FOLHA - Como o sr. avalia o discurso de alguns intelectuais históricos do PT, como a filósofa Marilena Chaui, que procura relativizar a questão ética na política? O mesmo tema, de certa forma, havia sido proposto pelo filósofo tucano José Arthur Giannotti.
OLAVO DE CARVALHO - Quando essa gangue uspiana começou a "campanha pela ética na política", uma década e meia atrás, já anunciei que era tudo uma empulhação destinada a entregar o poder total à esquerda, usando e prostituindo a indignação moral do povo com os miúdos corruptos da época para encobrir a montagem da maior máquina de corrupção de todos os tempos.
Os tucanos estão hoje com choradeira, mas eles são amplamente culpados pela ascensão do petismo, do qual foram cúmplices na "estratégia das tesouras" calculada para suprimir da política todas as demais correntes e dividir o bolo entre os dois partidos nascidos da USP. O que quer que venha da boca de Chauis e Giannottis é sempre camuflagem, pose, hipocrisia. Essa gente já deveria estar embalsamada faz muito tempo em alguma espécie de IML intelectual. Cansei de ouvir besteira. "Intelectual de esquerda", seja tucano, petista ou qualquer outra porcaria, tem para mim a confiabilidade de uma nota de R$ 32.
A USP sempre foi o templo da vigarice intelectual, e o sujeito que começa com safadeza no campo das idéias acaba sempre inventando algum mensalão para se remunerar do esforço de embrulhar a platéia. Os tucanos ainda podem se redimir do mal que fizeram. A carta de 7 de setembro do ex-presidente Fernando Henrique é um bom começo, mas é preciso um arrependimento mais fundo e uma tomada de posição mais clara.
Não adianta querer um "choque de capitalismo" quando ao mesmo tempo se cortejam "movimentos sociais" cujos programas "politicamente corretos" exigem sempre maior controle estatal da sociedade. Um capitalismo assim acaba virando capitalismo chinês.
FOLHA - O governo Lula é de direita ou de esquerda? Quais são no seu entender os traços que distinguem, hoje, esquerda e direita?
CARVALHO - Esquerda é toda corrente que legitima suas pretensões ambiciosas em nome de um futuro hipotético. Direita é quem legitima promessas modestas com base na experiência passada. No Brasil, só quem tem alguma experiência bem-sucedida para ensinar são os remanescentes do governo Médici que fizeram o país crescer 15% ao ano. Estão todos nonagenários ou irrevogavelmente falecidos. Como ninguém absorveu sua lição, não há mais direita no Brasil. Há apenas diferentes graus de esquerdismo, desde o histerismo fanfarrão do PSOL até as afetações oportunistas de políticos ideologicamente inócuos que acham bonito posar de politicamente corretos, como esse ridículo governador de São Paulo. Direita, conservadorismo genuíno, é a síntese inseparável dos seguintes elementos: liberdade de mercado, valores judaico-cristãos, cultura clássica, democracia parlamentar e império das leis. O resto é comunismo, fascismo, nazismo, anarquismo, tecnocracia, "socialismo light", o museu inteiro do besteirol político.
No Brasil, quem ainda tem fibra para ser conservador está fora da política, seja por falta de vocação, seja por uma questão de higiene. O Brasil ainda tem alguns bons líderes empresariais e estudiosos de campos diversos, e acho um sacrifício admirável, mas inútil, que homens bons larguem suas ocupações produtivas para arriscar a sorte numa política eleitoral que virou uma disputa interna no galinheiro esquerdista -cada galinha, é claro, chamando as outras daquilo que no seu entender é a pior das ofensas: "Direitistas!"
FOLHA - O pensamento de direita ganha fôlego no mundo contemporâneo. Nesse contexto, podemos falar na emergência de um imbecil coletivo de direita?
CARVALHO - Sem a menor sombra de dúvida. O triunfalismo capitalista subseqüente à queda da URSS produziu bibliotecas inteiras de utopismo tecnocrático-financeiro globalista que o 11 de Setembro reduziu a pó, mas do qual muitos cérebros de fantasmas ainda se alimentam nos EUA. A marca inconfundível do imbecil coletivo direitista é a negação de que existam direita e esquerda. O típico doutrinário dessa corrente se coloca numa torre de marfim supra-ideológica, de onde acredita que pode resolver tudo na base da grana. A impotência sempre gera o delírio de onipotência. Praticamente toda a política externa americana da última década e meia se baseou nessa estupidez, e o resultado dela é a proliferação de tipinhos como Lula, Chávez, Morales e "tutti quanti".
