Denis Lerrer Rosenfield - Editorial O Globo
As recentes medidas da Funai de identificação e demarcação de terras indígenas na Raposa Serra do Sol, em Roraima, e no Sul do estado de Mato Grosso do Sul recolocam com força problemas de ordem constitucional, que vinham sendo relegados a uma posição secundária. O avanço sobre as propriedades privadas estava sendo visto como algo “normal?, que não afetaria o ordenamento constitucional, até o momento em que a sua intensidade terminou por colocar também um problema concernente ao próprio pacto federativo.
Baseada numa profusão de atos administrativos, editados por ela mesma, e fora de qualquer controle, a Funai, sob o manto da justiça social, deixou transparecer o seu pouco apreço pelo direito de propriedade e, através deste, pelo ordenamento constitucional do país. A partir do momento em que ela decide identificar e demarcar partes inteiras de estados brasileiros, ela se coloca numa posição equivalente à do Senado brasileiro.
Ela passa a interferir diretamente na vida político-constitucional de uma entidade federativa, tratandoa como um ente que pode ser simplesmente tutelado.
Atos administrativos constituem uma legislação infralegal, que tem amparo constitucional, especificando para casos particulares a aplicação de leis aprovadas pelo Congresso Nacional.
Seu escopo é, por assim dizer, limitado pelas condições de seu uso, sob pena de se tornarem propriamente inconstitucionais. Haveria uma usurpação de outras funções e, mesmo, de poderes republicanos se viessem a valer como expressão direta de artigos constitucionais ou de leis propriamente ditas. No entanto, é isso que está ocorrendo no Brasil, com atos administrativos que legislam sobre a propriedade e sobre entidades federativas de uma maneira que as inviabiliza.
Presidentes e superintendentes de órgãos como a Funai, o Ibama e o Incra agem como se fossem os legisladores deste país.
No caso específico da Funai, relativo aos estados de Roraima e Mato Grosso do Sul, presenciamos como portarias, resoluções e instruções normativas, amparados, por sua vez, em decretos, estão redesenhando geograficamente o país, retirando as competências administrativa, jurídica e política desses estados e transferindo-as para a União. Observe-se que a instância republicana que constitucionalmente teria poderes para um reordenamento desse tipo seria o Senado brasileiro, e exclusivamente ele. Ora, o que faz a Funai? Ela se coloca na posição do Senado, interferindo diretamente na vida desses estados, retirando imensas áreas de sua área de competência e de poder. E como o faz? Por intermédio de atos administrativos, numa multiplicidade de portarias, resoluções e instruções normativas, como se fossem leis equivalentes às do Congresso Nacional.
Atos administrativos da Funai efetuam uma transferência de domínio de áreas estaduais que passariam a ser novamente áreas da União, que, por sua vez, as disponibilizaria para o uso dos índios. É como se a União, depois de recuperar esse domínio, transferisse essas áreas para a posse indígena. Ora, reiteremos, a União não tem o poder de efetuar essa transferência de domínio, sendo o Senado a única instituição que poderia fazê-lo. E isso depois de um longo processo legal, que passa por uma ampla discussão, estando os dados da questão à disposição das partes envolvidas, que fazem valer os seus direitos e exercem o direito ao contraditório em todas as partes do processo.
A Funai, porém, age prescindindo de todo esse trâmite constitucional, democrático, como se fosse um verdadeiro poder constituinte.
Presidentes e superintendentes de órgãos estatais são cargos de confiança, à disposição do governo de plantão. Os escolhidos para exercerem essas funções podem ser removíveis a qualquer momento e sua permanência nos cargos depende de ministros e do próprio presidente da República. São pessoas que normalmente nem fazem parte dos quadros dessas instituições, tendo sido nomeados para essas funções por injunções partidárias e ideológicas. E sua ideologia é contrária ao direito de propriedade, à economia de mercado, ao estado de direito e à democracia representativa.
No entanto, tudo o que fizerem durante esse período mediante atos administrativos permanece.
Eles são transitórios, suas obras e medidas, não.
DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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