quinta-feira, agosto 30, 2007

O Senado está nu

Foi preciso que um funcionário do Senado decidisse reatar relações com a própria consciência para suas excelências perceberem o óbvio: que há três meses o presidente da Casa, Renan Calheiros, usa o cargo e a estrutura da instituição escancaradamente em proveito próprio.

Como os senadores não são lesos, cegos nem surdos, as reações de surpresa ao pedido de exoneração do secretário-adjunto da Mesa, Marcos Santi, destinam-se única e tão somente a justificar a posteriori a complacência dos senadores para com os usos e abusos em série protagonizados à vista de todos pelo presidente do Senado.

Santi demitiu-se em função da orientação de Renan Calheiros para que a consultoria técnica preparasse parecer em favor da votação secreta dos relatórios do processo de quebra de decoro parlamentar contra o presidente.

Postas as cartas na mesa, exposta a ferida, os senadores reagiram indignados. Consideraram "muito grave" a denúncia do funcionário e passaram a desconfiar seriamente da hipótese de a interferência de Renan Calheiros significar por si só ato parlamentar indecoroso. O secretário-adjunto fez a conhecida constatação sobre a nudez do rei e acabou desnudando também os súditos. Três meses, três processos abertos e inúmeras evidências depois, sejamos claros: Renan Calheiros só continua na presidência porque o Senado assim o permitiu.

A tardiamente percebida quebra de decoro por uso da máquina está estabelecida desde aquele primeiro momento em que, da cadeira da presidência, Calheiros se defendeu e recebeu de seus pares a quase unânime manifestação de reverência.

Declararam-se quase todos satisfeitos com a documentação brandida do alto da tribuna - logo depois desmoralizada por reportagem da TV Globo e, em seguida, pela perícia da Polícia Federal - e formaram a já notória fila do beija-mão.

Depois disso, o presidente usou do mesmo expediente diversas vezes sem ser contestado, até que o registro repetido da inadequação nos noticiários fez Renan Calheiros se transferir para o microfone dos comuns quando o assunto era o processo.

Da mesma forma, o presidente do Senado só se declarou impedido de participar de decisões da Mesa relativas ao caso quando a situação se tornou insustentável.

Antes disso, já usara a secretária-geral da Mesa, Claudia Lyra, para assessorar sua defesa em sessões no Conselho de Ética, depois disso usou a mesma funcionária para revisar, na calada, as notas taquigráficas de seu depoimento aos três relatores do processo.

Usou o líder do governo, Romero Jucá, como seu menino de recados no conselho, usou o poder de pressão para intimidar senadores e obrigar servidores a cuidar de seus interesses e, em ocasiões anteriores já havia usado a consultoria jurídica para produzir pareceres a seu favor. Isso sem falar no uso repetido de estratagemas, no início do escândalo, para postergar decisões.

O Senado viu tudo isso e não se mexeu. Limitou-se ao inútil jogo de cena de "exigir", quando não "aconselhar", quase pedindo desculpas, um pedido de licença da presidência.

Sempre se poderá argumentar que o ato de renúncia é unilateral e, pela lei e o regimento, Renan Calheiros só se moveria da presidência por vontade própria ou cassação.

Trata-se de uma meia verdade. A Câmara, quando quis, simplesmente impediu o presidente sob suspeita de comandar a sessão conjunta com o Senado para a aprovação do Orçamento. Um grupo de deputados ameaçou não votar, e Calheiros recuou. Saiu, ali, de fato, da presidência do Congresso.

Mas o Senado fez diferente. Prestou reverência a ele o tempo todo, fingiu não ver o abuso da máquina e agora simula surpresa diante da manifestação de um servidor público cuja vulnerabilidade funcional o obrigou a recuar da denúncia explícita. O ato de autoproteção talvez dê aos senadores a oportunidade de voltarem a fechar os olhos e continuarem a convalidar as ações do colega que a todos representa, inclusive na nudez exposta às evidências.
Dora Kramer

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