quarta-feira, setembro 12, 2007

Escárnio

O caso Renan Calheiros dá um novo significado ao termo "avacalhação" --sim, o trocadilho é intencional. Os senadores que o absolveram hoje escarnecem da opinião pública que deveriam representar. Poucas vezes se viu um espetáculo tão deslavado de corporativismo, e diante de evidências tão sólidas de irregularidades que constituem, para além de qualquer dúvida, quebra de decoro parlamentar.

Em seus primórdios, o escândalo despontou discreto, "familiar". Tudo começou em maio, quando a revista "Veja" estampou reportagem afirmando que o senador teve despesas pessoais pagas pelo lobista Cláudio Gontijo, da empreiteira Mendes Júnior. O dinheiro serviria para bancar pensão da filha que Renan teve com a jornalista Mônica Veloso --a mulher bonita da vez. Até aí, tudo normal, se procedêssemos a um escrutínio cuidadoso, muitos membros do Congresso teriam muitas explicações a dar. No mais, o país já se habituou a ver escândalos políticos revelarem beldades calipígias.

O que se seguiu à acusação inicial contra Renan é que redefine os padrões de corporativismo do Congresso e dá nova materialidade à noção de cara-de-pau.

Para rebater a denúncia, o senador afirmou que Gontijo era um velho amigo que, por imperativos de discrição --Renan é casado--, apenas repassava a Mônica dinheiro do próprio presidente do Senado. A tentativa de explicação é meio canhestra, mas, à luz do "in dubio pro reo", pode-se dizer que pelo menos parava em pé.

Surgiu, porém, um problema patrimonial. Para justificar as transferências, todas em espécie, sem registro bancário, o senador recorreu a seus dotes como pecuarista. Constatou-se que estávamos diante de um verdadeiro prodígio do mundo dos negócios, que, com um rebanho alagoano, conseguia lucros muito superiores aos auferidos por tradicionais criadores das mais produtivas regiões de São Paulo ou do Rio Grande do Sul. De novo, precisamos dar ao senador o benefício da dúvida. Seria injusto, afinal, pretender puni-lo apenas por ser mais eficiente que a média de um setor notoriamente arcaico.

Como que a submeter o Renan a nova provação, reportagem do "Jornal Nacional" mostrou as notas apresentadas pelo senador para sustentar sua versão incluíam recibos com irregularidades e emitidos por empresas de fachada. Renan, é claro, não se deu por vencido. Atribuiu os problemas fiscais a intermediários. Ele teria agido de boa-fé. E não se pode esperar de um senador da República que seja, além de bom amante, pai consciencioso e pecuarista exemplar, também um "expert" em fraudes.

O caso ganhou contornos ainda mais dramáticos quando um dos frigoríficos para os quais o senador teria vendido gado foi assaltado na véspera do dia em que entregaria documentos para serem periciados pela Polícia Federal. Papéis que interessavam à apuração foram levados pelos bandidos. É muito azar, considerando-se que o espicilégio poderia corroborar a defesa do parlamentar.

Apesar dos contratempos, a PF acabou concluindo sua investigação. Afirmou que os documentos apresentados pelo senador não eram suficientes para sustentar a sua história. Disse que a papelada apresentava lacunas graves, como a ausência de registro de despesas de custeio na atividade pecuária. O pagamento de mão-de-obra, por exemplo, só aparece na movimentação financeira de 2006 e não na dos anos anteriores.

Outro problema constatado foi a multiplicação do gado. Em 2004 surgiram cem reses na criação, sem que haja registro de compra ou de nascimentos. Dado que a ciência não acata mais a abiogênese, o senador fica com um problema. Não é só. Como os peritos apontaram um déficit nas contas de 2005, Renan Calheiros apareceu com um empréstimo de R$ 178 mil tomado à empresa Costa Dourada Veículos que ele antes "esquecera" de declarar.

Enquanto se desenrolavam tais batalhas em torno da contabilidade rural, surgiram outras denúncias contra o senador. Ele teria favorecido a cervejaria Schincariol, que comprou uma fábrica de Olavo Calheiros, irmão de Renan e teria adquirido, com recurso a testas-de-ferro, uma rádio e um jornal em Alagoas, no valor de R$ 2,5 milhões. O presidente do Senado, é claro, nega ambas as acusações.

Acreditemos ou não em sua inocência, precisamos reconhecer em Renan a virtude da tenacidade. Não sou especialista em análise probabilística, mas creio serem bastante reduzidas as chances de que as dificuldades do senador se devam apenas a uma conjunção de azares, talvez temperadas por erros menores.

Não estou, é claro, defendendo o linchamento do senador. Tantos e tamanhos indícios devem converter-se num processo ao longo do qual Renan terá a oportunidade de defender-se, longe da tão temida pressão da mídia. Mas um mínimo daquilo que alguns chamam de vergonha na cara exigiria que Renan se afastasse da presidência do Senado e do próprio mandato de senador até que a situação estivesse judicialmente esclarecida em seu favor. Por bem menos políticos asiáticos costumam praticar o suicídio. No Brasil, porém, Renan não apenas se mantém no cargo como ainda manobra descaradamente para dificultar os trâmites da representação no Conselho de Ética. Nas horas vagas, distribui ameaças veladas, contra colegas que não estariam dispostos a apoiá-lo, e abertas, contra a editora Abril, responsável pela "Veja". Até acredito que possa haver um complô. A Abril, afinal, também edita a revista "Playboy", que tem suas vendas multiplicadas por escândalos que envolvam mulheres bonitas que se disponham a posar nuas, como é o caso de Mônica Veloso.

Brincadeiras à parte, há um elemento-chave que torna possível tanta desfaçatez a céu aberto: o voto secreto em plenário para a cassação de parlamentares acusados de traquinagens éticas.

Costumo ser bastante cético em relação ao bem que grandes reformas políticas possam trazer, mas pôr fim ao voto secreto de deputados e senadores é uma medida urgente. Representantes da população, antes de satisfações a suas consciências, as devem ao eleitor. O circuito democrático simplesmente não se completa se o representado não tem como averiguar o desempenho de seu representante. É preciso retirar da cena este fio desencapado que coloca o próprio sistema democrático em curto-circuito.

Uma rápida passada pelo mais rumoroso escândalo dos últimos tempos --o mensalão-- dá bem a dimensão do mal que o voto secreto tem causado aos hábitos políticos do país. Nada menos do que 19 deputados foram acusados de empanzinar-se com recursos ilícitos do chamado valerioduto --o esquema criminoso de compra de parlamentares gerido pelo publicitário Marcos Valério de Souza. Destes, 12 foram inocentados em plenário; quatro renunciaram antes da abertura do processo para escapar à punição; e apenas três foram cassados.

Há no Congresso uma proposta de emenda constitucional que acaba com o voto secreto em plenário, só que, contrariando a praxe da Casa, ela dormita há um ano nos escaninhos da Câmara. Foi aprovada em primeiro turno pelo incrível placar de 383 a zero, mas precisa passar por uma segunda votação antes de ir para o Senado. Normalmente, o prazo entre as duas votações na Câmara --a segunda delas quase protocolar-- não passa de um mês. É a prova perfeita de que o Brasil conta com dois Congressos, um que opera sob os olhares atentos da sociedade, no qual as votações são abertas e a opinião pública é levada em conta, e outro, mais sombrio, no qual parlamentares representam apenas seus próprios interesses, nem sempre confessáveis. É nesse Congresso-fantasma que prosperam Renans, Severinos, mensaleiros e sanguessugas. Sombras se combatem com luz, transparência.
Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha.

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