terça-feira, setembro 30, 2008

Proer blindou o sistema bancário brasileiro

por Marco Maciel

A atual crise mundial dos mercados financeiros e de capitais, cujos enfrentamentos estão sendo adotados pelo governo dos Estados Unidos, confirma o quanto estava certo o presidente Fernando Henrique Cardoso ao criar o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), implementado no Brasil de 1995 a 2000.

O contexto econômico que o Brasil vivia naquele momento explica os fatores que levaram à crise das instituições financeiras e a necessidade de um plano daquela natureza. O Plano Real, que havia sido implantado em 1994, abalou um bom número de bancos que tinham na inflação elevada a base estrutural do seu padrão de rentabilidade.

As ferramentas de que o Banco Central dispunha tradicionalmente não seriam suficientes nem adequadas para lidar com a quebra generalizada que se antevia. Havia o risco real de comprometimento de todo o sistema de pagamentos de nossa economia. Fazia-se necessária uma iniciativa radical de reestruturação de todo o sistema financeiro e essa iniciativa foi o Proer.

A última operação de financiamento do Proer foi concluída em meados de 1997. A implementação do programa custou, no total, R$ 20,4 bilhões, valores da época, cerca de 2,7% do produto interno bruto (PIB) médio do triênio 1995-1997. Os valores atualizados são, evidentemente, maiores, mas a indicação do porcentual do PIB dá uma boa noção de que o programa teve custos relativamente baixos.

Ademais, o Banco Central vem resgatando consistentemente parte dos valores que investiu no Proer. Vários dos chamados "títulos podres" em poder dos bancos adquirentes, que foram desviados para o Proer, revelaram-se, com o passar do tempo, ativos de qualidade. Não se tratou, portanto, de "doação" a instituições quebradas. Foi, antes, um empréstimo, que vem sendo resgatado com regularidade, conforme demonstram os balanços patrimoniais do Banco Central.

As diferenças entre o Proer e o plano que se cogita de executar para o sistema financeiro norte-americano não ficam apenas na questão dos custos. Esse é um dos quesitos, mas não o único. O Proer foi uma resposta rápida, bem estruturada, barata, eficiente e bem-sucedida a uma situação que resultou de um contexto econômico bastante pontual, qual seja a estabilização econômica e o fim da hiperinflação proporcionados pelo Plano Real.

Instituições bancárias que não gozavam da imprescindível higidez soçobraram e os bens dos depositantes foram preservados em sua integridade. Os valores investidos pelo programa estão sendo paulatinamente reincorporados pelo Banco Central. Os efeitos benéficos da atuação enérgica - e eu diria também cirúrgica - do Banco Central, naquele momento, verificam-se até hoje com a estabilidade econômica e a solidez de nosso sistema bancário.

O economista Mailson da Nóbrega, com sua experiência de ministro da Fazenda e no mercado de capitais, resumiu muito bem a questão ao dizer: "O que salvou o Real foi o Proer. Se o governo não tivesse tomado essa iniciativa, corria o risco de enfrentar uma crise gigantesca do sistema financeiro."

Importa destacar não haver sido usado dinheiro do Orçamento federal, prova da seriedade com que se administrou a crise, sem transigir naquilo que era essencial à estabilidade fiscal do País. Os recursos vieram da própria reserva bancária, formada pelos depósitos compulsórios que os próprios bancos são obrigados a retirar de todos os depósitos efetuados à vista e entregues, como garantia, ao Banco Central.

Isso fez parte do amplo programa, incluindo a federalização para posterior privatização de bancos estaduais. Tivemos, portanto, um período que ensejou a venda de bancos estaduais, muitos dos quais debilitados e enfraquecidos por políticas equivocadas. Devo salientar que se fez o refinanciamento das dívidas dos Estados e a emissão de títulos da dívida pública com cláusula de reajuste cambial.

Assim se estabeleceram, no octoênio do presidente Fernando Henrique Cardoso, que teve o economista Pedro Malan como ministro da Fazenda, as bases do desenvolvimento. Nunca é demais insistir que o País continuou a crescer após o término da administração Fernando Henrique Cardoso. Isso se deveu, basicamente, aos bons fundamentos da economia.

