As discussões sobre a preservação do índio esquecem uma questão essencial: o rico subsolo amazônico
Nas últimas discussões sobre a questão indígena no Brasil, geralmente omite-se apenas um item, nada menos que o essencial. O cerne do problema não é a preservação do índio e suas tradições. Nenhuma ONG (Organização Não-Governamental) se preocuparia com as culturas hutu ou tutsi, em Ruanda, ou com a dos miskitos na Nicarágua. Ocorre que os índios brasileiros vivem sobre um subsolo riquíssimo.
Quando os defensores incondicionais das culturas nativas falam em waimiri-atroaari, leia-se cassiterita. E, quando se lê cassiterita, leia-se Paranapanema. Quando se fala em reserva ianomâmi leia-se cassiterita, mais ouro e fosfato. Cabe ainda lembrar que os ianomâmis não são autóctones, mas migrantes do Caribe. Perde o sentido a argumentação dos antropólogos a serviço da Funai sobre "terras imemoriais". Macuxis, podemos traduzir por diamantes. A demarcação das terras indígenas pela Funai (Fundação Nacional do Índio) é sempre precedida pela descoberta de jazidas minerais.
Uma das raras denúncias desta estratégia na grande imprensa foi feita em janeiro passado, por Marcos Losekan, no "Jornal Nacional" da Rede Globo: "Os índios da Amazônia se tornaram os maiores latifundiários do mundo. As reservas dessa região ocupam um terço do território da Amazônia. A reserva dos Waimiri-Atroari no Amazonas, rica em cassiterita, dobrou do tamanho nos últimos anos. A reserva dos macuxis, em Roraima, recheada de diamante, aumentou duas vezes. A reserva dos ianomâmis no norte do Amazonas, rica em ouro, cassiterita e fosfato, cresceu cinco vezes. Em 1979 eram dois milhões de hectares. Em 85 passou para sete milhões e na demarcação definitiva em 1990 atingiu quase dez milhões de hectares. Hoje, a reserva ianomâmi é do tamanho de Portugal.
No caso da cassiterita, uma rápida cronologia é elucidativa. Em 1957, chegam à região ianomâmi os missionários da Missão Evangélica da Amazônia (MEV). Em 1975, é descoberta a ocorrência de cassiterita em Surucucus. No ano seguinte, uma portaria da Funai fecha o garimpo. Em 1977, através de outra portaria, são criadas quatro áreas ianomâmis.
Em 1978, nova portaria cria nove reservas ianomâmis e seis no Amazonas, uma extensão das "ilhas", segundo a proposta oficial. Em 1979, é formada a Comissão pela Criação do Parque Yanomâmi (CCPY), presidida pela fotógrafa suíça (embora o nome soe estranho para suíça, esta nacionalidade é significativa, como veremos). Em julho do mesmo ano, a CCPY apresenta proposta para a criação do Parque Yanomâmi, pedindo ao governo nada menos que 5,5 milhões de hectares, em Roraima e na Amazônia.
Em setembro de 1979, a CCPY assume a responsabilidade de dirigir a política indígena na região. A Funai contrata para atuar na área ianomâmi Kenneth Taylor, antropólogo norte-americano que incentiva a criação de reservas. Em 1980, a mesma entidade cria um grupo de trabalho para reestudar a área ianomâmi, com a participação de Cláudia Andujar, que analisa a proposta oficial ilhas e da CCPY -área contínua. É aprovada no entanto uma terceira proposta, que implica o bloqueio de nada menos que nove milhões de hectares.
"Para aumentar as reservas", diz Losekan, "a Funai sempre alegou a descoberta de malocas nos pontos mais distantes da Amazônia. Mas, segundo os geólogos, coincidência ou não, na última expansão nos limites da reserva ianomâmi, por exemplo, foram parar em cima de três reservas minerais: ouro, fosfato e cassiterita".
