No segundo ensaio de uma trilogia sobre a Venezuela a menos de dois meses da eleição presidencial, o jornalista americano Norman Gall comenta as freqüentes viagens feitas pelo líder venezuelano, nas quais usa os abundantes petrodólares do país para comprar armas e apoio político
As pretensões geopolíticas do presidente Hugo Chávez o levam para muito longe da Venezuela. Ele deixa de cuidar dos problemas de seu próprio povo enquanto percorre o mundo. Promete bilhões de dólares a potenciais aliados. Compra armas e procura aparecer como astro em vários palcos. Não deixa passar nenhuma oportunidade de insultar o presidente George W. Bush, um alvo fácil que ele já chamou de 'monstro imperialista', 'imbecil' e 'Sr. Perigo', enquanto lança avisos a seus seguidores sobre uma invasão iminente da Venezuela pelos Estados Unidos. Os ataques de Chávez a Bush parecem ser o tema mais importante de sua campanha para a reeleição em dezembro.
Aos risos e aplausos na Assembléia-Geral da ONU, Chávez chamou Bush de 'o diabo' que 'veio aqui ontem', apontando a tribuna - que, dizia, 'ainda tem cheiro de enxofre'. O Wall Street Journal observou que o discurso de Chávez 'marcou o ponto alto teatral para uma reunião anual da ONU onde o anti-americanismo aberto não só voltou a ser moda, como também muito apreciado pela platéia'. No entanto, parece provável que nem Venezuela nem Guatemala (apoiada pelos EUA) ganhará a eleição para membro não-permanente do Conselho de Segurança na primeira votação na Assembléia-Geral para representar a América Latina, abrindo o caminho para um terceiro candidato, possivelmente Chile ou Republica Dominicana.
Chávez é uma figura cada vez mais isolada na América Latina, apesar de seu talento para aparecer na mídia e de presentear com petróleo e dinheiro os aliados potenciais em outros países. Em eleições recentes, as populações do Chile, Peru, Colômbia, México e Brasil reafirmaram sua vocação pela estabilidade democrática como base do progresso, com isso refutando a alegação de muitos comentaristas de que uma onda de populismo esquerdista estaria se espalhando pela América Latina. No Peru e no México, o endosso de Chávez a seus candidatos preferidos contribuiu para a derrota deles. Com a notícia da doença de Fidel Castro, tudo indica que o isolamento de Chávez aumentará, se forem verdadeiras as informações de que suas relações são tensas com o irmão de Fidel Castro, Raúl, o presidente interino de Cuba. Se o presidente Luiz Inácio Lula da Silva perder no segundo turno das eleições brasileiras, Chávez vai sentir saudades de um de seus interlocutores mais amenos e maleáveis na América Latina.
Em julho de 2006, para evitar dissensões nas Forças Armadas, Chávez elevou 64 oficiais para a patente de general, antes de embarcar numa viagem mundial de 17 dias a bordo de seu Airbus presidencial, passando pelo Vietnã, Irã, Catar, Mali, Rússia e Bielo-Rússia, confiando que seus assessores cubanos de segurança seriam capazes de controlar as tensões no setor militar. Retornando à Venezuela em 3 de agosto, ele rapidamente anunciou outra viagem, partindo no dia 21 do mesmo mês para a China, Malásia e Angola. Assim, chegou a fazer 23 viagens nos primeiros oito meses de 2006, visitando 31 países em 59 dias fora da Venezuela. O jornal espanhol El País comentou que Chávez estava 'usando a opulência proporcionada a ele pelo preço do petróleo para comprar armas e favores políticos, formar alianças com regimes antidemocráticos e aplaudir a repressão da liberdade'. Alguns dias depois de anunciar seu apoio à candidatura da Venezuela a uma vaga no Conselho de Segurança da ONU, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse ao Financial Times: 'Converso muito com o presidente Chávez sobre a necessidade de comportar-se de maneira que não crie problemas para outros países.'
