SALVO SE as muralhas  de Jericó se reerguerem, se o Mar Vermelho voltar a se partir em  dois ou se algum outro cataclismo de inspiração sobrenatural desabar sobre  a Terra, Lula deverá ser  reeleito daqui a três dias.  Terá sido uma campanha eleitoral atípica. Morna até as vésperas do primeiro turno, quando o  chamado dossiegate irrompeu e obrigou Lula,  que já cantava vitória, ao  segundo turno. E de novo  morna nestas últimas  quatro semanas em que o  presidente retomou, com  folga, nítida vantagem sobre Alckmin. 
Fala-se no carisma de  Lula, em sua identificação  com as camadas populares, para explicar o porquê  de sua recandidatura ser  impermeável a escândalos  e imune à corrupção. Mas  essa identificação não ajudou Lula nas três eleições  presidenciais que ele perdeu (89, 94 e 98). 
O próprio "povo" parecia nutrir, então, preconceito contra um candidato  de origem e feitio popular.  A base popular do eleitorado certamente mudou  de opinião depois de experimentar Collor e FHC.  Mas foi o próprio Lula  quem mudou muito mais. 
Foi somente depois de  mudar de discurso, abrandar o tom e aderir à pasteurização publicitária  que Lula obteve o respaldo  da maioria. O "Lulinha paz  e amor" foi a conversão do  líder sindical à "cordialidade" brasileira -aquele  componente enigmático  na formação nacional que  explica tanto a ausência de  guerras civis como a lentidão homeopática de qualquer mudança.  A conversão foi facilitada pela derrocada mundial do ideário de esquerda, mas também pela personalidade em questão. 
Lula nunca foi ideológico  (é conhecida sua desavença com o irmão comunista). Como todo político  bem sucedido, ele é um camaleão pragmático que  dança conforme a música.  Outra meia-verdade é  que Lula tenha sido vítima  de preconceito. Foi alvo de  preconceito, sim, mas  também de discriminação  positiva. O que antigamente se chamava de  "aparelhos ideológicos do  Estado" -universidade,  imprensa, igreja, intelectuais, artistas- sempre o  viram como messias social, líder puro e autêntico  a ser poupado de qualquer  cobrança ou crítica. 
Foi esse manto de impunidade com que os intelectuais cobriram sua imagem que o tornou presunçoso, irritadiço diante da  menor interpelação, mal  acostumado a só ouvir bajuladores. O mesmo manto, agora rasgado pelo  exercício desabrido do poder, explica que parte dos  intelectuais esteja desiludida e outra parte esteja  como o avestruz que enfia  a cabeça na areia. 
Talvez, no futuro, os períodos FHC e Lula sejam  vistos como um só -o momento em que a social-democracia brasileira fez o  que a matriz havia feito  décadas antes: aderir à  economia de mercado e  praticar transferências de  renda como forma de mitigar a miséria e vencer  eleições.  Ao vencedor, as batatas. 
OTAVIO FRIAS FILHO
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