quinta-feira, março 26, 2009

A Metafísica de Botequim de Tom Waits

Por Martim Vasques da Cunha

"Don't you know there ain't no devil, there's just God when he's drunk?"
(Você não sabe que não existe demônio, somente Deus quando está bêbado?)
Tom Waits, "Heartattack and Vine"

(Nota: Devido à tese que quero apresentar neste texto, tive que traduzir as letras das canções de Tom Waits. Como em minhas tentativas anteriores, tive algumas críticas - todas construtivas - sobre a minha (im)perícia como tradutor, aviso que fiz o possível para não estragar a linguagem de Waits, sempre baseada em trocadilhos, gírias e imagens etéreas, desde que preservasse o sentido para melhor compreensão do leitor. Qualquer erro, a culpa é exclusivamente minha e espero que o leitor me avise de qualquer correção urgente)

Nem Immanuel Kant, nem Kierkergaard, e muito menos Jean-Paul Sartre e Martin Heiddeger conseguiram ganhar de Thomas Alan Waits no quesito de "metafísica de botequim". Perdoem-me os puristas e os tradicionalistas, mas qualquer frase de "Heartattack and Vine" ou de "Foreign Affairs" valem mais do que qualquer linha de "Ser e Tempo", "O Ser e o Nada", "O Desespero Humano" e até os "Fundamentos para uma Metafísica dos Costumes", de Kant. Somente conseguem ser páreo para Waits, Aristóteles e Santo Tomás, e talvez estes últimos só perderiam porque Waits venceria os dois, na hora de verter uma boa garrafa de uísque.

Parece brincadeira, mas o fato é que Tom Waits, com sua voz rascante, instrumentação desafinada e letras sem nenhum nexo aparente, é um sujeito que nos leva a refletir sobre que raios estamos fazendo aqui, neste mundo repleto de imbecilidades e desgraça, pergunta pertinente a qualquer metafísica que se preze. Se, para um Aristóteles todo homem busca conhecer e, para um Santo Tomás, todo homem deve unir a razão e a fé, para Tom Waits, todo homem fica feliz com um copo de bourbon, uma mulher com cabelos oxigenados e uma lata de feijões nos momentos em que a solidão bate fundo. É um alvo baixo, devemos confessar, mas quem disse que não é verdade? Às vezes, o ser humano deixa a baixeza se disseminar nas suas atitudes. Mas isso não significa que Tom Waits seja um artista de quinta categoria, com objetivos de décima. Ele retrata um mundo muito particular, um mundo em que perder é sempre uma constante e, por isso mesmo, o Diabo apronta as suas. No entanto, como bem descreve a epígrafe deste texto, o Diabo não existe - foi Deus mesmo quem aprontou toda essa bagunça, quando estava curtindo uma bela birita.

O leitor que achar que eu e Tom Waits somos dois hereges, por pensarmos tão desrespeitosamente do Todo-Poderoso, pode fechar esta página e denunciar-nos ao Vaticano. Contudo, Waits pode ser tudo, menos um herege ou um ateu. O que ele possui é uma visão peculiar da vida do espírito, uma visão que não descarta algo que anda em falta nos cleros e nas pessoas que se dizem religiosas: bom humor. Claro que não é um humor besteirol, típico de retardados mentais: há um toque de lirismo, de amargura e de nostalgia, que deixa o ouvinte comovido ao escutar canções sobre losers, pachucos e pallukas, seres tão estranhos à nossa realidade que só mesmo um artista de muito talento para nos deixar ver a vida desses infelizes e sofrer com eles. E este artista único e impagável é Tom Waits.

Apesar de toda a sua esquisitice, Waits faz parte da mesma linhagem de "frágeis senhores da guerra" em que se incluem compositores como Bob Dylan, Lou Reed, David Bowie, Elvis Costello, Leonard Cohen, Neil Young e Nick Cave. Além disso, é um poeta de mão cheia e um compositor sofisticado, capaz de fazer melodia até mesmo com o barulho de uma cadeira, como prova a canção "Shore Leave", do álbum "Swordfishtrombones" (Comprova-se este fato quando Elvis Costello, um dos sujeitos com o melhor bom gosto musical no mundo, faz três covers de clássicos de Waits para o álbum com Anne Sofie Von Otter, "For The Stars"). No entanto, para chegar ao seu estilo único, Waits teve de criar uma persona anterior: a de melhor cantor de botecos que já existiu.

