quinta-feira, maio 25, 2006

Força negativa

Talvez o maior dano à democracia que o atual governo causou tenha sido
provocar o descrédito nas instituições públicas e o desânimo, a apatia,
que tomou conta da sociedade diante das graves denúncias de corrupção
surgidas. A partir de sua própria postura de afirmar desconhecer tudo o
que aconteceu à sua volta, Lula deu a senha para que o sorriso idiotizado dos delúbios petistas se tornasse a melhor defesa dos 40 membros da quadrilha que atuava a partir do Palácio do Planalto. Há um consenso de que o governo, a partir do comportamento pessoal do próprio presidente Lula, teve êxito na estratégia de disseminar a idéia de que todos ospolíticos são igualmente corruptos, e de que as denúncias surgidas não passam de reflexos de luta política, pois corrupção sempre houve, a começar pelos oito anos anteriores de governo tucano.

Até que o choque provocado há um ano pelas denúncias do ex-deputado Roberto Jefferson fosse absorvido, a opinião pública reagiu conforme o esperado, e a popularidade do presidente Lula desabou durante alguns meses. Mas aos poucos o trabalho de recuperação da imagem do presidente, às custas da generalização das mazelas dos políticos, especialmente os do PT, conseguiu estabelecer na sociedade a percepção de que política é assim mesmo.

Com atitudes erráticas, que pareciam fruto de uma desorientação genuína,mas hoje se revelam parte de uma estratégia ardilosamente montada, o presidente Lula foi se afastando dos acontecimentos, deixando seus “companheiros” na fogueira, mas ao mesmo tempo instaurando no país um clima propício à impunidade dos acusados do esquema do “mensalão”.
Pudesse o presidente Lula ter assumido a dianteira das ações punitivas aos que inicialmente acusou de traição, o ambiente seria mais saudável hoje.
Para essa hipótese ser verdadeira, no entanto, seria preciso que Lula
realmente desconhecesse o que acontecia à sua volta, o que, a cada dia
fica mais claro, é impossível ter acontecido. O presidente Lula usou seu enorme carisma popular, e os programas assistencialistas, para confundir a opinião pública com atitudes dúbias, auxiliando na criação do álibi do caixa dois para substituir a roubalheira pura e simples. Estabelecida a premissa de que todos são ladrões, Lula sai do episódio isento de culpa pessoal, não se importando que o patrimônio eleitoral do PT tenha se deteriorado pelo caminho.

O líder operário transformou-se no “neo-pai do pobres”, um papel que recusava no início de sua carreira sindical. Para Lula, a CLT é o “AI-5 dos trabalhadores”, e Getúlio Vargas era o “pai dos pobres e mãe dos ricos”, epíteto que hoje é utilizado pelos adversários contra ele. Lula também recusava o populismo getulista, e hoje é acusado do mesmo pecado político, que, no entanto, lhe garante a vasta popularidade que as pesquisas de opinião apontam, devido especialmente ao aumento real do salário-mínimo e a distribuição da Bolsa-Família a 11 milhões de famílias sem uma fiscalização rigorosa das exigências de cuidados médicos e educação.

Hoje, a CLT e a representação sindical, os marcos mais visíveis da Era Vargas, continuam intocados. Mas o sindicato continua cada vez mais atrelado ao Estado, e a reforma sindicalista mantém o imposto sindical, fortalecendo a CUT, entidade que Lula ajudou a fundar. Os sindicalistas se espalham em postos-chave do governo, o número de funcionários públicos contratados, base ideológica e financeira do Partido dos Trabalhadores,cresceu aceleradamente. Mas mudar de opinião sem guardar uma coerência histórica mínima tem sido a tônica do presidente Lula. O “mea-culpa” público que fez diante do ex-presidente José Sarney, a propósito de críticas que teria feito sem saber por que, é apenas o pedágio que paga pelo trabalho de Sarney — a quem um dia chamou de ladrão — de neutralizar a candidatura própria do PMDB.

Quando toda farra eleitoral produzir efeitos plenos, incluindo o
descontrole da Previdência, cujo déficit cresceu 25% em abril e crescerá mais em maio, com o impacto do aumento do salário-mínimo, poderemos ter uma crise fiscal no governo federal de proporções razoáveis. Ao mesmo tempo, temos uma economia mundial que dá sinais de que a crise pode ser mais grave do que se pensava. A persistir, essa mudança de situação pode afetar o ponto central da campanha de reeleição de Lula, que é o sucesso da política econômica. Se o crescimento da economia for menor, se a queda dos juros tiver que ser freada ou, numa hipótese pessimista, o Banco Central tiver que aumentar a taxa durante a campanha eleitoral, e se o dólar voltar a patamares que pressionem a inflação, poderá mudar também o humor do eleitorado.

Com a dificuldade de cumprir o superávit primário de 4,25% do PIB, a variável chave para o equilíbrio das contas públicas seria a velocidade da queda dos juros. Mesmo que nada disso afete as possibilidades de vitória de Lula, estaria em gestação o que, entre tucanos graduados, está sendo classificado de “o sucesso do fracasso”: quanto maior o sucesso eleitoreiro da farra fiscal e do populismo cambial neste ano, pior será o tombo da economia logo em seguida.
Merval Pereira

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