Use-se qualquer lente e não será possível enxergar nada diferente de um amazônico desastre na aprovação da lei que institui a fidelidade partidária por três anos e onze meses, libera a infidelidade durante 30 dias a cada quatro anos, pune com perda de mandato os que trocarem de partido fora desse período e pretende proibir o Tribunal Superior Eleitoral de interpretar leis.
Poderíamos classificar a lei aprovada pela Câmara na quase madrugada de quarta-feira como uma salada de intenções fisiológicas e corporativas não se tratasse de um problema mais sério, examinado no contexto geral da desmoralização do Poder Legislativo no Brasil. A salada, vista sob esta óptica, é de ervas daninhas.
Quanto mais desmoralizado estiver o Congresso, mais desequilibrados estarão os Poderes e mais ampla será a passagem para propostas institucionalmente heterodoxas. Sob o argumento de que o Parlamento só produz malefícios, só legisla em causa própria, pode-se apresentar como solução a instituição de um foro extraordinário como este proposto pelo PT - sob o gentil patrocínio do Palácio do Planalto -, de convocação de uma Assembléia Constituinte exclusiva para "debater e aprovar" a reforma política.
E, uma vez consolidada essa idéia, será difícil fazer ver aos indignados (com razão) que deve querer mais, pois se quisesse mesmo só a reforma política o governo teria maioria para tocar o projeto com o Congresso convencional.
A mesma maioria que não se empenha em fazer a reforma e que, na Câmara, acaba de aprovar com os votos de 292 deputados governistas uma proposta de fidelidade cujo propósito principal é legalizar o troca-troca passado e conferir aos trânsfugas futuros um salvo-conduto para infringir a lei aparentemente dura.
É como diz o diretor de programas de governança do Banco Mundial, Daniel Kaufman, co-autor de um recente relatório sobre governabilidade e corrupção em países emergentes: "A produção incessante de novas leis é uma forma politicamente oportuna de reagir às pressões para se que tomem medidas contra a corrupção, no lugar de encarar reformas sistêmicas e fundamentais."
Em português claro: quanto mais rigorosa a lei, mais fraca a intenção de cumpri-la.
Mas voltemos à lei dita de fidelidade partidária, que é incongruente, confusa e passível de ser derrubada no Supremo Tribunal Federal.
A lei fala em perda de mandato, o que é previsto na Constituição apenas em casos de renúncia ou cassação. Para instituir essa pena seria preciso uma emenda constitucional e não uma lei complementar.
A legislação na qual o Tribunal Superior Eleitoral se baseou para abrir espaço aos partidos que perdem deputados a pedirem de volta as vagas deixa claro que os mandatos pertencem aos partidos. Nada diz sobre a perda do mandato. Exatamente por ser uma questão constitucional, depende de uma palavra final do Supremo.
Suas excelências sabiam perfeitamente disso quando simularam pose de austeras, instituindo a cassação pura e simples sem observar a Constituição.
O alvo era apenas o salvo-conduto à infidelidade instituído na exceção à proibição do troca-troca durante 30 dias do penúltimo ano de cada legislatura e a anistia aos 38 deputados dependentes dessa decisão do STF por terem trocado de partido da eleição para cá.
No afã de resguardar seu direito à infidelidade para com o eleitor e atender, assim, à cooptação governamental, acabaram aprovando uma legislação sem pé nem cabeça, que prevê a infração a ela própria.
Mal comparando, seria como dizer o seguinte: é proibido roubar bananas da mercearia, à exceção dos dias tais e tais. Nestes, fica liberado o surrupio.
Tão desprovida de sentido que pretende também alterar o ordenamento jurídico vigente, proibindo o TSE de "aplicar retroativamente interpretações da legislação".
Primeiro, porque a Justiça Eleitoral não "aplica" nada, apenas interpreta.
Segundo, porque não existe sentido "retroativo" em leis em vigor. O TSE, ao interpretar que a lei confere ao partido a propriedade do mandato, não inventou nada, ateve-se aos textos legais já existentes.
Ademais, quem disse que o Legislativo pode, por lei infraconstitucional, alterar as funções do TSE, proibindo o tribunal de fazer isso ou aquilo?
Seria só um elogio à estultice, não escondesse um perigo à espreita na esquina: uma aposta na desmoralização do Legislativo a fim de que o Executivo passe, sob aceitação geral, a dialogar direto com a sociedade.
Daí para começar a discutir a necessidade de substituição do Congresso por outra instância "mais limpa" - como a já citada Assembléia Constituinte exclusiva - são poucos os passos a serem dados.
A oposição, desta vez, esteve atenta para isso. DEM, PSOL, PPS e PSDB recusaram-se a votar e a convalidar a distorção. A oposição fez o seu papel.
Salvou uma parte da face do Congresso, cujo todo anda prestes a sucumbir a um claro processo de exacerbação dos defeitos com vistas a transformar o Legislativo em Poder descartável.
Dora Kramer
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