Seu primeiro álbum, "Closing Time", é uma das grandes estréias em vinil, ao lado de "Are You Experienced", de Jimi Hendrix e "Boy", do U2 e mostra um compositor com linguagem própria - melodias delicadas, uma voz semi-bêbada e letras que retratam a desilusão do perdedor americano. Para quem vivia de pileques, queria dormir num Landau com luvas de couro e abraçado a uma pá retrátil, "Closing Time" parecia ser um belo início de carreira - uma carreira de respeito, em que pessoas como Bruce Springsteen, The Eagles e até Bette Midler (?!) regravariam suas canções, devido ao tom único que inspiravam ao ouvinte um mundo completamente diferente.

Uma das grandes sacadas de Waits como compositor é justamente esta sensação de estarmos dentro de um mundo, apenas pelo poder de sugestão da canção. Em "Closing Time" (1973), pensamos que estamos numa boate no final do expediente, escutando as lamúrias do pianista ou do bar-man que tenta arranhar umas notas no instrumento. Esta atmosfera de bar continuaria nos álbuns seguintes, como "Small Change" (1974) e "Nighthawks from the Diner" (1975), este gravado dentro de um bar de verdade, em que Waits mostra sua versatilidade como "stand-up comedian", até chegar ao ápice na pérola das pérolas, "A Sight for Sore Eyes", do álbum "Foreign Affairs" (1976), um conto patético de um grupo de amigos que se separaram conforme o passar dos tempos, narrado por um bêbado que só sabe xingar alguns pallukas que se encontram no bar (para quem não sabe, um palluka é, na língua particular de Waits, um perdedor de marca maior).

É também nesta fase que Waits começa a desenvolver a sua metafísica de botequim a partir de discos que contassem histórias completas, como se fossem mini-óperas. O postulado de que ele parte para a sua "ciência a qual queremos chegar", é que o homem é um bicho solitário - algo evidente para quem escutou "Closing Time", mas que fica cristalino na canção "Blue Valentine" (1978), em que o narrador conta que mandou um cartão de Dia dos Namorados para si mesmo, tamanha a sua solidão. Nesse aspecto, Waits é como se fosse um Edward Hopper alcoólatra, e cada canção é um daqueles quadros em que as pessoas estão em busca de um olhar, de um gesto significado, mas tudo está embebido num grau máximo de incomunicabilidade. Num mundo em que a solidão impera, o Mal é apenas uma banalidade porque, afinal de contas, todos estão bêbados demais para perceber isso.

Mas é claro que Waits não queria ficar somente no mundo do botequim. Como todo bom metafísico, ele queria expandir seus limites. Os primeiros álbuns de Waits faziam uma sátira melancólica de Los Angeles, com seus anjos perdidos em busca de companhia e alguma sorte, mas só encontrando isso em algum barzinho da esquina. Agora, estava na hora de ir para outras regiões de La America. Que tal o país inteiro? Foi aí que surgiu "Swordfishtrombones", o primeiro álbum em que Waits criou sua persona definitiva, inclassificável, o bêbado filósofo com voz raspando a garganta de forma aflitiva, misturando rock, polka, jazz e até mesmo música de vaudeville.
"Swordfishtrombones" (1983) contava a história de Frank, um ex-marinheiro que, devido ao tédio que sua esposa e o cachorro dela impunham, resolveu queimá-los colocando gasolina na casa e ateando fogo. O álbum era a primeira parte de uma trilogia informal, que seria completada com "Rain Dogs" e "Frank Wild´s Years". O que diferenciava este disco dos anteriores não era somente a instrumentação inventiva, mas o modo como Waits usava a voz, desta vez parecendo Martin Sheen em "Apocalypse Now", narrando fatos bizarros que aconteciam na sua frente como se fossem a coisa mais normal do mundo. Não é à toa que o próprio Waits fez a trilha-sonora de "One From The Heart", dirigido por Francis Ford Coppola, e depois seria ator em "Drácula de Bram Stoker" - se Coppola foi um dos poucos artistas que foram no fundo do coração das trevas americanas, Waits faria o mesmo, contanto que sua escuridão fosse divertida. Não sabemos se isso é possível, mas não podemos negar que Waits mostra um inferno que, se não tem os seus prazeres, mostra um humor incomum. "Swordfishtrombones", contudo, é apenas um bom disco: Waits ainda está muito tímido nas suas experimentações, e mesmo com delicadas canções de amor como "Johanesburg, Illinois" (dedicada à sua mulher e musa, Kathleen Brennan, que se tornaria co-compositora e co-produtora em álbuns futuros) ou então obras-primas de concisão narrativa e musical como "Shore Leave" e "In the neighbourhood", estava claro que o nosso metafísico de botequim precisava esculpir mais suas idéias e erguer sua "Crítica da Razão Alcoólica", para criar sua nova persona e solidificar o estilo que acabara de encontrar, após anos e anos de procura nos balcões da vida boêmia.