Como definiu o historiador Carlo Levi, "o futuro tem um coração antigo". Assim - volto a fazer um exercício de lembrar o passado -, já naquele tempo, o Banco Central passou a reformular com eficiência a fiscalização do sistema bancário para melhor acompanhamento da situação patrimonial dos bancos.

Foi o Proer que devolveu, mais bem concretizadas, as atribuições legais do Conselho Monetário Nacional: estabelecer as diretrizes gerais das políticas monetária, cambial e creditícia; regular as condições de constituição, funcionamento e fiscalização das instituições financeiras; e disciplinamento dos instrumentos de política monetária e cambial.

A crise de 1995 era a primeira após essas providências. O Brasil enfrentou-a e a venceu. O resultado hoje se apresenta muito positivamente, demonstrando o acerto de havermos criado e implantado o Proer. Agora, em face da atual crise, espero que não ocorram maiores impactos que venham a reduzir acentuadamente a continuidade de nosso desenvolvimento. Acredito que isso muito dependerá da capacidade de reagirmos adequadamente a desdobramentos que, indesejadamente, venham a ocorrer nos Estados Unidos, na Europa, na Ásia e em nosso país.

Marco Maciel, senador, é membro da Academia Brasileira de Letras

segunda-feira, setembro 29, 2008

Palmas para Lula

Nunca os pobres se sentiram tão protegidos e nunca os banqueiros lucraram tanto no Brasil

O alto índice de popularidade do presidente Lula tem suscitado a reflexão dos comentaristas que se sentem desafiados a explicá-la. A tarefa não é das mais fáceis e, por isso mesmo, as explicações nem sempre coincidem, muito embora sejam, na sua maioria, pertinentes. E porque o assunto envolve numerosos fatores e causas, resta sempre algum ponto que ainda não foi explicitado.

Vou tentar examinar alguns deles e, para isso, terei que tocar em aspecto já argüidos mas que não se podem excluir na apreciação do tema. Um deles é, sem dúvida, a estabilidade econômica de que o país goza hoje e de que não gozaria se as teses de Lula, contra o Plano Real, tivessem prevalecido. Não faço tal observação com outro propósito senão o de tentar definir a natureza dessa popularidade e suas possíveis conseqüências para o processo político.

O fato de Lula, eleito presidente, ter adotado a política econômica que combatera ferozmente, revela-se uma louvável sensatez, revela também, ao mesmo tempo, por ele não reconhecer o débito de hoje e o equívoco do passado, certa carência de escrúpulos, o que explica muita coisa da popularidade de que desfruta hoje.
Certamente, essa popularidade se deve também aos programas sociais de amparo às camadas desfavorecidas da sociedade, antes aplicados em Campinas (SP) e Brasília, depois adotados por Fernando Henrique em âmbito nacional e que Lula manteve e ampliou.

Mas também aqui, mais uma vez, procurou turvar a água e apresentar-se como o criador do programa, fundindo os dois programas existentes e mudando-lhes o nome. Com isso, prejudicou-lhes a eficiência, por dificultar a avaliação precisa dos resultados. Como era de se esperar, aumentou a ajuda a cada família e a dotação global para abranger o maior número possível de famílias, que hoje somam cerca de 11 milhões, o que equivale a mais de 40 milhões de indivíduos. Bastaria, portanto, o Bolsa Família para lhe garantir uma ampla aprovação das camadas pobres do povo. Isso é do conhecimento de todos.

No entanto, não bastaria para assegurar a Lula a aprovação de que desfruta hoje. Ele lançou mão de outros recursos, como, por exemplo, manter-se permanentemente no palanque e na mídia, tudo fazendo para, com seus discursos e pronunciamentos, capitalizar, não apenas o resultado dessas iniciativas, como de tudo o que, de positivo, ocorre no país. Tudo o que ocorre de bom, foi ele quem fez; tudo o que ocorre de ruim, tem um culpado, que não é ele.

