarães, por exemplo. Não rende romance. José Dirceu não é uma personagem dos Anos Rebeldes, de Gilberto Braga. A história brasileira, mesmo a dos anos 60, está mais para o naturalismo do que para o romantismo tardio. Até compreendo, num plano puramente psicológico, que se possa suspirar por um jovem idealista, bonitão e quase-guerrilheiro. As pessoas deliram pelos mais estranhos motivos.
Estão olhando para o já bastante redondo José Dirceu e enxergando o Che Guevara da foto de Alberto Korda, com aquele corte maroto, que o faz olhar para o futuro da humanidade. A foto inteira não é nada daquilo. Pesquisem. O comunismo é craque tanto em apagar retratos como em cortá-los. Ocorre que aquele olhar cheio de amanhãs sorridentes resultou na ditadura do decrépito Fidel Castro, hoje amparada por estadistas como Maradona e Hugo Chávez.
É o mito da resistência e da luta contra as injustiças que faz o Dirceu de Marcos Valério e Costa Neto posar de fino pensador e observador privilegiado da cena política. Esperem aí. Esse é o cara que abrigava Waldomiro Diniz no Palácio do Planalto. Esse é o cara que desenhou as alianças. Esse é o verdadeiro titereiro do lulo-petismo, um modelo protototalitário. Por que choram as carpideiras? Por que tanta emoção? Quando é que Chico Buarque vai lhe dedicar um hino? Sugiro algo minimalista assim: “Vai passar/ já passou”.
Pobre imprensa burguesa! Ainda bem que continua a ser salva pelos classificados e pelos anúncios, que não têm ideologia (salvo aqueles a cargo de Luiz Gushiken). Entregue que ficasse aos inocentes úteis, a democracia já teria ido para o brejo há muito tempo. No meu arquivo implacável, tenho lá os boquirrotos atacando FHC porque este dizia “barbaridades” como “a democracia é um processo” ou a “utopia do possível”. Nada! Rapazes, moças e alguns velhos tontos, animados ainda pela foto de Alberto Korda (nem eles sabiam disso; trata-se de uma contaminação do espírito), queriam era ação direta e, pasmem!, aposta no impossível.
Sabem o que senti quando Dirceu foi cassado? Nada. Disse apenas: “Um a menos”. E pensei em Lula e em Rita Lee: “Agora só falta você, iê, iê, iê”.
[reinaldo@primeiraleitura.com.br]
Publicado em 2 de dezembro de 2005.
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