"Rain Dogs" (1985) foi a resposta. Uma coletânea de histórias sobre marinheiros (diz a lenda que seria o Frank de "Swordfishtrombones" cruzando o oceano e chegando em New York - fato que nunca foi comprovado), um compêndio de sabedoria do submundo, um tratado de loucura escrito pelos próprios loucos - tudo isso é "Rain Dogs" e muito mais. Neste álbum, Tom Waits incorpora de vez a sua persona de cicerone do absurdo e faz a pedra de toque da sua metafísica. Sim, o mundo é um hospício (o título "Rain Dogs" é uma gíria para os doentes que ficam girando em torno de um mesmo lugar, como os cachorros que rondam suas poças de urina em dias de chuva), mas capaz de uma poesia assustadora, uma poesia que também pode ser dolorida, repleta da incomunicabilidade que só os amantes proibidos possuem. Há também espaço para o humor negro, como mostra "Cemetery Polka":

"Auntie Mame
Has gone
Insane
She lives in
The doorway of an old hotel
And the
Radio's playing opera and
All she ever says
Is go to Hell.
Uncle Violet
Flew as pilot
He said there
Ain't no pretty
Girls in France
Now he runs a
Tiny little
Bookie joint they say
He never
Keeps it in his pants
Uncle Bill
Will never leave a will
And the tumour is as
Big as an egg
He has a mistress
She's a Puerto Rican
And I heard she has
A wooden leg".

(Tia Mame
Ficou
Maluca
Ela vive numa
No corredor de um velho hotel
E o
Rádio está tocando ópera
E tudo o que ela diz é
Vá para o Inferno.
Tio Violeta
Voou como piloto
Ele disse que não há
Garotas Bonitas
Na França
Agora ele tem
Uma espelunca que dizem
Que nunca para nas suas calças
Tio Bill
Nunca fará um testamento
E seu tumor está
do tamanho de um ovo
Ele tem uma amante
Uma porto-riquenha
E ouvi que ela usa
Uma perna de madeira)

Aqui também percebe-se que Waits está cada vez mais preocupado com uma pergunta básica, à la Sartre: Os infernos são outros ou somos nós que construímos o nosso próprio Inferno? Ainda assim, "Rain Dogs" é uma obra bastante esperançosa, já que Waits consegue refletir sobre a passagem do tempo no ser humano com uma serenidade indistinguível, mesmo que aceite o fato tristemente, como sussurra (com um tom próximo de uma voz normal) em "Time" (regravada por Tori Amos): "The shadow boys are breaking all the laws/ And you're east of East St. Louis/ And the wind is making speeches/ And the rain sounds like a round of applause (...)And they all pretend they're Orphans/ And their memory's like a train/ You can see it getting smaller as it pulls away/ And the things you can't remember/ Tell the things you can't forget that/ History puts a saint in every dream/ And it's Time Time Time/ And it's Time Time Time/ And it's Time Time Time/ That you love" (Os garotos da sombra quebram as leis/ E você está a oeste de East St Louis/ E o vento está fazendo discursos/ E a chuva soa como aplausos (...)/ E todos fingem serem órfãos/ E a memória deles é como um trem/ Você pode vê-la diminuir enquanto ela vai embora/ E as coisas que você não se lembra/ Contam as coisas que você não quer esquecer que/ a História põe um santo em cada sonho/ E é o Tempo o Tempo o Tempo/ Que você ama).

Uma metafísica começa quando o sujeito aprende a amar o Tempo, independente da sua crueldade nas pessoas. Além do Tempo, deve-se aprender a cultivar a solidão como uma amiga. E isso Tom Waits nos ensina como ninguém. Contudo, ele retrata um mundo em que a única fuga decente parece ser a resignação de "já ter visto tudo" e, por isso, nada mais o impressiona. "9th and Hennepin" pode ser considerada o hino do frágil senhor da guerra, com sua ironia alucinatória em estilo beatnik:

"Well it's 9th and Hennepin
And all the donuts have
Names that sound like prostitutes
And the moon's teeth marks are
On the sky like a tarp thrown over all this
And the broken umbrellas like
Dead birds and the steam
Comes out of the grill like
The whole goddamned town is ready to blow.
And the bricks are all scarred with jailhouse tattoos
And everyone is behaving like dogs.
And the horses are coming down Violin Road
And Dutch is dead on his feet
And the rooms all smell like diesel
And you take on the
Dreams of the ones who have slept here.
And I'm lost in the window
I hide on the stairway
I hang in the curtain
I sleep in your hat
And no one brings anything
Small into a bar around here.
They all started out with bad directions
And the girls behind the counter has a tattooed tear,
One for every year he's away she said, such
A crumbling beauty, but there's
Nothing wrong with her that
$100 won't fix, she has that razor sadness
That only gets worse
With the clang and the thunder of the
Southern Pacific going by
As the clock ticks out like a dripping faucet
Till you're full of rag water and bitters and blue ruin
And you spill out
Over the side to anyone who'll listen
And I've seen it
All through the yellow windows
Of the evening train".