FOLHA - Como o sr. avalia a declaração do papa sobre o Islã e as reações contrárias? O sr. crê em algo como "choque de civilizações?"
CARVALHO - Dizem que há um conflito entre o Islã e o Ocidente. Mas qual Ocidente? O Ocidente religioso, judaico-cristão, ou o Ocidente revolucionário, ateu, materialista? Este último está obviamente do lado dos terroristas, e é ele mesmo quem alardeia o slogan do "conflito de civilizações" para camuflar a guerra de vida e morte que, por meios diversos e aparentemente inconexos, se move contra os judeus e os cristãos no Islã, nos países comunistas e no próprio Ocidente capitalista.
O número de cristãos inocentes e desarmados que vêm sendo assassinados no Sudão, no Vietnã, na Coréia do Norte e na China é cem vezes maior do que a quantidade de vítimas civis da Guerra do Iraque, e a mídia chique inteira, incluindo este jornal, não diz uma palavra contra isso. Nem noticia. Ao mesmo tempo, leis draconianas para suprimir a liberdade de expressão religiosa são adotadas na Europa e nos EUA, mas jamais aplicadas aos muçulmanos locais. É esse o "Ocidente" que se pretende defender contra o Islã? Tudo isso é de uma falsidade monstruosa. Não há uma guerra de civilizações, mas duas guerras superpostas, uma do Islã contra o globalismo ocidental, outra de ambos (e da esquerda internacional) contra a civilização judaico-cristã.
FOLHA - E quanto ao papa?
CARVALHO - O discurso em Regensburg, não foi sobre o Islã. Este foi mencionado como gancho para a questão central, que era a necessidade de uma teologia racional, já mil vezes reiterada pela Igreja. As afirmações do imperador Manuel 2º, o Paleólogo, citadas no discurso foram três: 1) O Islã adotou a violência como método legítimo de conversão. 2) Essa foi a única novidade religiosa trazida pelo Islã. 3) Converter por meio da violência é errado: a conversão deve-se alcançar por meio da persuasão racional.
A terceira afirmativa é analisada extensamente no restante do discurso. As duas primeiras foram citadas de passagem só para mostrar o contexto histórico da discussão e em seguida deixadas de lado. Ao concentrar seus ataques numa delas, os críticos muçulmanos e os não-muçulmanos anticristãos mostraram incapacidade ou falta de disposição de distinguir entre a menção casual à fala de um terceiro e a opinião formalmente expressa do orador. São burros, desonestos ou ambas as coisas.
Mas o papa também não foi muito hábil nas explicações que deu para acalmar os nervosinhos. Ao dizer que a citação de Manuel 2º não expressa sua opinião pessoal, ele deixou uma perigosa ambigüidade no ar, pois as três asserções formais contidas nessa citação são totalmente independentes entre si, e não é possível que Bento 16 concorde ou discorde das três uniformemente.
A primeira é simples expressão de um fato universalmente reconhecido, e o papa, mesmo que não estivesse interessado em tomá-la como tema do seu discurso, como de fato não tomou, não poderia discordar dela de maneira alguma.
A segunda, na mesma medida, é totalmente falsa. O Islã trouxe uma infinidade de inovações, entre as quais a mais espetacular de todas é ser o primeiro e único direito penal religioso destinado a aplicar-se à humanidade inteira e não só a uma nação em particular. Isso constitui a diferença específica do Islã, e sem isso a sua pretensão de ser uma revelação nova e autônoma perderia o seu argumento mais forte.
A terceira é o simples resumo de uma doutrina tradicional da Igreja, e o papa não poderia discordar dela. Em suma, Bento 16 só pode e aliás deve estar em discordância com Manuel 2º quanto à segunda afirmação, um erro histórico perdoável na Idade Média, mas que hoje em dia seria intolerável mesmo num estudante. O único ponto do discurso papal que poderia ferir a honra dos muçulmanos é um erro que o orador não endossou nem poderia ter endossado, sendo o erudito que é.
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