sábado, abril 22, 2006

Homens em tempos sombrios

A situação no Brasil está tão estranha que decidi revisitar o livro de Hannah Arendt "Homens em Tempos Sombrios" ("Men in Dark Times"). O exemplar, junto com outros livros, foi atingido pela chuva no velho ateliê da rua Alice: páginas amarrotadas, manchas aqui e ali, mas inteiro.
Não buscava rever as trajetórias, em tempos difíceis, de Rosa Luxemburgo, Karl Jaspers, Walter Benjamin ou Isak Dinesen. Lembrei-me de que, no discurso em que recebeu o Prêmio Lessing, em Friburgo, ela havia desenvolvido uma definição de tempos sombrios. O tema do livro é a descrição das trajetórias de alguns intelectuais que, em conflito com o mundo e com a opinião pública, conseguem um nível de concórdia com suas próprias audiências.
Tempos sombrios, para ela, eram também aqueles em que faltava um espaço público, uma zona iluminada de aparência onde as pessoas se revelavam pelo seu discurso e pelas suas ações práticas. Neste sentido, não é possível dizer que vivemos em tempos sombrios.
Existe hoje no Brasil, mais do que no passado, um espaço de troca de idéias, uma imprensa competitiva, uma nervosa blogosfera, um ministério que dá nome às coisas, sem subterfúgios.
Esse espaço iluminado, se incluímos também a televisão, envolve a maioria do país. No entanto, ainda há algumas áreas sombrias aonde a informação não chega, como atestam pesquisas em São Paulo: ignora-se o nome dos novos prefeito e governador.
No meio desse espaço, entre luz e sombra, há uma grande área cinzenta de pessoas que conhecem as informações, mas não extraem delas as conseqüências lógicas: admitem, simultaneamente, a existência da corrupção no governo e o desejo de continuidade.
A cor não foi pensada aí como um juízo de valor. Uso-a como um fotógrafo que mede a luz pelo cartão cinza, para não ser enganado nem pela zona muito clara nem pela sombra.
Essa área entre luz e sombra, tem suas razões profundas. Compreende a corrupção como algo antigo e, ao constatar que os novos dirigentes caíram no mesmo erro, conclui que são todos iguais: é necessário escolher aquele que oferece maiores vantagens imediatas. Em outras palavras, o PT não apenas traiu o potencial de mudanças éticas, mas o tornou supérfluo.
É uma vasta região a se conquistar. De um lado, os que insistem no que lhes parece coerente: governo corrupto, governo derrotado nas urnas.
Outros flancos da terra virgem devem ser invadidos pelos que se afirmam éticos e querem mudar tudo o que sempre esteve aí.
A estrada está repleta de emboscadas. A maior delas: quem garante que os atuais donos das bandeiras éticas não se comportarão como os outros quando chegarem ao poder?
Que imagem nos trará outubro no entrechoque em três áreas distintamente iluminadas?
Por que transformar uma eleição numa disputa apenas ética? Por que não aceitar a premissa, pelo menos como hipótese de trabalho, que há mais esperança na mudança das regras do jogo do que na de pessoas?
Ao aceitarmos essa premissa, podemos buscar um compromisso de reduzir por lei os cargos de confiança, acabar com a publicidade de governo, exceto em casos de utilidade pública, ampliar o acesso aos dados e aos documentos oficiais.
Estamos no limiar de uma nova campanha, onde passaremos quase todo o tempo nas ruas, discutindo política. Emergem na memória as outras campanhas, desde o tempo do brigadeiro Eduardo Gomes, do trabalhismo de Getúlio Vargas. Era criança e tinha um lado inequívoco: o dos trabalhadores da rua Vitorino Braga, os imigrantes italianos, seu Pironi, seu Perini, vizinhos, todos getulistas.
Esta campanha é singular, creio. Passamos por um tsunami orquestrado pela quadrilha no governo e seus coadjuvantes, os Jim Jones da Câmara, suicidas institucionais que nos levaram ao fundo.
Não creio que surgirá dela o nível de legitimidade capaz de gerar uma energia criativa entre governantes e povo. Isso é indispensável para grandes passos.
De uma certa forma, previa isso, nos discursos e artigos desesperados. A marcha da insensatez iria tornar o exercício da política em algo envergonhado, como nossas tias cantando na sala e cobrindo o rosto com o avental.
No momento em que se parte esse banho de rua, é preciso concordar com uma constatação elementar: as pessoas são falíveis, falharam todas as retumbantes e sanguinárias tentativas de construir um novo homem, sucumbiram os salvadores, indivíduos, classes e partidos.
A concentração em novas regras do jogo, do tipo Lei da Responsabilidade Fiscal, não significa que serão abandonadas as bandeiras éticas. Continuam essenciais, apenas precisam ser redimensionadas.
Quando sairmos nas ruas, esse lado da oposição tão pobre de votos nem precisa se preocupar tanto com as pesquisas, exceto para entender a maioria, dialogar com ela, discordar de suas conclusões.
Os intelectuais de "Homens em Tempos Sombrios", entre eles duas mulheres, Rosa Luxemburgo e Isak Dinesen, além de serem brilhantes, atravessaram tempos verdadeiramente sombrios.
Manter-se fiel à sua audiência é, para nós, uma tarefa bem mais fácil. Nossa audiência não se reconhece nesse Brasil de corre-corre da polícia, mentiras, cinismo, este último talvez o mais corrosivo de todos.
Quem passou pela área do tsunami real, na Ásia, percebeu como a terra arrasada também desperta energias. Suspeito que nada pode nos impulsionar mais do que a sensação de estar vivo, de ter sobrevivido.
Vamos para as ruas.

FERNANDO GABEIRA
contato@gabeira.com.br

2 comentários:

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