sexta-feira, setembro 08, 2006

Propaganda eleitoral e desesperança

Mais uma vez a propaganda eleitoral pela televisão vem mostrando a precariedade do cenário político brasileiro. A associação da imagem fugaz, se não exótica ou histriônica, com slogans vazios, proposições triviais ou irrealistas e generalidades de consenso fácil (todos queremos educação, saúde, emprego, desenvolvimento, honestidade, segurança...) é praticada por todo o espectro político-ideológico. Seu nível medíocre ou de mau gosto escamoteia a pronta análise crítica do conteúdo e parece indicar menoscabo pelo povo, entendido como suficientemente estulto para ser cooptado pelo marketing banal.

Há de tudo no festival da propaganda, da boa intenção, nem sempre bem alicerçada, à defesa de interesses corporativos (capital, trabalho, serviço público) ou paroquiais subalternos, à mera demonstração de despreparo, à necessidade de aparecer a qualquer custo - raras são as idéias substantivas. Há os que prometem o inverossímil ou medidas da alçada de outros Poderes ou níveis da Federação, no pressuposto de que os eleitores não são capazes de discernir isso (é provável que alguns promitentes não sejam). Há os que satanizam temas complexos como o endividamento, a globalização, o capitalismo e os juros, mas provavelmente não conseguiriam explicá-los, nem justificar seus vitupérios, com lógica convincente.

Predomina a promessa fantasiosa nem sempre claramente conectada aos programas partidários - quando existem -, apoiada na improbabilidade da cobrança, que não é parte da nossa cultura política; os devaneios são tanto mais audaciosos e irrazoáveis quanto menor a esperança de ser eleito, porque a não-eleição elimina a necessidade de procurar honrá-los. Embora a boa política implique prioridades competentes e responsáveis, as colocações, sempre superficiais, descartam a avaliação realista de suas possibilidades e limitações e dos efeitos sobre outras demandas. As difusas soluções miraculosas sugerem mais ilusão do que racionalidade, sugerem até mesmo a inabilitação para entender as implicações do prometido (custos, tempo e capacidade necessários, aceitabilidade nacional e internacional). Prevalece a exploração viciosa, psico-política e socioeconômica, da nossa tradição cultural estatista (o Estado brasileiro pode e deve tudo) e da fragilidade do eleitorado aberto à fantasia surrealista e ao milagre salvacionista e assistencialista.

A historiadora Bárbara W. Tuchman apresenta em seu livro A Marcha da Insensatez um curioso questionamento, referenciado à democracia inglesa ainda imatura à época em que se situa o questionamento, mas válido para a complicada democracia brasileira do início do 21: "Que nível de percepção, que ficções ou fantasias tomam parte na estratégia política? Que fantásticos vôos se elevam por sobre estimativas razoáveis da realidade? Quais os graus de convicção ou, ao contrário, de exageros conscientes que se tornam atuantes? Os argumentos inspiram realmente crédito ou não passam de falsa retórica aplicada para reforço de um desejado curso de ação?" A associação desse questionamento com nossa propaganda eleitoral (em que o "desejado curso de ação" é a re/eleição...) induz a cadeia de raciocínio em que a primeira etapa é de pena pelo despreparo ou de contrariedade pela falta de autocrítica. A segunda é o enfado: como isso é "chato", quanta vulgaridade! Mas logo surge a preocupação sobre o que acontecerá no Brasil se "aqueles" atores forem eleitos. Muitos o serão, como têm demonstrado as sucessivas eleições e a propaganda atual não autoriza a esperança de mudança sensível.

Esse quadro preocupa e induz a uma pergunta, no mínimo, instigante: o que leva a candidatar-se tanta gente inconvincente no tocante à qualificação objetiva, a despeito dos custos envolvidos no processo eleitoral? Seria a convicção de missão cidadã, justa ou equivocada, mas sincera e honesta, que provavelmente move muitos? Seria a cultura que cultiva o fascínio pelo "emprego" político, com seus salários generosos (se referenciados ao universo salarial brasileiro) e vantagens patrimonial-clientelistas lícitas, ainda que algumas, no mínimo, discutíveis? Ou, para os vulneráveis à tentação, até mesmo ilícitas, facilitadas pelas características da estrutura e atuação do Estado brasileiro? Seria tão grande o "entusiasmo cívico" pelos cargos eletivos se eles não propiciassem um posicionamento relativo bastante atraente, na pirâmide socioeconômica nacional?

O bom funcionamento da democracia é difícil quando fragilizado - em vez de reforçado - pelo seu mecanismo processual básico, a eleição. A exorcização da ameaça dedutível da nossa propaganda eleitoral, mais espetáculo medíocre que esclarecimento objetivo, depende da redução da vulnerabilidade do povo eleitor à retórica fantasiosa ou demagógica, que, por sua vez, depende da sua inclusão cultural e socioeconômica, em complemento à política. Esta, um direito outorgado pela lei; aquela fruto de evolução complexa e demorada.

Se tudo continuar como está, vai continuar crescendo o já sensível descrédito do sistema político-representativo. E vai crescer a aceitabilidade de vir a ser o Brasil um Estado democrático de Direito gerido por regime em que a maioria da representação, depreciada por seus vícios, inclusive de formação, é induzida (sabe Deus como) a apoiar (participando...) alguma versão de democracia de sabor messiânico-carismático plebiscitado. Esse apoio vicioso, comprometedor da legitimidade democrática, não chega a ser novidade na América do Sul, com uma ressalva no nosso caso: não temos receita de petróleo que alimente a ilusão assistencialista típica do modelo e permita "ignorar" as reformas estruturais necessárias à viabilização racional do País, dependentes de cenário político saudável.

Mario Cesar Flores é almirante-de-esquadra (reformado)

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