(Bem, estamos na 9th e Hennepin
E todos os donuts
têm nomes que soam como prostitutas
E os dentes da lua fazem marcas e estão no
céu como uma panela jogada sobre tudo isso
E os guarda-chuvas quebrados como
pássaros mortos e o vapor
sai da frigideira como
se toda a maldita cidade estivesse pronta para explodir.
E os tijolos estão repletos de tatuagens de cadeia
E todos se comportam como cachorros.
E os cavalos descem a Rua do Violino
E o Holandês está morto de cansaço
E os quartos cheiram a oléo diesel
E você pega
os sonhos de cada um que dormiram aqui.
E estou perdido na janela
Escondo-me na escada
Penduro-me na cortina
Durmo dentro do seu chapéu
E ninguém traz
algo pequeno em um bar aqui perto
Eles começaram todos com más intenções
E as garotas atrás dos balcões têm lágrimas tatuadas
Cada uma para cada ano que ele está fora, ela diz,
Que beleza degradante, mas não há
Nada que nenhuma nota de cem dólares
não possa resolver, ela tem aquela tristeza afiada
Que só piora
com o barulho e o trovão do Oceano Pacífico
enquanto o relógio pinga como uma torneira
Até você estiver cheio de água suja e amargura e tristeza
E você cuspir
ao lado de alguém que lhe escute
E eu vi de tudo
Eu vi de tudo atrás das janelas amarelas
Do trem noturno.)

A solidão de estar separado da amada é talvez a única coisa que o mantém são, mesmo quando quer se "comportar como um cachorro". Escute "Downtown Train", a canção mais pop que Waits já escreveu, tão pop que até Rod Stewart fez uma versão radiofônica, não percebendo a desilusão afiada ao cantar: "The downtown trains are full/ With all those Brooklyn girls/ They try so hard to break out of their little worlds/ You wave your hand and they scatter like crows/ They have nothing that will ever capture your heart/ They're just thorns without the rose/ Be careful of them in the dark/ Oh if I was the one/ You chose to be your only one" (O trem central estão lotados/ De garotas do Brooklyn/ Elas tentam sair daqueles mundos pequeninhos/ Você faz um aceno e elas respondem como corvos/ Elas não tem nada que vá agarrar o seu coração/ São apenas espinhos sem rosa/ Tome cuidado com elas no escuro/ Se eu fosse o único/ O único que você escolheria). Mas a mensagem de Waits não é algo explicíta. Seu humor do absurdo ainda mostra alguma resistência contra as ilusões da vida quando berra na última canção de "Rain Dogs", "Anywhere I Lay My Head" - "Well I see that/ The world is upside down/ My pockets were filled up with gold.// Now the clouds have covered o'er/ And the wind is blowing cold/ I don't need anybody/ Because I learned to be alone/ And anywhere/ I lay my head, boys/ I will call my home" (Bem, eu vejo que/ O mundo está de cabeça para baixo/ Meus bolsos estão cheios de ouro// Agora as nuvens me cobriram/ E o vento sopra gelado/ Eu não preciso de ninguém/ Porque aprendi a ficar sozinho/ E em qualquer lugar/ que eu deitar a minha cabeça/ Será a minha casa).

Sua alma é sua casa porque ninguém mais pode tê-la - exceto o Diabo, para quem o personagem de Waits está prontinho para fazer um pacto. No caso, um pacto patético, como fez no álbum seguinte, a parte final de sua trilogia, "Frank´s Wild Years", que mostra o velho Frank se envolvendo com o tinhoso. A tentação sempre foi algo que interessou Waits e ele desenvolveria este assunto na sua metafísica de botequim, fazendo uma contraposição com o tema da inocência - que só é possível quando sonha, e geralmente o sonho é um pesadelo grotesco.