E, como esta é sua principal ocupação, está sempre atento à mais mínima notícia que possa comprometer o "paraíso" em que ele transformou o Brasil: ao surgir uns primeiros sintomas de aumento da inflação, ele imediatamente culpou Bush e os países europeus. Não importa se é verdade ou não, já que a grande massa do povo não entende bem como essas coisas se dão; o que ele diz é aceito, porque ele é seu amigo e salvador e "os outros", seus inimigos.

Lula tem a esperteza do demagogo, e não a esconde. Quando surgiu o escândalo do "dossiê", declarou: "O povo não sabe o que é dossiê; pensa que é alguma coisa doce". E por essa mesma razão, quando lhe perguntaram pela crise econômica, respondeu: "Pergunta pro Bush". E assim responsabilizava o presidente americano por uma crise que é do sistema econômico e não do governo.

Por que fez isso? Porque lhe interessa levar o povo a pensar que o presidente de um país é responsável por tudo, donde decorre que, se os Estados Unidos vão mal, a culpa é de Bush e, se o Brasil vai bem, é graças a Lula e a ninguém mais. Mas isso só vale até que alguma coisa dê errado, quando então o responsável será, inevitavelmente, alguém que não ele, a imprensa talvez ou os "inimigos" do Brasil.

E por falar em inimigos, vale lembrar que Lula tem um discurso para cada público e para cada ocasião; ultimamente, comporta-se, nos palanques, como se estivesse num palco: "Dilma, já pensou se isso acontecesse dez anos atrás?". A sorte é que temos no governo um mago das finanças, que é também uma metamorfose ambulante.

A sua popularidade deve-se também a um raro talento político, a que se soma o fato de, originário da classe operária, atuar como uma espécie de amortecedor dos conflitos entre pobres e ricos: em função disso, nunca os pobres se sentiram tão protegidos e nunca os banqueiros lucraram tanto. Os nossos capitalistas -do mesmo modo que Bush- não ligam quando ele posa de esquerdista. Sabem que os fatos valem mais do que as palavras. E daí, os aplausos gerais.

Atenção, auditório, palmas para o Lula, que ele merece!



Transcrito da Folha de S. Paulo de 28/9/2008

quarta-feira, setembro 24, 2008

Um delírio lulista

Lula discursou ontem na ONU. A relevância dessa cerimônia é nula. Exceto para os acólitos e familiares presenteados com um passeio por Nova York.
A fala lulista incluiu a já conhecida ladainha sobre reforma do Conselho de Segurança e combate à fome. O brasileiro também esteve prestes a classificar o capitalismo brasileiro como melhor do que o norte-americano -usando o discurso juvenil segundo o qual tudo se resolve com política.
Até aí, está no preço. Lula é Lula. Só uma afirmação perdida no texto presidencial continha uma dose extra de panglossianismo. Ao regozijar-se pela situação econômica, disse que tudo se deu com o "fortalecimento da democracia, com intensa participação popular".
Identificar "intensa participação popular" no Brasil é uma licença poética. É ínfimo o envolvimento dos brasileiros na construção de instituições mais fortes e sólidas.
Para ficar num exemplo, a conexão dos cidadãos com os partidos políticos é inexistente, abúlica -aliás, todas as siglas são apenas ações entre amigos, ou grupo de amigos rachados, como o PSDB paulista.
Os petistas vão reclamar. O PT é um "partido popular", dirão. Faz até prévias em algumas disputas. É verdade, embora com inserção marginal na sociedade.
Eis um dado concreto. Lula se reelegeu em 2006 com 58,2 milhões de votos. Declarou ter recebido dinheiro de 1.624 doadores. Neste ano, nos EUA, o democrata Barack Obama já registrou 2,2 milhões de doadores individuais. O republicano John McCain contabiliza 730 mil contribuintes. Tudo na democracia de mercado com os palpiteiros criticados por Lula.
O petista talvez se encante com a classe média viajando para Miami ou comprando bugiganga chinesa nos camelôs. Esses, certamente aprovam Lula. Mas não têm nada a ver com "participação popular".