Não bastasse missionários e antropólogos estrangeiros estarem cortando o país em pedaços, sob o olhar conivente de Brasília, o Christian Church World Council produziu um documento revelador da arrogância européia em relação à América Latina, publicado na revista "Afinal" (11/04/80). Em julho de 81, em Genebra -não por acaso Andujar tem passaporte suíço- a entidade organiza o "1º Simpósio Mundial sobre Divergências Inter-étnicas na América do Sul". O movimento é liderado pelo Comité Internacional de la Défense de l’Amazonie, Inter-American Indian Institute, International Ethnical Survival, International Cultural Survival, Workgroup for Indigenous Affairs e Berna-Geneve Ethnical Institute.
O encontro elabora diretrizes específicas para a Venezuela, Colômbia, Peru, Brasil e demais países da América do Sul. O documento dirigido às organizações missionárias no Brasil intitulado "Diretrizes Brasil nº 4 - Ano 0", examina o conceito de Amazônia Total, "cuja maior área fica no Brasil, mas compreendendo também parte dos territórios venezuelano, colombiano e peruano".
Os participantes do simpósio a consideram patrimônio da humanidade. "A posse dessa imensa área pelos países mencionados é meramente circunstancial, não só por decisão de todos os organismos presentes ao Simpósio como também por decisão filosófica dos mais de mil membros que compõem os Conselhos de Defesa dos Índios e do Meio Ambiente".
Ou seja, um grupo de europeus e norte-americanos decide, na Suíça, que os seres que habitam a Amazônia são patrimônio da humanidade "e não patrimônio dos países cujos territórios, pretensamente, dizem lhes pertencer". Imbuem-se do dever de impedir em qualquer caso "a agressão contra toda a área amazônica, quando essa se caracterizar pela construção de estradas, campos de pouso, principalmente quando destinados a atividades de garimpo, barragens de qualquer tipo ou tamanho, obras de fronteira, civis ou militares, tais como quartéis, estradas, limpeza de faixas, campos de pouso militares e outros que signifiquem a tentativa de modificações ou do que a civilização chama de progresso".
Tornam-se assim claras as motivações das ONGS na luta contra qualquer tentativa de exploração econômica da Amazônia por parte do governo brasileiro. Em 1991, oito senadores norte-americanos entre eles Al Gore, o atual vice-presidente dos EUA, enviaram carta ao presidente George Bush, pedindo que o governo americano pressione o governo brasileiro para demarcar o Parque Ianomâmi.
Ainda no mesmo ano, ao voltar dos Estados Unidos, Fernando Collor de Mello, através de um decreto sem número, torna sem efeito a demarcação administrativa das "ilhas", vai a Surucucus e dinamita várias pistas de garimpo.
As entidades reunidas em Genebra atribuem-se ainda o dever de "manter a floresta amazônica e os seres que nela vivem, como os índios, os animais silvestres e os elementos ecológicos, no estado em que a natureza os deixou antes da chegada dos europeus. Para tanto, é nosso dever evitar a formação de pastagens, fazendas, plantações e culturas de qualquer tipo que possam ser consideradas como agressão ao meio".
O documento reivindica uma forma jurídica para tais áreas, incluindo a propriedade da terra, "que deverá compreender o solo, o subsolo e tudo que neles existir, tanto em forma de recursos naturais renováveis como não-renováveis. É nosso dever preservar e evitar, em caráter de urgência, até que as novas nações estejam estruturadas, ações de mineração, garimpagem, construção de estradas, formação de vilas, fazendas, plantações de qualquer natureza".
Outro item da declaração é bastante esclarecedor: "É nosso dever conseguir o mais rápido possível emendas constitucionais no Brasil, Venezuela e Colômbia, para que os objetivos destas diretrizes sejam garantidas por preceitos constitucionais". Adiante: "É nosso dever garantir a preservação do território da Amazônia e de seus habitantes aborígenes, para o seu desfrute pelas grandes civilizações européias, cujas áreas naturais estejam reduzidas a um limite crítico".