"Frank Wild´s Years" foi a primeira opereta que Waits escreveu com sua esposa, Kathleen Brennan. Ele iria além em sua carreira como ator, fazendo papéis típicos de sua persona em filmes como "Down By Law", de Jim Jarmush, "Short Cuts", de Robert Altman e "Brincando nos Campos do Senhor", de Hector Babenco, mas a semente de seu lado mascarado sempre esteve em seus discos. Contudo, nunca sabemos quem é o verdadeiro Tom Waits - e é provável que ele nem se importe com isso. Ele se esconde atrás de sua metafísica que deixaria qualquer filósofo ou teólogo arrepiado, uma metafísica que, como o próprio intitulou no seu álbum "Bone Machine", é uma máquina de moer ossos. Ele despe a música e a melodia de qualquer espécie de ornamento desnecessário, concentrando apenas em percussão ou então em um banjo mal afinado. Mas ele não perde a ternura ao analisar a loucura de uma suicida em "Who Are You" ao perguntar: "How do your pistol and your Bible and your/ Sleeping pills go?/ Are you still jumping out of windows in expensive clothes?" (Como vão sua pistola e sua Bíblia e suas/ pílulas para dormir?/ Você continua a pular de janelas com roupas caras?). E por incrível que pareça, neste mundo de loucura e satanismo, há espaço para o surgimento de um Jesus, que, segundo ele, chegará logo, mas só na hora da morte: "Well I've been faithful/ And I've been so good/ Except for drinking/ But He knew that I would/ I'm gonna leave this place better/ Than the way I found it was/ And Jesus gonna be here/ Be here soon" (Bem, eu fui fiel/ E eu fui bom/ Exceto pela bebida/ Mas Ele sabia que eu? iria deixar este lugar para algo melhor/ Muito melhor do que encontrei/ E Jesus estará aqui logo/ Estará aqui logo).

Isso não muda, claro, a nossa verdadeira situação nesta terra - seremos apenas "sujeira no solo" ("Dirt on the Ground"). O pessimismo de Waits - se pode se chamar assim - fica cada vez mais evidente, por exemplo, quando se une com um outro pessimista de carterinha, William Burroughs, e ambos fazem, com ajuda de Robert Wilson, o esteta dos palcos que não tem nada a dizer, só a mostrar, o assustador "The Black Rider" (1992). Este talvez seja o projeto mais radical de Tom Waits, só tendo páreo com o lírico "Alice", também feito em parceria com Wilson. O tema da tentação diabólica é levado às últimas conseqüências, transformado num espetáculo de circo que se passa na Rússia e que mostra o Cão como um cavaleiro negro que, muito educadamente, "beberá seu sangue como se fosse vinho". Paralelamente, conta a história de um triângulo amoroso que termina em tragédia, ainda que tenha seus momentos de poesia, como retrata a linda (e macabra) "I Shoot the Moon": "A vulture circles/ Over your head/ For you baby/ I'll be the flowers/ After you're dead/ For you baby" (Um abutre circula/ Sobre sua cabeça/ Para você, minha querida/ Serei as flores? Depois que você morrer/ Para você, minha querida).

Esta proximidade entre o amor e a morte - às vezes os dois se tornando unidos com os amantes dormindo na mesma tumba - é atenuada em "Mule Variations" (1999), lançado seis anos após "The Black Rider". Parece que Waits ficou um pouco mais calmo com a demência do mundo, mas veremos que isso é passageiro. Ele se mostra capaz de cantar de forma lírica sobre as moças que conhecemos nas cafeterias da vida ("Hold On"), fazer odes à paranóia ("What´s He Building"), continuar a narrar suas peregrinações com a maior paciência do mundo ("Pony"), sem deixar de escapar farpas às religiões que transformam Jesus em marcas de chocolates ("Chocolate Jesus"), ou então criar a canção de amor mais ambígua dos últimos anos, em que o ouvinte não sabe se é uma despedida ou um louvor melancólico ao adultério ("Take With It Me"). Mesmo assim, Waits alcança uma serenidade aparente na última canção do disco, "Come on up to the house", quando afirma que nossa existência na Terra pode ser passageira, mas é carregada de sentido: "Does life seem nasty, brutish and short/ Come on up to the house/ The seas are stormy/ And you can't find no port/ Come on up to the house (...)The world is not my home/ I'm just a passin thru" (A vida lhe parece nojenta, cruel e curta/ Venha para a Casa/ Os mares são tempestuosos/ E você não encontrará nenhum porto/ Venha para a Casa/ O mundo não é meu lar/ Estou apenas de passagem). O sentido do mundo está na Casa, mas o problema é que a Casa não é deste mundo.

E este mundo, definitivamente, é dominado pelo rio da miséria ou então pela fuga do sonho. Em "Alice" e "Blood Money", seus álbuns lançados em maio deste ano, Tom Waits faz a maturação de toda a sua obra. São dois discos complementares, mas "Alice" é o mais acessível. Repleto de baladas e valsas desconstruídas, as canções escondem um profundo descontentamento - algo lógico se percebemos que os personagens principais dos discos ("Alice" e "Blood Money" são trilhas para dois espetáculos teatrais que Waits fez em parceria com Robert Wilson) são, respectivamente, um pedófilo (Lewis Carroll obcecado pela menina que daria origem ao seu livro mais famoso) e um homicida (no caso, Woyzeck, que assassinou a esposa por suspeitar de sua traição, o mesmo que inspirou o romance homônimo de Georg Büchner, já filmado por Werner Herzog, com Klaus Kinski). Se em "Mule Variations", Waits dizia que o sentido da vida era transcendente a ela, agora ele mostrava o que acontece quando se perde qualquer sentido e cai no niilismo ou na ilusão.

