Jarbas Passarinho
Em recente painel de Tendências e Debates, da Folha de S.Paulo, à pergunta do jornal “Você se sente vivendo num Estado policial?”, dois intelectuais de renome responderam divergentemente: “não”, para Renato Janine Ribeiro, e “sim”, para Roberto Romano. Ambos embasaram suas respostas com referência superficial ao ciclo militar de 1964 — 1984.
Ao deter-me na leitura dos textos lapidares, minha primeira associação de idéias foi com um livro que causou a mais profunda impressão na minha mocidade: Itinerário de Marx a Cristo, do filósofo e escritor francês Ignace Lepp. Ingressando jovem no Partido Comunista Francês, em pouco tempo, graças à sua excepcional capacidade de persuasão e bom conhecimento do marxismo, foi dirigir o Agit-Prop, o órgão da maior importância para cooptar simpatizantes e transformá-los em militantes. Desempenhou relevante papel no “movimento internacional dos intelectuais marxistas”.
Conferencista em todos os países da Europa, foi preso e condenado à morte, na Alemanha, onde o marechal Hindenburg acabara de entregar o poder a Hitler. A rede de evasão organizada pelos comunistas alemães deu-lhe fuga, 48 horas antes da execução, direto para Moscou. Nomeado professor universitário de Filosofia, encarregaram-no de proferir dissertações, detidamente em toda a Rússia européia, “para comparar a excelência do regime soviético com a opressão aos trabalhadores nos países capitalistas”. Logo no início de sua missão, começaram as surpresas. Num jantar, homenageado pela cúpula local do partido, notou o esbanjamento de caviar e vodca, enquanto os operários viviam pobremente.
Como se repetisse a cena, em outras cidades, ousou expor a um amigo seu desencanto. “Uma importante personalidade me meteu, embaixo do nariz, o texto de recente discurso de Stalin. O Pai Genial dos Povos condenava formalmente o igualitarismo como utopia pequeno-burguesa”. Ainda assim, não se arreceou. A intelectuais de suas relações pessoais, denunciou o que anos depois Milovan Djilas repetiu ao escrever, em A Nova Classe: a degeneração dos ideais marxistas da igualdade e fraternidade. Ouvido, de início em silêncio total, em seguida era evitado. Era claro o sinal da delação e o perigo de ser dado como “inimigo do povo”, o que valia pela sentença de degredo na Sibéria ou de morte. Confessou: “Não me atrevi a confiar a mais ninguém minhas dúvidas e minhas revoltas íntimas”. Fugiu para a França, nunca mais refeito do choque entre o que propagara, com risco da própria vida, e a realidade da União Soviética.
Estendi-me nesse exemplo porque foi o primeiro que me fez ver, com credibilidade segura, o que pode a delação num Estado policial. No meu tempo de ginasiano, dizia-se que Moscou erigira um monumento a uma criança, cujo pai era trabalhador de fazenda rural coletiva, a Kolkhozy. O filho, “herói marxista”, delatou o pai por ter sonegado, para consumo da própria família, pequena parte da cota de alimentos devida ao Estado. Mantive dúvida, tal a vileza do fato.
No Grande Terror de Stalin, entretanto, Kruschev, em 1956, no seu famoso discurso no 20º congresso do partido, estarreceu a platéia ao revelar os crimes políticos hediondos praticados no Grande Terror stalinista, de um Estado policial sem igual, nutrido na tortura, na delação e nos assassínios. Conheceu o mundo os expurgos de Moscou, o assassinato de milhares de membros do partido, a grande maioria inocente, delatados como contra-revolucionários, sob a pecha de “inimigos do povo”. Confessavam sob tortura (confissões “fabricadas”) o que nada haviam cometido contra Stalin — nem assim fugiam da morte ou do desterro para a Sibéria.
Solsenitsin, no Primeiro Círculo, mostra que os prisioneiros dos campos de concentração, quase todos — como ele mesmo — por delitos de pensamento, conviviam sem saber com espiões que passavam por criminosos, cuja missão era delatar as conversas e os desabafos dos prisioneiros. Outra prova irrefutável. A isso, por analogia, o professor Janine Ribeiro compara o ciclo militar, metade do qual passou com a imprensa totalmente livre. Nele, afirma nunca ter sido molestado, bolsista na França “sem ser exilado” e posteriormente professor da USP.
Um historiador comunista confessa que 75% dos quadros da ALN, de Carlos Marighella, eram universitários da USP. Professor, é certo que nunca foi censurado por suas aulas, mas ficava revoltado por ver “barreiras policiais na ponte da Cidade Universitária”. Por isso concluiu ter vivido num “Estado policial”. O professor Romano foi preso. Não relata tortura. Solto, desmente o chiste que usou: o de que nos anos do ciclo militar não se perguntava o que alguém achava da situação política, “porque quem achou nunca mais foi achado”. Ele foi achado.
Raymond Aron, no seu magnífico livro O ópio dos intelectuais, escreveu, antes do prefácio, uma nota em que se perguntava se, depois do discurso de Kruschev, ainda tinha cabimento reeditar seu livro, dado que os intelectuais já não “fumavam o ópio soviético”, e a dialética da igualdade mudara-se em dialética do poder. Não é assim por aqui. Continuam fumando.
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