sábado, maio 27, 2006

Moral em concordata

Por levar uma vida muito pobre, Estrela começa a buscar outras formas de ganhar a vida. Com ela mora sua irmã Rosário, que é totalmente diferente: bonita, cercada de admiradores e, segundo seus vizinhos, "uma vigarista que troca a noite pelo dia". Inspirada na irmã, Estrela decide dar uma reviravolta na sua vida. Este é o argumento de uma peça (com o título acima) do grande comediógrafo paulista Abílio Pereira de Almeida - do qual se comemora o centenário de nascimento este ano.

A peça era premonitória do Brasil de hoje. Uma certa Estrela partidária (no caso, vermelha), de tanto ver seus irmãos (de outros partidos) se darem bem ao não ligarem a mínima para os fuxicos dos vizinhos - presos à mania boba da "ética na política" -, resolveu optar de vez pela imoralidade - e nela tem feito o povo eleitoral embarcar. A vantagem da moral em concordata é que ela é temporária e pode evitar a falência definitiva. Trata-se de uma flexibilização de comportamentos destinada a adaptá-los a valores mais pragmáticos. Por exemplo, por que o exagero de se falar em crime eleitoral, se dá para julgá-lo simples caixa 2? Por que empregar a terrível palavra "roubo" para descrever a mera utilização de recursos não contabilizados? Qual a diferença entre enviar recursos por transferências interbancárias ou por meio de dólares na cueca - aí não se trata apenas de tamanho de fundos?

Ao jogar a toalha para o reeleitorável presidencial, oferecendo-lhe como concorrente um candidato reserva, apenas para cumprir tabela e poupar seus titulares para 2010, o Triunvirato Trapalhão (Tritrap) - composto de líderes inteligentes, mas estranhamente desastrados, se reunidos, com bons vinhos, em São Paulo ou Nova York - não agiu sem base. Detectou, por antecipação, a inexorável reeleição. Descobriu que é imbatível uma popularidade presidencial baseada no aumento, em 60%, do poder de compra de quem ganha até cinco salários mínimos e num salário mínimo que, pela valorização da moeda nacional, já superou US$ 150 (quando antes se sonhava chegar a US$ 100). Descobriu, por outro lado, que, enquanto 58% da população se preocupa com o desemprego, 57%, com a violência e 38% com a saúde, apenas 7% se revelam preocupados com a falta de ética.

Mensalão? Quadrilha dos 40 (fora os não contabilizados)? Burla descarada à legislação eleitoral? Emprego despudorado do dinheiro dos contribuintes em campanha não confessada? Ratazanas devoradoras do erário por meio das mais diversificadas maracutaias praticadas em amplos setores do serviço público, "aparelhamento" brutal, desvios de verbas, licitações fraudulentas, "avanços" em recursos de estatais, falcatruas com fundos de pensão, propinas, caixas 3, caixas 4 e o que mais? Quem está preocupado com tudo isso? Apenas 7% dos eleitores. Então, por que dar tanta importância a isso?

Mas não há razão para pessimismos. Essa imoralidade é apenas provisória - como a inadimplência coberta por uma concordata. É verdade que uma certa geração poderá acostumar-se, mais do que o desejável, com certas facilidades na dura luta pela vida. Mas uma propinazinha aqui, um dinheirinho por baixo do pano ali, um suborninho discreto, uma falsificaçãozinha que ninguém percebe acolá - sem ser coisa exagerada, que prejudique muito os outros - não poderão melhorar a vida de tanta gente? Também há aí um sentido de isonomia, de igualdade de tratamento e de oportunidades para todos. Se tantas pessoas na vida política têm sido extremamente bem-sucedidas, cometendo seus delitos (quer dizer, erros, equívocos), mas sendo devidamente absolvidas (perdoadas) por seus companheiros de labuta, por que não ter a humildade de fazer igual, de seguir seus métodos de sucesso? Claro que o importante é aprender a não deixar pistas. Já diz o velho ditado popular: "Feio é roubar e não saber carregar."

Outro aprendizado fundamental é o da aparência de indignação ante um flagrante. O que melhor temos absorvido, na observação da vida política brasileira nos últimos tempos, é o pleno êxito produzido pela pura e enfática negação de responsabilidades, mesmo que isso represente um violento atentado à lógica, à clareza dos indícios, à evidência da ocorrência, à realidade dos fatos. Negar com convicção o inegável já é meio caminho para obter a absolvição. Na verdade, nos dias que correm o melhor treinamento para o sucesso consiste no rápido repúdio às próprias culpas. O melhor para quem rouba é fazer o esforço mental - sincero e transparente - para se lembrar de como e quando adquiriu aquilo que alegam ter ele roubado (e que de fato ele roubou). Alguns podem sentir alguma dificuldade nisso - mas o nosso meio público-político está cheio de demonstrações de que tudo é uma questão de treino.

É preciso entender que para se sair bem na vida público-política brasileira, nos tempos atuais, algum esforço de adaptação se torna necessário. Tem-se que adotar o costume das meias verdades, das meias lealdades. Tem-se que reconhecer o valor dos disfarces construtivos, das insinuações desmentíveis, das belas ambigüidades. Tem-se que assumir a nobre fusão do certo com o errado, do ser com o não ser, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Tem-se que admitir que o dito pode ser enriquecido, brilhantemente, pelo posterior não dito - e divulgado com o maior prazer pelos profissionais de imprensa, especialmente se estes forem os acusados de culpados pelo mal-entendido em questão.

Enfim, essa moral em concordata ensinará a sociedade brasileira a não ter medo de ser feliz, ante a flexibilização de sua consciência.

Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e produtor cultural. E-mail: mauro.chaves@attglobal.net