"Alice" era considerada a obra-prima escondida de Waits e é bem capaz dessa afirmação ser verdade. Composta na mesma época que "The Black Rider", o disco tem um lirismo raro, que pode ser sentido na canção-título, repleta de imagens insólitas ("It's dreamy weather we're on/ You waved your crooked wand/ Along an icy pond with a frozen moon/ A murder of silhouette crows/ I saw in the tears on my face/ In the skates on the pond/ They spell Alice" - É um tempo de sonho em que estamos/ Você acena com sua mão deformada/ Pelo lago gelado com uma lua congelada/ O assassinato de uma silhueta de corvos/ Eu vi nas lágrimas da minha face/ Nos skates do lado/ Sussurram Alice) e nas melancólicas ao cubo, como "Flower´s Grave", "No One Knows I´m Gone" (um verdadeiro hino para os desprezados do mundo), "I´m Still Here" e "Fish & Bird", esta uma pérola do amor impossível, que conta a história entre um pássaro e uma baleia (?!) com tamanha simplicidade, que quem não se emocionar com ela, simplesmente não é um ser humano: "They bought a round for the sailor/ And they heard his tale/ Of a world that was so far away/ And a song that we'd never heard/ A song of a little bird/ That fell in love with a whale/ He said, 'You cannot live in the ocean'/ And she said to him/ 'You never can live in the sky'/ But the ocean is filled with tears/ And the sea turns into a mirror/ There's a whale in the moon when it's clear/ And a bird on the tide/ Please don't cry/ Let me dry your eyes/ So tell me that you will wait for me/ Hold me in your arms/ I promise we never will part" (Compraram uma rodada para o marinheiro/ E escutaram esta história/ De um mundo muito distante/ De uma canção que nunca ouviram/ A canção de um passarinho/ Que se apaixonou por uma baleia/ Ele disse, 'Você não pode viver no oceano'/ E ela disse para ele/ "Você não pode viver no céu'/ Mas o oceano está cheio de lágrimas/ E o mar vira um espelho/ Há uma baleia na lua quando está cristalino e limpo/ E um pássaro na maré/ Por favor não chore/ Deixe-me secar seus olhos/ Para que você diga que esperará por mim/ Segure-me em seus braços/ Eu prometo que nunca iremos nos separaremos).

Contudo, Waits não deixa de apimentar as coisas com seu humor esquisito. Ouçam "Poor Edward", que conta um suícidio incomum: "Did you hear the news about Edward?/ On the back of his head he had another face/ Was it a woman's face or a young girl?/ They said to remove it would kill him/ So poor Edward was doomed/ The face could laugh and cry/ It was his devil twin/ And at night she spoke to him/ Things heard only in hell/ But they were impossible to separate/ Chained together for life" (Você ouviu as notícias sobre Edward?/ Atrás de sua cabeça ele tinha outra face/ Era a face de uma mulher ou de uma menina/ Disseram que se removessem o mataria/ Então o pobre Edward estava condenado/ A face podia rir e chorar/ Era o seu lado demoníaco/ E á noite ela falava para ele/ Coisas que só se ouviam no inferno/ Mas eles eram impossíveis de se separarem/ Aprisionados pela vida inteira). E como não poderia faltar num conto de pedofilia, há espaço para um erotismo típico de pedófilos, em que a perversão parece ser ingênua, mas se revela como a dissolução daquele que seria o ser amado - algo que Waits capta com perfeição em "Watch Her Dissapear":

"Last night I dreamed that I was dreaming of you
And from a window across the lawn I watched you undress
Wearing your sunset of purple tightly woven around your hair
That rose in strangled ebony curls
Moving in a yellow bedroom light
The air is wet with sound
The faraway yelping of a wounded dog
And the ground is drinking a slow faucet leak
Your house is so soft and fading as it soaks the black summer heat
A light goes on and the door opens
And a yellow cat runs out on the stream of hall light and into the yard
A wooden cherry scent is faintly breathing the air
I hear your champagne laugh
You wear two lavender orchids
One in your hair and one on your hip
A string of yellow carnival lights comes on with the dusk
Circling the lake with a slowly dipping halo
And I hear a banjo tango
And you dance into the shadow of a black poplar tree
And I watched you as you disappeared
I watched you as you disappeared
I watched you as you disappeared
I watched you as you disappeared"