Chávez foi o primeiro presidente latino-americano a visitar a Bielo-Rússia desde a independência desse país, em 1991, com a queda da União Soviética. No aeroporto de Minsk, antes de reunir-se com o último ditador comunista da Europa, Alexander Lukashenko, e de visitar a 'Linha Stalin' de fortificações na fronteira com a Polônia, Chávez propôs uma aliança estratégica, dizendo que 'a Bielo-Rússia está desenvolvendo um modelo de Estado social como o que estamos construindo na Venezuela'.
Embora ele tivesse adiado uma escala proposta em Pyongyang para reunir-se com o ditador Kim Jong-il, a Venezuela defendeu o disparo de sete mísseis no Mar do Japão feito pela Coréia do Norte, conferindo credibilidade aos relatos segundo os quais Chávez estaria negociando a compra de mísseis norte-coreanos. 'Os EUA são o representante maldito do capitalismo', declarou em discurso de duas horas proferido em Hanói, diante da Câmara do Comércio e Indústria do Vietnã. 'O capitalismo levará a humanidade à perdição e destruirá tudo', disse ele, ignorando que há duas décadas o Vietnã comunista vem aderindo a políticas voltadas ao mercado que lhes propicia avanços enormes em crescimento econômico, redução da pobreza e aumento da expectativa de vida. O presidente da Câmara, Vu Tien Loc, ficou perplexo, dizendo: 'O Vietnã está aderindo à economia de mercado, então, nessas circunstâncias, o que ele falou sobre o capitalismo não me parece apropriado.'
Chávez fez uma escala em Londres para um discurso e uma sessão de elogios recíprocos com o prefeito da cidade, Ken Livingstone. Num ato de generosidade singular, Chávez concordou em vender diesel a preços subsidiados para a frota de 8 mil ônibus da capital britânica. A renda per capita da Venezuela é de aproximadamente US$ 6 mil, enquanto a de Londres é de US$ 40 mil. Um memorando interno disse que o governo venezuelano vai ganhar 'cooperação maciça de propaganda' da venda. 'Essa cooperação pode ser colocada dentro e fora dos ônibus. Além disso, o gabinete do prefeito vai desenvolver um plano bem articulado para disseminar a cooperação.'
Chávez fechou vários negócios em Moscou. Ele já tinha encomendado 100 mil fuzis Kalashnikov AK-103 para uso do Exército e de uma milícia de 2 milhões de homens e mulheres que está sendo formada para defender a pátria. Uma firma russa de armas está licenciando à Venezuela a produção de 25 mil fuzis AK-103 por ano, numa fábrica que será construída com ajuda russa e, segundo Chávez, pode ser utilizada para exportar armas a países vizinhos. Seus agentes andam fazendo compras para formar um arsenal sofisticado previsto para custar uns US$ 30 bilhões.
Além dos Kalashnikovs, em Moscou Chávez assinou US$ 3 bilhões em pedidos de 24 caças-bombardeiros Sukhoi (Su-30) e 33 helicópteros blindados de ataque. Ele pretende adquirir entre 10 e 15 submarinos lançadores de mísseis, várias dúzias de tanques de batalha e veículos blindados T-90 e 138 embarcações navais de superfície. O jornal russo Vedomosti noticiou que a Venezuela vai comprar mísseis terra-ar Tor-M1. 'Vamos ter uma barreira de defesa sobre o Caribe', anunciou Chávez.
Essas aquisições de armas deixam os vizinhos da Venezuela receosos. O ex-presidente brasileiro José Sarney avisou sobre o 'desejo declarado de fazer da Venezuela uma potência militar. O Brasil e outros países sul-americanos não podem concordar com nenhuma política de militarização, e, para começar, devem advertir Chávez de que ninguém concorda com isso'.
