A solenidade em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva entregou ao PMDB o comando dos Correios é o exemplo definitivo de como a gestão petista radicalizou todas as distorções que têm desmoralizado a República e depauperado o Estado brasileiro. O primeiro aspecto relevante a ser destacado é o uso do ancestral sistema das capitanias hereditárias, pelo qual os colonizadores portugueses conseguiram, na base do mínimo esforço, extrair de forma predatória os recursos naturais de Pindorama; espoliar as populações nativas e os degredados d’África; e dilapidar as riquezas produzidas além-mar, em solo americano. Em benefício de Lula se pode dizer que o loteamento das “boquinhas” na máquina pública federal não foi inventado pelo PT e é, sim, uma herança que vem de longe, muito longe, no tempo. Mas talvez não seja excessivo lembrar que o presidente e seu partido convenceram a Nação a mudar a direção de seu destino para abolir vícios malsãos como este - na base de “jamais verás governo assim” ou “não há, ó gente, ó não, patota como esta do nosso partidão”.
Agora, com a ajuda do medo que os adversários do PSDB e do PFL têm da natureza combustível do próprio rabo-de-palha, o PT e o chefe do governo pretendem fazer o mesmo eleitorado perceber as evidências de que eles são seus semelhantes em tudo, inclusive no cinismo com que praticam e justificam suas “maracutaias” (apud Lula). O conivente silêncio com que a oposição permitiu ser assada a pizza do mensalão nos fornos da Câmara, contudo, não poderá calar a evidência do desastre da coalizão formada por derrotados do PT nas últimas eleições e aliados de ocasião, que afundou o País num mar de desmandos de corrupção e erros terríveis de administração.
A hora de lembrar é esta, às vésperas da reeleição já apregoada aos quatro ventos. Principalmente pelo fato de o escancaramento da opção do PMDB - sob o comando do líder no Senado, Ney Suassuna (PB), um dos suspeitos do último escândalo, o da máfia das ambulâncias - ter dado ao presidente a oportunidade de explicitar à Nação sua mais recente estratégia para escapar de qualquer acusação que o possa envolver na sujeira revolvida no sórdido episódio do “valerioduto”. Após se ter dito “traído” por companheiros do governo e do partido, sem delatar nenhum deles; distribuído, de forma socialista, a culpa pelo crime fiscal do “caixa 2” em campanha a todos os partidos; ungido os eventuais culpados pela bênção do próprio perdão e acusado os adversários de havê-los torturado; Sua Excelência vem entregar, juntamente com os cargos, o ônus exclusivo dos eventuais delitos neles cometidos aos meeiros de gestão.
“É mais que justo que o partido que tenha um ministro no governo seja o responsável por todo o ministério”, disse o mestre na arte de “tirar o corpo fora”, como se diz na gíria do lúmpen que o elegerá e perfeitamente entendida pelos banqueiros que, embriagados pelos lucros obtidos em seu governo, o aplaudem com fervor e mantêm seus adversários a pão e água.
Justiça seja feita: não se trata de uma atitude nova de Sua Excelência. Ele já não ouviu as denúncias do então secretário de Obras e vice-prefeito de Campinas, Antônio Costa Santos, que lhe contou detalhes da roubalheira promovida pelo prefeito petista ao qual era subordinado. E fez ouvidos de mercador às evidências de irregularidades nos contratos das prefeituras do PT com o senhorio do luxuoso apartamento onde morava de graça em São Bernardo, que lhe foram contadas por Paulo de Tarso Venceslau. Seu desapreço pela leitura não deixa dúvidas de que não tem conhecimento do fundador dessa prática do “não sei, não me contaram, nada tenho que ver com isso”, que foi o ídolo, não dele, mas de seu ex-lugar-tenente José Dirceu: Stalin. Simon Montefiore conta num livro como o georgiano manobrava os magnatas bolcheviques, levando-os ao massacre múltiplo e mútuo, dando a impressão a algozes, vítimas e sobretudo à população de que ele era o “único a não saber”. Sem a cultura nem os requintes de crueldade do tirano comunista, nosso “guia máximo” cumpre à perfeição seu papel de “supremo irresponsável” pelos malfeitos de seus auxiliares, ao mesmo tempo que garante a continuidade no poder se beneficiando o quanto pode do farnel de bondades que o governo sob sua égide distribui a banqueiros e miseráveis - sempre a cada um pelos serviços que poderá prestar ao amo e senhor de todos os súditos.
Esta não é, também, uma exclusividade do chefe do Executivo. Desde a promulgação da Constituição de 1988, o Congresso Nacional tem agido como se nada tivesse que ver com a hora do Brasil. O nosso é o regime da mamata impune e sem compromisso, também comungado pelo Poder Judiciário, cujos membros praticam as maiores barbaridades em nome das leis que interpretam a seu bel-prazer, embora aleguem ser impotentes para mudá-las. O discurso do presidente e candidato à reeleição na entrega da capitania hereditária (por ironia do destino, exatamente aquela em cujo núcleo apodrecido estourou o tumor da corrupção do mensalão, com o flagrante de uma propina filmada e divulgada) é a consagração definitiva dessa prática perversa na política nacional: a busca do poder total sem contrapartida de responsabilidade. O espírito folgazão, sem compromisso com nada que não seja a própria ânsia de mandar, do chefe da Nação talvez venha a autorizar a iniciativa de alguém com poder suficiente para modificar o dístico da Bandeira Nacional. Com a ordem enxovalhada pelos facínoras do crime organizado e de uns tais movimentos sociais e o progresso esfrangalhado pela desfaçatez com que os grupos que se assenhoraram do poder rapinam os escassos recursos da sociedade brasileira, é o caso de inscrever: “Poder total com responsabilidade zero.”
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde
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