(Eu sonhei que estava sonhando contigo
E de uma janela eu vi você se despir no terraço
Vestindo seu crepúsculo de púrpura preso em torno do seu cabelo
Que subia em cachos de ébano
Movendo-se num quarto de luz amarela
O ar está molhado de som
O latido distante de um cachorro ferido
E o solo bebe como uma torneira pingando
Sua casa é tão suave e some enquanto engole o calor do verão escuro
Uma luz se esvai e uma porta se abre
E um gato amarelo corre até o pátio
Um cheiro de framboesa amadeirada está respirando com calma pelo ar
Escuto sua risada de champagne
Você veste sua lavanda de orquídea
Uma em seus cabelos e outro em sua cintura
Uma corda de luzes de carnaval aparecem na aurora
Circulando o lago com um halo lento
E eu escuto um banjo tocando tango
E você dança à sombra da árvore escura
E eu observo-a enquanto desaparece
Eu a observo enquanto desaparece
Eu a observo enquanto desaparece)

Na verdade, "Alice" é uma reflexão de como um sujeito, para escapar da realidade do mundo, foge para um mundo de sonhos - e ainda assim este mundo não é muito bonito. Mas é o único em que ele consegue viver. Entretanto, a realidade não pode ser evitada - o que acontece em "Blood Money". Neste álbum, o que domina é a miséria, a dureza dos ritmos, a crueza da voz, a rispidez das letras, emolduradas por um humor amargo. Ouçam o aforismo que Waits criou em "Misery is the river of the world" (A Miséria é o rio do mundo):

"If there's one thing you can say about Mankind
There's nothing kind about man
You can drive out nature with a pitch fork
But it always comes roaring back again".

(Se há existe uma certeza sobre a Humanidade
É que não existe nada de bom no homem
Você pode mudar a natureza com um arpão
Mas sempre irá voltar violentamente)

Aqui, a metafísica de botequim de Tom Waits se revela como uma pergunta muito simples e feita por muitas pessoas: Quem é o responsável pelo Mal do mundo? Deus pode ter saído a negócios, mas a culpa cai sobre o próprio homem. Somos como Jonas, sofrendo no ventre de uma baleia e, nos últimos tempos, está sendo díficil saber onde está um único bom homem. Em "Blood Money", Waits se mostra como uma voz do fim dos tempos (como bem definiu o crítico de música do Estado de São Paulo, Mauro Dias), mas é a voz que sabe que o absurdo da existência surge daquele que quer dar um sentido pronto e acabado. Infelizmente, não é assim: "Time is memory mixed with desire" (Tempo é memória misturado com desejo), sussurra Waits em "The Part You Throw Away". Como já dissemos, uma metafísica começa realmente quando aprendemos a respeitar o tempo, pois este não respeita nada que é feito sem o seu consentimento. O mundo da morte e o mundo do sonho simplesmente paralisam o tempo e não deixam o ser humano se desenvolver e encontrar o seu sentido. Não devemos culpar Deus e muito menos o Diabo, especialmente quando este não existe e o primeiro ficou mal com uma ressaca. Tudo bem, isso parece papo de botequim; mas lembre-se que, às vezes, a vida tem um ar de botequim e, são nesses momentos que Tom Waits nos dá uma dica de escolher a bebida certa - e, o melhor, nos ensina a bebê-la com cautela.

Martim Vasques da Cunha é escritor e jornalista

sábado, março 21, 2009

SÓ UM JUSTO

por Maria Lucia Victor Barbosa -
21/03/2009

O julgamento pelo STF, no dia 19/03, da demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol, em Roraima, culminou naquilo que já se esperava: a continuidade da área de 1,7 milhão de hectares ou 12 vezes o tamanho da cidade de São Paulo. Isso significa que essa parte do território nacional, que tem fronteira com a Guiana e a Venezuela, pertence agora a uma “nação indígena” e nela não poderão viver ou sequer pisar os chamados “não índios” (termo politicamente correto), como se todos nós, brancos, negros, pardos não fossemos igualmente brasileiros.

Segundo o ministro Carlos Ayres Britto, os arrozeiros devem ser expulsos imediatamente da reserva, como se bandidos fossem. Note-se que os “não índios” que compõe 1,5% dos habitantes do local, produzem 70% do arroz de Roraima ou 106 mil toneladas das 11.04 milhões que são produzidas em todo Brasil.