Fernando Rodrigues - frodriguesbsb@uol.com.br

segunda-feira, setembro 22, 2008

Lição em discurso inédito

Rubem Azevedo Lima para Correio Brasiliense

A 14 meses da sucessão, Lula diz que “escolherá e elegerá a mulher que o substituirá na Presidência", talvez a ministra Rousseff. É a volta à república velha ou aos tempos do regime militar, cujo último presidente, general João Figueiredo, com os poderes que tinha, elegeria quem quisesse, mas não o fez e até se negou a apoiar o candidato partidário. Uma lição para Lula, como a de Sarney, cuja sucessão também correria livre.

Ministro de Figueiredo, o general Danilo Venturini ganhou dele o discurso não-feito, no que seria a posse de Tancredo Neves, então hospitalizado. Para os juristas palacianos e o chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu, devia-se empossar Ulysses Guimarães, presidente da Câmara.

“Só por isso — diz Venturini — Figueiredo não pôs a faixa em Sarney."

Em belo trabalho do ministro sobre esse tempo, lido pelo repórter, Figueiredo, nas 500 palavras do discurso a Tancredo, se diz de “consciência tranqüila e ânimo sereno de quem cumpriu o dever e saldou compromissos assumidos consigo mesmo e com a nação".

Mas ele alude a sugestões recebidas para subverter a legalidade institucional: “Empenhei todas as energias, físicas e intelectuais, no desempenho do cargo que ocupei. Em todas as circunstâncias, só me guiei pelo interesse público... Não dei ouvidos aos que me apontavam caminhos incompatíveis com as imposições do bem coletivo".

“Não me seduziu a demagogia dos que procuram o favor da opinião pública, àquilo que, no meu íntimo, considerava só o interesse nacional."

“Restaurar a democracia na plenitude era o primeiro dever, ponto fundamental do meu programa... Ela promove a concórdia, respeita as opiniões e repele o fanatismo. E, contrariamente ao que sustentam seus críticos, é plenamente governável... Cumpri a palavra empenhada."

“Senhor Tancredo Neves: com satisfação, passo-lhe às mãos a Presidência. Está V. Exª altamente credenciado para o cargo, por suas qualidades intelectuais e morais, equilíbrio e espírito público. Conta V. Exª com o beneplácito popular. Minha simpatia o acompanha, com votos de êxito na missão que o Brasil lhe confiou. Presidente Tancredo Neves, confio em sua vontade de servir. Que Deus o ajude."

Sem imposições, Figueiredo consagrou o candidato que o povo queria.

terça-feira, setembro 16, 2008

O Estado policial e intelectuais

Jarbas Passarinho

Em recente painel de Tendências e Debates, da Folha de S.Paulo, à pergunta do jornal “Você se sente vivendo num Estado policial?”, dois intelectuais de renome responderam divergentemente: “não”, para Renato Janine Ribeiro, e “sim”, para Roberto Romano. Ambos embasaram suas respostas com referência superficial ao ciclo militar de 1964 — 1984.

Ao deter-me na leitura dos textos lapidares, minha primeira associação de idéias foi com um livro que causou a mais profunda impressão na minha mocidade: Itinerário de Marx a Cristo, do filósofo e escritor francês Ignace Lepp. Ingressando jovem no Partido Comunista Francês, em pouco tempo, graças à sua excepcional capacidade de persuasão e bom conhecimento do marxismo, foi dirigir o Agit-Prop, o órgão da maior importância para cooptar simpatizantes e transformá-los em militantes. Desempenhou relevante papel no “movimento internacional dos intelectuais marxistas”.

Conferencista em todos os países da Europa, foi preso e condenado à morte, na Alemanha, onde o marechal Hindenburg acabara de entregar o poder a Hitler. A rede de evasão organizada pelos comunistas alemães deu-lhe fuga, 48 horas antes da execução, direto para Moscou. Nomeado professor universitário de Filosofia, encarregaram-no de proferir dissertações, detidamente em toda a Rússia européia, “para comparar a excelência do regime soviético com a opressão aos trabalhadores nos países capitalistas”. Logo no início de sua missão, começaram as surpresas. Num jantar, homenageado pela cúpula local do partido, notou o esbanjamento de caviar e vodca, enquanto os operários viviam pobremente.