Em discurso em Moscou em 10 de novembro de 2005, Chávez disse a seus anfitriões: 'Quero render homenagem à União Soviética pelo bem legado à humanidade com o simples fato de sua existência. Estendo a vocês minhas condolências pela maneira como a experiência soviética terminou. Dou-lhes meus parabéns porque um dia tudo isso explodirá e a América Latina será o que a Rússia não pôde ser.'
Chávez criou grupos paramilitares de elite sob seu comando pessoal, independentes das forças de segurança regulares, mas também fala de uma espécie de resistência guerrilheira, da 'guerra assimétrica', para repelir uma invasão americana. Suas compras de armas no exterior buscam compensar o baixo nível de prontidão operacional das Forças Armadas com 100 mil homens, às quais nos últimos anos têm faltado uniformes, botas, capacetes, proteção corporal, suprimentos alimentícios, munição e caminhões. A utilidade de todos os novos equipamentos será posta à prova pelo nível de organização militar. Os caças Sukhoi avançados requerem treinamento intensivo dos pilotos e procedimentos de manutenção sofisticados para que sejam mantidos em prontidão para combate. Os oficiais do Exército regular podem opor resistência à distribuição de fuzis russos para a milícia civil.
GENEROSIDADE
Chávez já prometeu cerca de US$ 35 bilhões em projetos no exterior visando a conquistar influência política, sobretudo na América Latina. A gama de iniciativas é espetacular. Entre elas está a compra de mais de US$ 3,3 bilhões em títulos do governo argentino, além de uma rede de postos de combustível em Buenos Aires. Para consolidar o que Chávez chamou de 'eixo Caracas-Buenos Aires', Venezuela e Argentina pretendem lançar um título binacional, o Bono Sur, por outros US$ 2 bilhões.
Chávez também prometeu comprar US$ 100 milhões em títulos de cada um dos governos da Bolívia, Paraguai e Costa Rica. Autoridades explicaram que a aquisição dos títulos estrangeiros é uma maneira de esterilizar a enorme entrada de petrodólares na economia, para conter a inflação doméstica. Um novo mercado secundário foi criado quando US$ 2,4 bilhões em títulos argentinos foram revendidos pelo governo a bancos venezuelanos, à taxa de câmbio oficial, sendo que os bancos os revendem novamente no mercado internacional pelo câmbio paralelo, o que lhes proporciona um lucro grande e lhes confere acesso mais livre a dólares, sob controle cambial.
Chávez prometeu construir ou modernizar refinarias no Brasil, Cuba, Panamá, Uruguai, Argentina, Equador e Paraguai. A Venezuela oferece petróleo a preços fortemente descontados a várias repúblicas centro-americanas e caribenhas, às vezes em termos de troca, como, por exemplo, a troca de petróleo por bananas de Granada. Estão sendo vendidos ao todo 220 mil barris de petróleo por dia com financiamento fácil no valor de aproximadamente US$ 2 bilhões. Boa parte dessa atividade recente visa a conquistar apoio para a candidatura da Venezuela a uma vaga no Conselho de Segurança das Nações Unidas, à qual os EUA se opõem, mas que conta com o apoio de vários países caribenhos, latino-americanos, africanos e árabes, influenciados pela generosidade de Chávez.
Para realizar esses planos, Chávez criou organizações regionais como a Petrocaribe, o Petrosur, a Telesur (TV por satélite), a Petroandina, o Banco Sur (banco de desenvolvimento) e a Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas). Boa parte delas não saiu do papel. Quando a Venezuela uniu-se à Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai no Mercosul, Chávez propôs transformar a organização numa aliança militar e num 'Mega-Estado' com Constituição e moeda únicas.
Chávez é o segundo venezuelano a tentar moldar o futuro da Bolívia. O primeiro foi Simón Bolívar, em cuja homenagem a república recebeu seu nome e cuja 'grande idéia' de uma Constituição boliviana com presidente vitalício foi rejeitada pelas elites locais.