Para o cumprimento destas diretrizes, deve-se angariar o apoio de "pessoas ilustres, como é o caso de Gilberto Freyre no Brasil, bem como principalmente entre políticos, sociólogos, antropólogos, geólogos, autoridades governamentais, indigenistas e outros de importante influência, como é o caso de jornalistas e seus veículos de imprensa".
Tempera-se tudo isto com uma boa dose de luta de classes. Deve-se alfabetizar os povos indígenas em suas línguas maternas, "incutindo-lhes coragem, determinação, audácia, valentia e até um pouco de espírito agressivo, para que aprendam a defender os seus direitos, é preciso levar em consideração que os indígenas desses países são apáticos, subnutridos e preguiçosos. É preciso que eles vejam o homem branco como um inimigo permanente, não somente dele, índio, mas também do sistema ecológico da Amazônia. É preciso despertar algum orgulho que o índio tenha dentro de si. É preciso que o índio veja e tenha consciência de que o missionário é a única salvação".
Nada melhor que uma boa dose de racismo, como combustível para acelerar a luta de classes: "É preciso insistir no conceito de etnia, para que desse modo seja despertado o instinto natural de segregação, do orgulho de pertencer a uma nobreza étnica, da consciência de ser melhor que o homem branco".
Na hora de mapear as nações dos indígenas, deve-se maximizar as áreas, "sempre pedindo três ou quatro vezes mais, sempre reivindicando a devolução da terra do índio, pois tudo pertencia a ele". E, para que não haja dúvidas sobre o objetivo maior desta "defesa" das minorias étnicas: "Dentro dos territórios dos índios deverão permanecer todos os recursos que provoquem o desmatamento, buracos, a presença de máquinas pertencentes ao homem branco. Dentre esses recursos, os mais importantes são riquezas minerais que devem ser consideradas como reservas estratégicas das nações, a serem exploradas oportunamente".
Em 1987, este documento passou pelas mãos do presidente José Sarney e de seus ministros militares. Brasília deve tê-lo considerado como uma espécie de inocente "war game", pois nenhum dos agentes da desintegração territorial do Brasil foi expulso do país, embora autoridades civis e militares há muito venham emitindo alertas sobre este risco.
Em 91, Jarbas Passarinho, então ministro da Justiça, denunciava no "Jornal do Brasil" a entrada de missões religiosas na Amazônia que, com o pretexto de preservar a população indígena, promoviam a internacionalização da região. "Já foi localizado um padre que, ao invés da Bíblia, carregava uma magnetômetro", disse Passarinho.
Não bastasse esta troca de um instrumento de dominação antigo por outro mais moderno, na década de 70, chega a Roraima o bispo italiano Aldo Mongiani, da Ordem Missionária da Consolata. Adepto da sedizente Teologia da Libertação, dom Aldo vinha de Moçambique, onde trabalhava dando apoio à guerrilha de esquerda.
Começaram então os conflitos entre índios e brancos em Roraima, onde ocorreria, em 1993, segundo a Funai, o famoso massacre que não houve, a "chacina dos ianômamis".
Em maio de 93, o bispo italiano oferece recursos internacionais, inclusive da Itália, ao então ministro da Justiça, Maurício Corrêa, para a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol. Em vez das etnias macuxi, ingaricó e lauperang, leia-se ouro e diamante. Corrêa: "Eu não aceitei a proposta de dom Aldo", disse.
Resumo da ópera: a "Res Publica Christiana" européia planeja uma república teocrática na América do Sul, construída pelos cleros europeus e norte-americano, cortando territórios do Brasil, Peru, Colômbia e Guiana. A hipótese pode parecer literatura de antecipação. Mas o projeto está no papel há mais de década. Capital estrangeiro e militantes para tocá-lo adiante é o que não falta. Dom Aldo Mongiano, o bispo corrido de Moçambique, tem gordas contas em bancos no exterior para construir sua teocracia.
Se Brasília não tomar uma atitude imediata, o mais rico subsolo da América Latina ficará em posse não dos indígenas, mera massa de manobra do clero cristão, e sim dos Estados Unidos e países europeus.
Janer Cristaldo
Especial para a Folha de São Paulo
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