sexta-feira, outubro 27, 2006

As batatas!!

SALVO SE as muralhas de Jericó se reerguerem, se o Mar Vermelho voltar a se partir em dois ou se algum outro cataclismo de inspiração sobrenatural desabar sobre a Terra, Lula deverá ser reeleito daqui a três dias. Terá sido uma campanha eleitoral atípica. Morna até as vésperas do primeiro turno, quando o chamado dossiegate irrompeu e obrigou Lula, que já cantava vitória, ao segundo turno. E de novo morna nestas últimas quatro semanas em que o presidente retomou, com folga, nítida vantagem sobre Alckmin.
Fala-se no carisma de Lula, em sua identificação com as camadas populares, para explicar o porquê de sua recandidatura ser impermeável a escândalos e imune à corrupção. Mas essa identificação não ajudou Lula nas três eleições presidenciais que ele perdeu (89, 94 e 98).
O próprio "povo" parecia nutrir, então, preconceito contra um candidato de origem e feitio popular. A base popular do eleitorado certamente mudou de opinião depois de experimentar Collor e FHC. Mas foi o próprio Lula quem mudou muito mais.
Foi somente depois de mudar de discurso, abrandar o tom e aderir à pasteurização publicitária que Lula obteve o respaldo da maioria. O "Lulinha paz e amor" foi a conversão do líder sindical à "cordialidade" brasileira -aquele componente enigmático na formação nacional que explica tanto a ausência de guerras civis como a lentidão homeopática de qualquer mudança. A conversão foi facilitada pela derrocada mundial do ideário de esquerda, mas também pela personalidade em questão.
Lula nunca foi ideológico (é conhecida sua desavença com o irmão comunista). Como todo político bem sucedido, ele é um camaleão pragmático que dança conforme a música. Outra meia-verdade é que Lula tenha sido vítima de preconceito. Foi alvo de preconceito, sim, mas também de discriminação positiva. O que antigamente se chamava de "aparelhos ideológicos do Estado" -universidade, imprensa, igreja, intelectuais, artistas- sempre o viram como messias social, líder puro e autêntico a ser poupado de qualquer cobrança ou crítica.
Foi esse manto de impunidade com que os intelectuais cobriram sua imagem que o tornou presunçoso, irritadiço diante da menor interpelação, mal acostumado a só ouvir bajuladores. O mesmo manto, agora rasgado pelo exercício desabrido do poder, explica que parte dos intelectuais esteja desiludida e outra parte esteja como o avestruz que enfia a cabeça na areia.
Talvez, no futuro, os períodos FHC e Lula sejam vistos como um só -o momento em que a social-democracia brasileira fez o que a matriz havia feito décadas antes: aderir à economia de mercado e praticar transferências de renda como forma de mitigar a miséria e vencer eleições. Ao vencedor, as batatas.
OTAVIO FRIAS FILHO

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