Pior não foi a vaia. Ruim mesmo foi a combinação de falta de espírito esportivo do presidente Luiz Inácio da Silva, ausência de senso de realidade de seus áulicos e sabujice do cerimonial, que levaram Lula a passar um recibo diante do mundo: é intolerante com a divergência e não tem desenvoltura para enfrentar algo perfeitamente natural na vida de um homem público.
Não suporta a vaia e só transita bem em platéias treinadas para a aclamação.
Podia perfeitamente ter evitado passar para a história do Panamericano como o primeiro presidente, em 56 anos, a não abrir oficialmente os jogos.
Alega-se que o conselho a fuga ao cumprimento do dever - apelidado de 'quebra de protocolo' - teve o intuito de proteger o presidente de constrangimentos.
Se foi essa mesmo a intenção, conseguiu-se o efeito oposto, pois o constrangimento acabou sendo muito maior.
Vaiado seis vezes, se falasse, Lula enfrentaria a sétima, daria por iniciado o Pan e nada mais sobraria do episódio a não ser a óbvia e normalíssima constatação de que o Brasil não é governado por um fenômeno andante e, sobretudo, falante, mas por um homem em quem a população reconhece qualidades, mas não deixa também de enxergar seus defeitos.
Isso é espírito crítico, exercício saudável da contradição. Anormal mesmo é que nem o presidente nem sua assessoria ou mesmo seus aliados políticos tenham feito em momento algum uma concessão ao bom senso e imaginado que uma vaia - mesmo monumental - estaria perfeitamente dentro do roteiro.
Ainda mais em quadra da história particularmente infeliz para a relação entre Estado e sociedade, dada a rejeição geral ao mundo da política, do qual Lula era ali o representante mais vistoso.
Mas a lógica do tributo à egolatria como forma de governo obstrui os canais da percepção e como ocorreu na abertura do Pan, pega desprevenidos tanto o vaidoso quanto o bajulador.
Consulte-se a antologia de um especialista em natureza humana e se encontrará a frase de Nelson Rodrigues que, levada em conta com antecedência, livraria Lula da surpresa: 'No Maracanã vaia-se até minuto de silêncio e, se quiser acreditar, vaia-se até mulher nua.'
Pois, então, era de se imaginar, ao menos como possibilidade robusta, que alguma contestação pudesse ser feita naquele cenário a um presidente da República cujo partido, equipe, aliados, familiares protagonizam escândalos em série em governo de eficácia administrativa celebrada apenas na pirotecnia da auto-exaltação e ele próprio se dá ao desfrute de defender malfeitores de malfeitorias reconhecidas - como Severino Cavalcanti, para citar só um exemplo.
Por muitíssimo menos, Lula foi vaiado no velório de Leonel Brizola, no ambiente fechado do Palácio Guanabara, em junho de 2004, quando o único escândalo conhecido ainda era o de Waldomiro Diniz.
'O carioca é o único sujeito capaz de berrar confidências secretíssimas de uma calçada para a outra', dizia também o cronista de almas, contribuindo mais uma vez para a compreensão do episódio muito facilmente compreensível, embora o berro do Maracanã não tenha revelado confidências secretas e sim traduzido o devidamente sabido e dito em toda parte.
Mas, e as pesquisas?
Elas medem a popularidade genérica, refletem o efeito da presença de um personagem único em cena a atuar sem contraditório e com a força do uso do aparelho de Estado em prol do culto à personalidade.
Além do mais, se metade aprova o presidente nas pesquisas, metade não aprova.
Na sexta-feira, no Maracanã, certamente não havia só críticos do presidente, mas, assim como os apoios prevalecem na medição fria dos números, o barulho da vaia se sobrepõe a qualquer outro quando a manifestação ocorre ao sabor do anonimato da multidão, o ambiente de espontaneidade e o controle do oficialismo não exerce poder sobre o desenrolar da solenidade.
Após o ocorrido, as autoridades presentes tiveram o bom senso de economizar declarações para esperar a digestão das avaliações. A exceção foi o ministro dos Esportes, Orlando Silva.
Figura apagada no cenário governamental, o ministro perdeu excelente oportunidade de continuar calado. Deu o palpite de sempre, atribuindo tudo a uma 'orquestração'.
Isso falando de um público de 90 mil pessoas vindas de toda a parte da cidade, do País e das Américas, que pagaram ingressos de R$ 20 a R$ 250, que receberam convites e estavam ali para celebrar o esporte e se divertir.
E, de fato, se divertiram dentro do espírito da festa - sem ofensas, exercendo só o direito à barulhenta contestação. Nenhuma seriedade maior teria o episódio caso Lula não se sentisse ofendido e seus áulicos não errassem feio ao aconselhá-lo a se esconder atrás do biombo da omissão.
No mais, o espetáculo da abertura do Pan foi de competência exemplar. Exuberante, organizado, ao mesmo tempo técnico e despojado, brasileiríssimo, exibindo aquilo que o Brasil sabe fazer de melhor: um carnaval muito do profissional
Dora Kramer
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