Como se repetisse a cena, em outras cidades, ousou expor a um amigo seu desencanto. “Uma importante personalidade me meteu, embaixo do nariz, o texto de recente discurso de Stalin. O Pai Genial dos Povos condenava formalmente o igualitarismo como utopia pequeno-burguesa”. Ainda assim, não se arreceou. A intelectuais de suas relações pessoais, denunciou o que anos depois Milovan Djilas repetiu ao escrever, em A Nova Classe: a degeneração dos ideais marxistas da igualdade e fraternidade. Ouvido, de início em silêncio total, em seguida era evitado. Era claro o sinal da delação e o perigo de ser dado como “inimigo do povo”, o que valia pela sentença de degredo na Sibéria ou de morte. Confessou: “Não me atrevi a confiar a mais ninguém minhas dúvidas e minhas revoltas íntimas”. Fugiu para a França, nunca mais refeito do choque entre o que propagara, com risco da própria vida, e a realidade da União Soviética.

Estendi-me nesse exemplo porque foi o primeiro que me fez ver, com credibilidade segura, o que pode a delação num Estado policial. No meu tempo de ginasiano, dizia-se que Moscou erigira um monumento a uma criança, cujo pai era trabalhador de fazenda rural coletiva, a Kolkhozy. O filho, “herói marxista”, delatou o pai por ter sonegado, para consumo da própria família, pequena parte da cota de alimentos devida ao Estado. Mantive dúvida, tal a vileza do fato.

No Grande Terror de Stalin, entretanto, Kruschev, em 1956, no seu famoso discurso no 20º congresso do partido, estarreceu a platéia ao revelar os crimes políticos hediondos praticados no Grande Terror stalinista, de um Estado policial sem igual, nutrido na tortura, na delação e nos assassínios. Conheceu o mundo os expurgos de Moscou, o assassinato de milhares de membros do partido, a grande maioria inocente, delatados como contra-revolucionários, sob a pecha de “inimigos do povo”. Confessavam sob tortura (confissões “fabricadas”) o que nada haviam cometido contra Stalin — nem assim fugiam da morte ou do desterro para a Sibéria.

Solsenitsin, no Primeiro Círculo, mostra que os prisioneiros dos campos de concentração, quase todos — como ele mesmo — por delitos de pensamento, conviviam sem saber com espiões que passavam por criminosos, cuja missão era delatar as conversas e os desabafos dos prisioneiros. Outra prova irrefutável. A isso, por analogia, o professor Janine Ribeiro compara o ciclo militar, metade do qual passou com a imprensa totalmente livre. Nele, afirma nunca ter sido molestado, bolsista na França “sem ser exilado” e posteriormente professor da USP.

Um historiador comunista confessa que 75% dos quadros da ALN, de Carlos Marighella, eram universitários da USP. Professor, é certo que nunca foi censurado por suas aulas, mas ficava revoltado por ver “barreiras policiais na ponte da Cidade Universitária”. Por isso concluiu ter vivido num “Estado policial”. O professor Romano foi preso. Não relata tortura. Solto, desmente o chiste que usou: o de que nos anos do ciclo militar não se perguntava o que alguém achava da situação política, “porque quem achou nunca mais foi achado”. Ele foi achado.

Raymond Aron, no seu magnífico livro O ópio dos intelectuais, escreveu, antes do prefácio, uma nota em que se perguntava se, depois do discurso de Kruschev, ainda tinha cabimento reeditar seu livro, dado que os intelectuais já não “fumavam o ópio soviético”, e a dialética da igualdade mudara-se em dialética do poder. Não é assim por aqui. Continuam fumando.