Chávez tornou-se aliado estreito do atual presidente boliviano, Evo Morales, tanto antes quando depois da eleição de Evo por maioria esmagadora, em dezembro de 2005. Cuba, Venezuela e Bolívia assinaram em Havana um 'Tratado Comercial dos Povos' dois dias antes de Evo anunciar a nacionalização do setor petrolífero boliviano, no dia 1º de maio. A Venezuela deve trocar 200 mil barris de diesel por mês por remessas de soja boliviana. Chávez prometeu à Bolívia uma ajuda que vai totalizar US$ 2 bilhões (mais de 20% do PIB boliviano). Médicos e professores cubanos estão trabalhando em projetos de saúde e alfabetização na Bolívia. A Venezuela criou um fundo de US$ 100 milhões para fornecer crédito a pequenos agricultores na Bolívia. Uma companhia binacional, a Minesur, desenvolveria o potencial boliviano de mineração. A PDVSA pagou pela transmissão televisiva das partidas da Copa do Mundo a comunidades rurais e é acusada de também ter pago anúncios de televisão em apoio à campanha de Evo Morales para mudar a Constituição boliviana. A Venezuela vai construir duas bases militares bolivianas na fronteira com o Brasil. Evo Morales viaja pelo mundo num avião a jato que Chávez lhe emprestou. E percorre a Bolívia em dois helicópteros Super Puma que também foram emprestados por Chávez, com medo dos riscos de Evo viajar nos helicópteros do governo boliviano.
Semanas antes de Evo Morales anunciar a nacionalização das empresas estrangeiras que operam a indústria boliviana de gás natural, enviando tropas para ocupar suas instalações, contadores da PDVSA visitaram os escritórios dessas empresas, juntamente com funcionários bolivianos, para averiguar possíveis fraudes. Desde então, cerca de 200 contadores e técnicos da PDVSA vêm ajudando a preparar a pequena estatal boliviana Yacimientos Petroliferos Fiscales de Bolivia (YPFB) para administrar o setor.
Além disso, foram anunciados US$ 1,5 bilhão em projetos de Chávez e Evo para a produção de petroquímicos, fertilizantes e asfalto, e para a separação dos líquidos do gás natural; uma companhia binacional para certificar as reservas bolivianas de petróleo e gás; e a instalação, em toda a Bolívia, de 34 postos de combustível com a marca Petroandina.
Os críticos de Chávez perguntam: como a PDVSA pode arcar com o custo de enviar tantos técnicos para trabalhar na Bolívia, quando ela própria sofre uma escassez grave de técnicos para manter a produção de petróleo em queda em seu próprio país? Essa pergunta foi respondida rapidamente quando, três meses após o decreto de nacionalização baixado por Evo, quase todos os técnicos da PDVSA voltaram para casa depois de o novo governo 'suspender' a tomada das instalações de empresas estrangeiras, por falta de dinheiro e pessoal especializado.
Discursando diante dos chefes de Estado de 53 nações africanas, na Gâmbia, em julho, Chávez exortou à criação de 'uma comissão para articular uma estratégia para petróleo, gás e petroquímica para a África e América Latina. Somos potências energéticas. Coordenemos um projeto, o Petrosur, e em pouco tempo veremos milagres para a independência e o desenvolvimento econômico'. Em sua viagem à África, Chávez reuniu-se por meia hora com o presidente do Mali e ofereceu equipar um hospital na capital do país, Bamako.
Esse tipo de generosidade provoca ressentimento na Venezuela, em vista da deterioração e carência de materiais básicos em seus próprios hospitais, centros de saúde e clínicas. De acordo com sondagens de opinião recentes, entre 63% e 84% dos venezuelanos se opõem às iniciativas de ajuda externa lançadas por Chávez para conquistar liderança geopolítica. Aproximadamente metade acredita que problemas como corrupção, criminalidade, desemprego, inflação e pobreza estão se agravando, enquanto um quarto enxerga melhorias.
Norman Gall no Estadão
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