sexta-feira, dezembro 16, 2005

A falta que faz um Lacerda...

A semana começou com o presidente Lula tachando a oposição de 'golpista'. A incontinência verbal de Sua Excelência, os seus atentados à gramática, bem como a terminologia imprópria de que se costuma valer são por demais conhecidos da opinião pública.
Já é de hábito, entre nós, não tomar as suas palavras pelo valor de face. Concede-se a elas um deságio generoso, desconto que jamais foi concedido a nenhum de seus antecessores.
Mas acusar de golpismo os seus opositores, mais do que uma enormidade, é uma injustiça flagrante. Fosse eu o presidente, agradeceria ao Santíssimo todos os dias por contar com adversários tão tíbios e pusilânimes. Fossem estes os inimigos de Collor, o ex-presidente teria terminado tranqüilamente o seu mandato. Faz falta à oposição atual um destemido cruzado à semelhança de um Carlos Lacerda. Vivo fosse, ele já teria feito desembarcar do Planalto, com desonra, o presidente, seu partido e todos os seus demais acólitos.
Bastar-lhe-iam cinco ou seis virulentas catilinárias, na tribuna parlamentar ou nas redes de rádio e TV, e o povo, furioso, estaria, em uníssono, exigindo nas ruas a defenestração sumária do atual governo.
Mas Lacerda não está mais entre nós. E os carbonários que lhe sucederam, sem o mesmo talento, foram os zangados militantes do PT. Por mais de duas décadas infernizaram a República, até que um dia chegaram ao poder. Deveria haver um outro PT, à semelhança da antiga União Democrática Nacional (UDN), para fazerlhe oposição. Como não existe um partido com tais características, a tarefa de contestar o governo fica a cargo dos ultramoderados parlamentares do PFL e do PSDB.
Personalidades como o tribuno carioca fazem falta. Como um Bayard, o cavaleiro
sans peur et sans reproche (sem medo e sem jaça) Lacerda se impunha no cenário político porque não havia flancos por onde atacá-lo. Não temia nada nem ninguém. Podia-se condená-lo pelo seu radicalismo, mas jamais pela sua conduta pessoal. Como governador da Guanabara, portou-se de forma coerente com a sua pregação moralista. Os políticos atuais não se arriscam a imitálo. Os do PT já não podem fazêlo porque, uma vez no poder, demonstraram ter todos os vícios imagináveis. Os da oposição também não podem porque já ocuparam o governo e nele cometeram as suas próprias faltas.
Sem medo e, sobretudo, sem jaça não existe mais ninguém. E é por isso que Lula enfrenta uma oposição tão escrupulosa. É uma enorme injustiça chamá-la de golpista. Mesmo nos momentos mais negros da atual crise política, ninguém se levantou sequer para aventar a possibilidade de um impeachment. Ao contrário. O que mais se falou foi na necessidade de preservar a 'governabilidade'. Quando Lula estava com os flancos desprotegidos, ninguém se animou a tentar um xeque ao rei - que poderia facilmente transformar-se num xeque-mate.
Por falta de um Lacerda, ficamos assim nessa situação nebulosa. O suborno de parlamentares pelo PT está mais do que comprovado. Que Lula sabia de tudo, não há no País quem duvide. Mas não há quem se arrisque a dar o passo seguinte, qual seja o de processar o presidente por crime de responsabilidade. 'Falta o povo nas ruas', desculpam-se os líderes oposicionistas.
Ora, o povo não sai às ruas espontaneamente.
Há que existir alguém, com autoridade moral para tanto, que se disponha a arengar às massas, explicar-lhes a gravidade do que está ocorrendo e conclamá-las a demonstrar a sua insatisfação.
Se mantida a atual apatia, a crise será superada com a cassação de Roberto Jefferson, José Dirceu e mais meia dúzia de parlamentares. 'Falta alguém em Nuremberg', diria David Nasser. Na verdade, falta mais gente do que se imagina.
Por que ninguém se anima a desentranhar as contas do PT no exterior, que serviram, entre outras coisas, para remunerar o sr. Duda Mendonça e internalizar os presumíveis dólares doados por Fidel Castro (há quem diga que de Kadafi também...)? Esses eventuais donativos não configuram um gravíssimo atentado à soberania nacional? Por que ninguém se dispõe a vasculhar de onde vieram, na verdade, as dezenas, talvez centenas de milhões de reais que Marcos Valério alega ter tomado 'emprestados para ajudar o PT'? Uma vez comprovado o fato de que os fundos de pensão estatais obedeciam às ordens de Luiz Gushiken e que eles tiveram um gigantesco 'prejuízo' na gestão petista, por que não se procede a uma verdadeira devassa nas contas dessas instituições? Por que ninguém, até agora, se propôs a convocar o filho do presidente para explicar os motivos por que a Telemar se interessou em investir milhões de reais em sua firma de fundo de quintal? Não é a Telemar uma concessionária de serviços públicos? Parte da Telemar não pertence ao governo, via BNDES? Será que existe alguém, na 'leal oposição de Sua Majestade', que acredite, realmente, que Delúbio Soares, orientado por Dirceu, e o ex-ministro da Casa Civil são os únicos responsáveis por toda essa bandalheira que ocorreu? Não, Lula não tem motivos para acusar a oposição de golpista, nem sequer de radical ou intransigente. Ele deve, isso sim, dar graças aos céus por não existir mais nenhum partido com a ira cívica e a determinação da antiga UDN.
Lacerda tinha lá os seus defeitos. Era radical, incendiário e se comprazia, de maneira quase sádica, em demolir a reputação dos poderosos de plantão. Mas há momentos em que gente assim faz falta.Tivesse Lula, por azar, topado com alguém como ele, já de há muito teria voltado para seu apartamento em São Bernardo do Campo.


João Mellão Neto, jornalista, foi deputado federal, secretário e ministro de Estado.
E-mail: j.mellao@uol.com.br Fax: (11) 3845-1794 Site: www.mellao.com.br

Um comentário:

Camarada Arcanjo disse...

Brilhante texto.
Dá vontade de recriar um partido como a UDN.
Direita, patriota (não nacionalista burra, tipo sacy+corrupção), compromisso com o desenvolvimento patrimonnial e social do cidadão, fomento para a indústria e para o consumo, realização de obras integradas com políticas públicas habitacionais, educacionais, sanitárias, empregos, médico-hospitalares, transporte, comunicação, implantação em todos os níveis da meritocracia, fomento de políticas públicas para a defesa nacional e para a elevação do nível econômico de todas as classes sociais com a ampliação efetiva da classe média.

Isto deve ser feito! Necessário coagular esta vontade, solidificando essa idéia. Teremos inicialmente que nos abstrairmos dos partidos políticos atuais.