terça-feira, setembro 09, 2008

A maleta e a viagem

Jânio de Freitas

CRIADOR DA confusão que desviou para uma tal maleta da Abin as atenções suscitadas pelo problema das escutas, o ministro Nelson Jobim age com a mesma impropriedade ao se valer, agora, de uma viagem de Lula para desviar-se do seu depoimento, quarta-feira, como convocado da CPI das Escutas Telefônicas.
Ganhar uma semana, com a inquirição na quarta 17, talvez lhe ofereça um cenário mais abrandado na CPI, consideradas as explicações que deve. Mas seu compromisso, em todos os sentidos funcionais e pessoais, é com a convocação que vale como palavra do Congresso, para esclarecimentos relevantes no inquérito. E não com um passeio à Amazônia onde nada de importante tem a fazer. Tanto mais que o arranjo da escapada fica à mostra com o "convite" presidencial tão posterior à convocação da CPI.
A confusão começa ao ser dito a Lula (e outros), por Jobim, que a maleta seria destinada a gravações ambientais. Ocorre que o ministro Gilmar Mendes e o senador Demóstenes Torres falam ambos ao telefone quando são gravados, logo, um deles não poderia ser captado por um gravador ambiental. A própria gravação sugere, como primeiro indício, a velha escuta por linha telefônica, no entanto relegada pela "denúncia" de Jobim. Com as responsabilidades de ministro da Defesa, Nelson Jobim deve ter explicação interessante a dar à CPI, sobre os fundamentos de sua colaboração.
Em depoimento à CPI, o ministro da Segurança Institucional, general Jorge Felix, afirmou que pedira ao Exército o exame de especialistas em todo o equipamento da Abin, para verificação das respectivas finalidades. Não lhe constava haver maleta com gravador, mas tão só para varreduras. Nelson Jobim contestou-o com a informação de que a maleta foi comprada para a Abin pelo Exército, por intermédio de sua comissão de compras nos EUA. Arrasador.
Por alguns dias, sim. O Exército informou que a maleta não era de gravação. Arrasador. Um desmentido frontal do Exército ao ministro da Defesa? Veio então o habilidoso laudo do exame a que o general Felix se referira: o dispositivo da maleta é próprio para varreduras, não para gravação, sendo necessário submetê-lo a adaptações para que possa servir como gravador em determinadas circunstâncias.
Adaptação para quê, se qualquer gravador se prestaria ao serviço sem o trabalho de adaptá-lo, cabendo ao interessado apenas a conveniência de escolhê-lo segundo a duração das gravações? Jobim, no final da semana, preferiu dizer aos repórteres que "a divergência com o general Felix está encerrada".
Na CPI não está. Há informações inverídicas lançadas por um dos lados divergentes, delas advieram desdobramentos, a alguém ou a alguma corrente serviram para fins ainda obscuros, ou duvidosos.
Há, portanto, mais do que escutas a serem desvendadas. Ainda que o "mais" não tenha relação direta com a escuta em questão, seja parte de uma armação política por métodos pesados.

segunda-feira, setembro 01, 2008

O bem

por Denis Lerrer Rosenfield

Você quer que o Estado determine o que você deve fazer? Você pensa que o Estado sabe melhor do que você o que é o seu próprio bem? Você acha que o Estado sabe escolher melhor do que você o que são os seus valores morais e pessoais? Assim colocadas, essas perguntas remetem a questões centrais de filosofia moral, que acarretam conseqüências políticas das mais relevantes. No entanto, poderia também aflorar uma outra questão, relativa à sua atualidade, como se fosse um mero problema teórico, sem importância para a vida de cada um. Engana-se quem pensa assim.

Gradativamente, o Estado brasileiro, em suas várias esferas, está-se impondo cada vez mais em detrimento das escolhas individuais e, sobretudo, de considerações morais, que deveriam nortear a subjetividade de cada um. Trata-se da autonomia que cada um tem de decidir por si mesmo, exercendo uma discriminação racional daquilo que é melhor para si. Tem ocorrido freqüentemente uma suposta coincidência entre o que o indivíduo considera para si o bem e o que o Estado lhe apresenta enquanto tal, como se o politicamente correto fosse o caminho que permitiria essa identificação. Há aqui uma armadilha.

O Poder Executivo, em particular, interfere progressivamente na vida de cada um, seja por atos administrativos como decretos, portarias, resoluções e instruções normativas dos mais diferentes tipos, seja por medidas provisórias, seja ainda por projetos de lei que vão na mesma direção. Por exemplo, uma alteração, via administrativa, de uma alíquota do Imposto de Renda tem incidência direta nos rendimentos individuais e familiares, como se o Estado soubesse fazer melhor uso dos bens particulares. Ocorre uma transferência de bens materiais, de propriedades, que surge travestida de uma justificativa de ordem moral, ancorada na concepção de que o Estado sabe moralmente melhor do que qualquer um o que é o seu bem próprio.

