Nacionalização é um termo vago, que acata múltiplas interpretações. Na campanha que o conduziu à Presidência, Evo Morales dançou em torno das labaredas da ambigüidade, sugerindo coisas diferentes para os públicos interno e externo. No governo, seu passo inicial foi regulamentar a lei dos hidrocarbonetos, recuperando para o Estado a propriedade do gás e do petróleo na "boca do poço", cancelando o preço do "gás solidário" oferecido temporariamente à Argentina e impondo negociações destinadas a aumentar os preços de exportação do produto.
Essa "nacionalização" não aplacou o vulcão social que entrou em erupção na Bolívia há três anos, devorando sucessivamente os presidentes Sánchez de Losada e Carlos Mesa. Há semanas, a COB, central sindical do país, ensaiou uma greve geral de advertência, que não chegou a decolar, mas reativou os movimentos sociais de El Alto, a imensa periferia ameríndia de La Paz. Morales, que não quer se juntar à galeria dos defenestrados, produziu então uma segunda interpretação da "nacionalização", na forma do decreto do 1º de Maio. Essa lei representa, de fato, a estatização da produção de gás e petróleo no país.
O decreto de Morales é fruto das circunstâncias internas, mas também de um dado internacional: o respaldo de Hugo Chávez. O presidente boliviano não é um néscio, mas um líder experimentado. Ele não ousaria afrontar as empresas internacionais se lhe faltasse a garantia de que, na hipótese da retirada dessas empresas, a poderosa estatal venezuelana de petróleo injetaria os capitais e a tecnologia para a continuidade da exploração dos hidrocarbonetos.
A decisão final pela estatização, ao que tudo indica, foi adotada às pressas, em consultas bilaterais com Caracas, mas sem qualquer aviso prévio ao Brasil. Na antevéspera do anúncio do decreto, Chávez, Morales e Fidel Castro assinaram um tratado de comércio que formaliza a "geopolítica do petróleo" conduzida pelo primeiro e tem óbvio significado simbólico. Em conjunto, o decreto boliviano e o tratado tripartite selam um alinhamento que exclui o Brasil.
Não é um revés isolado. O tratado de comércio firmado entre o Peru e os EUA somou-se aos acordos bilaterais do Chile, da Colômbia e do Equador com os EUA, provocou a implosão da Comunidade Andina e completou a derrocada da Comunidade Sul-Americana de Nações, proclamada por iniciativa do Brasil na declaração solene e vazia de dezembro de 2004. O próximo passo pode ser a retirada uruguaia do Mercosul, já anunciada pelo presidente Tabaré Vazquez, que acalenta seu próprio acordo comercial com os EUA. O Brasil tem responsabilidade direta, ainda que parcial, no desfecho: a trilha até esses tratados foi aberta pela decisão da "Alca à la carte", articulada entre Washington e Brasília e apresentada pelo chanceler Celso Amorim como retumbante vitória da diplomacia brasileira.
Na sua viagem inaugural ao exterior, em Quito, em janeiro de 2003, Lula ressuscitou o adágio anacrônico da "liderança natural" brasileira na esfera sul-americana. "Vamos desbravar a América do Sul, tão próxima e tão distante", anunciou em êxtase e deslumbramento, negando-se a reconhecer a história que o precedia. O próximo presidente, seja ele quem for, está condenado a recolher os cacos das relações externas do Brasil.
Demétrio Magnoli - magnoli@ajato.com.br
2 comentários:
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