O gesto obsceno-comemorativo de assessores presidenciais só repete o cínico tripudio de autoridades (relaxa e goza) sobre a dor dos cidadãos. A sociedade brasileira está pagando um preço alto demais para entender que a incompetência na gestão pública é muito mais do que um prejuízo, uma perda de oportunidade, um atraso no processo de desenvolvimento, um abafamento de potencial criativo ou uma destruição de valores morais. Por sobre tudo isso a incompetência governamental é uma tragédia literal, que ceifa preciosas vidas humanas, que joga na lixeira promissores destinos individuais, assim como desfaz, de maneira tão perversa quanto irresponsável, as melhores perspectivas das novas gerações.
Por uma crueldade da História, tem sido justamente no campo em que o País já teve um papel brilhante no desenvolvimento tecnológico do mundo - exercido pelo gênio de Santos-Dumont - que o Brasil vem sofrendo, da forma mais perceptível, os efeitos da trágica incompetência. Incompetência geral e, em última instância, de um chefe de Estado e de governo para quem governar não é “abrir estradas” - mas sim discursar sobre a necessidade de abrir e conservar estradas; não é escolher pessoas competentes para funções relevantes - mas sim compor cambalachos políticos para o loteamento de cargos públicos; não é fazer reformas - mas sim improvisar pronunciamentos genéricos e vazios sobre a necessidade das reformas; não é imprimir com o próprio exemplo, perante a sociedade, os valores mais elevados da moralidade pública - mas sim deixar-se cercar por camarilhas multipartidárias, rapinadoras do erário, com estas mantendo afetuosas relações de compadrio e complacência; não é acompanhar nos pormenores, “entendendo”, os processos da administração e a execução de ordens pelos subordinados - mas sim cobrar com energia (sempre nos discursos e falas improvisadas) providências “com dia e hora certa”, que nunca se cumprem, sem que isso implique sanção alguma contra faltosos e omissos.
A manutenção em área de máxima relevância pública, em termos da segurança dos cidadãos, de pessoa sem qualificação alguma para a função, sem a mínima noção do que ocorre na pasta da qual é titular, significa, mais que uma irresponsabilidade, um verdadeiro dolo eventual, pelo qual se prevê um resultado nefasto - no caso, da incapacidade total de administrar um setor de governo -, não se importando a mínima se tal resultado se concretizará ou não. O insulto à inteligência com que se atribui ao “sucesso” de movimentação de um setor o colapso do serviço público a ele referente é um dos mais abjetos expedientes de enganação pública já usados pelo governo de uma Republica. É o recibo passado da imprevisibilidade, da falta de projeto, do improviso crônico, que não leva em conta a segurança, o trabalho, os compromissos, o bem-estar e o respeito à própria vida das pessoas.
Para a grande maioria da população não é perceptível a relação de causa e efeito entre a corrupção desenfreada, institucionalizada, contaminando todos os Poderes de Estado, e os prejuízos concretos causados à coletividade pelas montanhas de dinheiro público desviado, pelas propinas, comissões, pelos superfaturamentos, licitações fraudulentas, termos de aditamento em contratos de obras públicas, depósitos em contas secretas em paraísos fiscais, transportes de dinheiro vivo em malas, pastas ou cuecas, lavagens de todo gênero - de preferência, via negócios da China com gado vacum nordestino, embargado por aftosa - e tantas bandalheiras mais, que fazem sumir os recursos públicos da educação, da saúde, da Previdência, do saneamento básico, da infra-estrutura de transportes, da segurança, da habitação, do meio ambiente e tudo o mais que, no espaço público - e nos Poderes de Estado -, afeta a vida dos cidadãos. No entanto, com a tragédia de 154 mortos e, depois de dez meses de muito sofrimento, a outra tragédia de cerca de 200 mortos, a população começa a sentir, de maneira bem próxima, o preço da trágica incompetência da gestão pública.
Os aeroportos do País ficaram defasados em relação às necessidades reais dos transportes aéreos porque, em lugar de receberem reformas e aperfeiçoamentos técnicos que melhorassem suas condições de segurança, se tornaram shopping centers. Contratos de reforma de aeroportos foram superfaturados - conforme inúmeras denúncias do Tribunal de Contas. Da mesma forma, negligenciou-se na seleção e no treinamento de controladores de vôo, assim como na modernização de equipamentos destinados ao controle do sistema de transportes aéreos do País. Nos últimos dez meses, com a continuidade implacável do apagão aéreo - assim como com a manutenção de emprego de todos os altos escalões responsáveis pelo setor -, o governo federal deu ao País - e ao mundo - a mais espetacular demonstração de inação já ocorrida na história da administração pública contemporânea. Só que tal incapacidade de decisão, tal inconseqüência de determinações, tal distância entre enérgicos discursos de cobrança e a efetiva ação de governo podem ser ilustradas, desgraçadamente, por rios de sangue brasileiro.
Com toda a certeza, essa desgraça que levou a vida de cerca de 200 cidadãos do Brasil se tornará inesquecível para as futuras gerações, não como uma tragédia aérea, como um grande acidente de avião, mas sim como uma tragédia de governo. Ficará marcada, para todos os que vierem a se debruçar no estudo da evolução político-administrativa de nosso país, como o verdadeiro, perceptível, notório e muito sofrido preço da trágica incompetência - da qual um dia, se o bondoso Cristo Redentor o permitir, haveremos de nos livrar.
Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e produtor cultural. E-mail: mauro.chaves@attglobal.net
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