O Incra, por sua vez, determina, em lugar dos assentados, o que é melhor para eles, interferindo diretamente no seu cultivo e, em última instância, em sua capacidade individual de escolha, como se um assentado fosse um tolo que deveria apenas seguir as diretrizes desse órgão estatal e dos movimentos ditos sociais. Assim, o cultivo de eucaliptos é proibido pelo Incra porque contraria as suas orientações, independentemente de que ofereça melhor rendimento aos assentados do que outros cultivos ou lavouras. Por que não poderia um assentado escolher o cultivo que lhe dê maior renda e usufruir seus resultados?

Tal "normalidade" não surge como um tsunami, mas em volumes crescentes, que vão ganhando consistência e poder. O caso da saúde é particularmente revelador. Em nome dela, há propostas de aumentos de contribuições, restrições ao fumo, mesmo em recintos que afetam somente os que usufruem o ato de fumar, à ingestão de bebidas alcoólicas ou à publicidade de medicamentos. O Estado apresenta-se como o grande patrocinador da saúde, quando está patrocinando somente a si mesmo. E o faz em nome do bem de cada um. Quem lhe confere esse poder?

Observe-se que, em nome da saúde, há projeto em curso para ressuscitar a CPMF, fortemente rechaçada por toda a população brasileira. Como os brasileiros são, hoje, contrários ao aumento de impostos, este aparece disfarçado de figura moral do bem de todos. A moral surge como justificativa de um simples acréscimo da arrecadação tributária! Da mesma maneira, por que deveria uma autoridade governamental banir o fumo em locais especialmente destinados a isso, sem afetar os não-fumantes? Não sabe cada um discernir o que é melhor para si, sem o auxílio da bengala estatal? Por que deveria o Estado determinar a "lei seca", graças a uma nova regulamentação apresentada com estardalhaço, como se fosse a salvação da saúde nacional? Por que o Estado deveria regulamentar a publicidade de medicamentos de livre compra em farmácias? Se a compra pode ser feita sem receita, onde estaria o seu dano para a saúde? Amanhã, vai o Estado legislar ainda mais no lar de cada um, como já começa a fazer? Onde reside o limite, se o solar da casa já foi transgredido? Cabe ao Estado informar sobre os efeitos nocivos de determinados hábitos para a saúde pessoal. Não lhe cabe tomar o lugar da escolha individual.

Levemos esse argumento ao seu extremo. Consideremos que a ingestão de colesterol e de gorduras saturadas fazem mal à saúde. Pesquisas científicas referendariam essa avaliação. Seguir-se-ia daí que seria função do Estado decidir o que cada pessoa deveria, por dia, tomar de sorvete ou comer de carne? Os indivíduos não poderiam tomar sorvete ou comer carne além de uma determinada quantia? Haveria punição para os transgressores? Assim apresentada, a questão parece absurda, porém ela é, em seus efeitos, terrivelmente verdadeira.

Não faltam, inclusive, pseudopesquisas que procuram justificar "cientificamente" essas medidas. Na verdade, a sua justificação reside numa determinada noção do bem de natureza propriamente política, estatal, que se reveste de científica. Séries estatísticas, por definição, podem ser feitas de quaisquer coisas, bastando relacioná-las, sem que daí siga necessariamente uma relação causal. Tomemos o caso da proibição de ingestão de bebidas alcoólicas por condutores de veículos. A redução da mortalidade nas ruas e estradas tem sido atribuída a essa lei. A correlação estabelecida se faz entre a nova lei e a redução da mortalidade. Por que não uma outra correlação, entre a fiscalização rigorosa da aplicação da lei, que poderia ser perfeitamente a anterior, e a redução da mortalidade? Se afrouxar a fiscalização, haverá provavelmente um aumento de acidentes automobilísticos, apesar da lei seca. No entanto, quando isso vier a ser comprovado, o efeito midiático buscado já terá sido atingido: o Estado sempre sabe o que é melhor para o indivíduo!

Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS.
E-mail: denisrosenfield@terra.com.br