quinta-feira, julho 06, 2006

Lula, o conservador

Rótulos são traiçoeiros. O presidente Luiz Inácio passa por "progressista" convicto aos olhos de todo o mundo, mas, se existe um político conservador, que não quer mudar nada, é Lula. Tanto que não mudou nada até agora. A contradição entre realidade e aparência faz de Lula um simpático farsante. Falaremos do Lula conservador (ou conversador, tanto faz).

Em primeiro lugar, conservador é o político que faz de tudo para conservar a sociedade no estado secular de atraso em que ela vegeta. Em segundo lugar, é o político que se empenha ao máximo em conservar o poder uma vez conquistado, trocando o projeto de nação pela estratégia da manutenção no poder por tempo indeterminado.

Neste segundo sentido, o PT é o partido mais conservador da República. Aparelhou o governo, isto é, tomou conta dos postos-chave da administração, com base na filiação partidária, não no mérito. E não esconde que veio para ficar, arquitetando um plano de governo de duração ilimitada no espaço e no tempo. Alternância no poder? Que é isso, companheiro? Nada de ceder o lugar a outros partidos, o que interessa é engessar o governo nas mãos de um grupo, um partido exclusivo funcionando como as antigas oligarquias. Governo e partido serão um só e o mesmo, em união substancial (abençoada por parte do clero católico).

Nas políticas conservadoras tradicionais o clientelismo é a peça central na montagem da estratégia eleitoreira. Consiste na troca de favores entre o político e o eleitor. O candidato a vereador, deputado, governador, presidente da República, etc., simulando generosidade, oferece ao eleitor pobre uma cadeira de rodas, um emprego, uma dentadura, e em troca o beneficiado lhe dá o voto. Aqui, força é reconhecer que Lula inovou com brilhantismo, mostrando, ele e o PT, uma criatividade exuberante. Onde já se viu comprar o voto com uma dentadura ou um par de tênis? A principal moeda de barganha da corrente progressista dominante é hoje o Bolsa-Família. Pesquisa efetuada pelo Instituto Ipsos Public Affairs, e publicada neste jornal em reportagem de Paulo Moreira Leite, atesta que "56% dos cidadãos que avaliam o governo como ótimo ou bom já receberam benefícios do programa Bolsa-Família ou conhecem alguém que o faz" (5/6, A4).

Lula aceitou e conservou passivamente o legado da política econômica de Fernando Henrique, uma política defensiva (controle rígido da inflação, juros altos, superávit primário, etc.), aplicando-a tal como a recebeu. O homem é sempre herdeiro, mas tudo o que recebe do passado não é para ser repetido literalmente, e sim para fazer outra coisa. A língua falada e escrita é o melhor exemplo. O escritor brasileiro herdou a língua de Machado de Assis, de Euclides da Cunha e de Rui Barbosa, mas não para escrever como eles escreviam, e sim como ele sabe escrever. Escrever como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guimarães Rosa ou Lygia Fagundes Telles. Outro tanto ocorre com a política e a economia. Não tem cabimento reproduzir em nossos dias o liberalismo e o capitalismo segundo os padrões novecentistas. A política econômica de FHC, boa para seu tempo, deveria prosseguir de outra maneira no governo seguinte, com investimentos maciços na infra-estrutura, por exemplo, o que não houve.

Mas onde Lula fracassa redondamente como líder progressista e confirma seu feitio francamente conservador, de quem não quer mudar nada, está na circunstância de que Lula não criou, não foi capaz de gerar um fato novo. A marca do verdadeiro estadista reside na criação do fato novo irreversível, aquele divisor de águas que impõe o antes e o depois no curso dos acontecimentos. Fato novo foi o Plano de Metas de JK, a recuperação do Estado da Guanabara por Carlos Lacerda, o Plano Real de FHC. Qual o fato novo devido a Lula que marcou a política brasileira em "antes" e "depois" dele? O Fome Zero fracassou, o microcrédito gorou, o Primeiro Emprego encruou, o ProJovem deu vexame. Resta o Bolsa-Família, herança do governo anterior. Toda a política de Lula é caracterizada pelo "foquismo", uma política do varejo, que se dispersa em atender focos isolados de carência e se acaba perdendo na salvação desta ou daquela árvore, em vez de cuidar da floresta como um todo. O que falta em seu governo é a política universal de educação, saúde, previdência, segurança e infra-estrutura. A mania das "opções preferenciais", que resultou, ironicamente, mais na proteção dos banqueiros que da pobreza, foi fatal. Transformou o governo lulo-petista no maior governo remendão de todos os tempos no País.

A estratégia das "opções preferenciais" é vesga e equivocada e acaba privilegiando particularismos incontroláveis, que pervertem a relação das partes com o todo na sociedade. O MST e o MLST são quistos subversivos derivados da famosa "opção preferencial pelo pobres" pregada pela Teologia da Libertação. Nenhum grupo pode ser privilegiado na sociedade que não degenere num quisto particularista que termina rompendo com sua condição de parte de um todo para erigir-se num todo à parte. Esta é a própria definição do particularismo: um determinado grupo desfaz seus laços com o todo de que faz parte para arrogar-se como um todo à parte. E como a parte desgarrada desiste de conviver pacificamente com o restante da sociedade, com base na lei e nas instituições vigentes, só se pode impor pela agressão e violência declarada, como se viu no episódio da invasão da Câmara, em Brasília, pelo MLST.

Num tremendo erro de perspectiva, até cientistas políticos famosos associam a conduta do MLST à desmoralização do Congresso. Na verdade, o quebra-quebra de Brasília se inscreve no método da chamada ação direta, implantada por sindicalistas franceses em 1900 e logo adotada pelo comunismo e pelo fascismo. A ação direta proclama a violência como prima ratio da História, escarnecendo e passando por cima de qualquer norma ou negociação pacífica.

Gilberto de Mello Kujawski, escritor e jornalista, é membro do Instituto Brasileiro de Filosofia - E-mail: gmkuj@terra.com.br