Só um justo, o ministro Marco Aurélio de Mello, votou contra a abstrusa demarcação. O ministro Marco Aurélio foi, além de justo, corajoso, coerente, clarividente, lúcido. Mas, só um justo, não salva o Brasil. Dez ministros proclamaram radiantes a redenção dos verdadeiros donos da terra que, em sua pureza original, apesar de aculturados, são agora os únicos habitantes da imensa reserva. A eles foi dado o direito de voltar ao atraso primitivo, de se aliar aos que vindo de fora quiserem se estabelecer nas terras de ninguém, ou seja, dos 18 mil índios, gatos pingados naquele ermo sem defesa. Que venham os companheiros das Farc, os cobiçosos estrangeiros, os madereiros, os predadores de todo o tipo que devastam a natureza e levam a riqueza que o país estupidamente não sabe usar. Ninguém vai tomar conhecimento.

Não digam os senhores ministros que as 19 condições impostas pelo Supremo, arremedos de proteção da reserva, vão funcionar. Desde quando a lei funciona no Brasil? Funciona a velha esperteza, a malandragem que burla as leis que, aliás, raramente são conhecidas, quanto mais cumpridas. No máximo ainda procedemos como nas colônias espanholas onde se dizia: “La ley se acata, pero no se cumple”.

A maioria dos brasileiros não vai tomar conhecimento da infausta sentença dos dez ministros. A reserva de nome exótico, encravada no longínquo Estado de Roraima não faz parte da imaginação do carioca, do baiano, do mineiro, do paulista, do gaúcho, de todos que em seus Estados não têm noção de nossa grandeza territorial, de nossas riquezas naturais. Tão pouco faz parte dos sentimentos de nosso povo o sentido de pátria. Aliás, nossa visão se limita ao entorno imediato de cada um e o estrago feito passará despercebido.

Contudo, os senhores ministros, ao abrir o precedente que consagra na prática a “nação indígena”, escancararam o direito de outras “nações” reivindicarem a posse de várias regiões do país, como é o caso de Mato Grosso, maior produtor de soja, que quem sabe poderá voltar aos tempos pré-colombianos. E não falo só de outros índios ou dos quilombolas. Creio que já não se poderá (ou poderá?) criminalizar as aspirações separatistas dos que almejam apartar do restante do Brasil os Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, com o objetivo de criar um país menor, mais evoluído e mais próspero, exata contraposição à reserva Raposa Serra do Sol.

Mas há algo mais tenebroso na sentença dos dez ministros. Perpassa no procedimento um quê de venezuelização. A impressão que se tem é que o Judiciário verga diante do Poder Executivo, julgando politicamente o que deveria estar submetido à lei.

Afinal, mesmo antes de Antonio Palocci ser julgado pelo Supremo, Lula da Silva o lançou candidato ao governo de São Paulo, o que indica que o presidente sabe de antemão que nada acontecerá ao companheiro acusado de quebrar o sigilo bancário de um humilde caseiro e de outros crimes ligados à chamada República de Ribeirão. E, sintomaticamente, José Dirceu, que foi chamado pelo Procurador Geral da República de “chefe da quadrilha”, foi inocentado.

Tem mais: como Lula da Silva concorda com o ministro da Justiça e companheiro, Tarso Genro, que o criminoso Cesare Battisti é nosso, contrariando o pedido de extradição feito pelo governo italiano, sugere ao STF que perdoe o terrorista e o liberte. Com isso fica Lula livre de dar a palavra final sobre o caso, transferindo seu desgaste internacional ao Supremo.

Será mais uma vergonha a ser passada pelo Brasil no cenário externo, como se não bastasse o caso da vigarista brasileira, Paula Oliveira, presa na Suíça, do menino norte-americano cuja guarda está sendo negada ao pai biológico, de todos os golpistas e criminosos que no exterior enxovalham a imagem dos brasileiros sérios e dignos.

Infelizmente, só um justo não dá conta de nos salvar de nós mesmos. Mas, pelo menos consola saber que o ministro Marco Aurélio de Mello existe.

Maria Lucia Victor Barbosa é socióloga.

mlucia@sercomtel.com.br

sexta-feira, março 20, 2009

Verbetes de Um Dicionário - Roberto Campos

por Breves Notas

Verbetes de Um Dicionário (I)

“Não é proibido dizer a verdade sob o véu do gracejo” - Horatio

Estou de partida para a China, na esperança de trazer um estoque de vacinas “Deng Xiaoping” para combater as epidemias de “Tupiniccocus pallidus”, “Bureauccocus Planaltinus” e “Papyrococcus cartorialos ac physiologicus Brasiliensis”, que grassam em Brasília. Afinal de contas, se o líder chinês – que, há pouco mais de um decênio, durante a Revolução Cultural, foi exposto à execração pública, obrigado a carregar estrume na cabeça nas ruas de Beijing, com um cartas que dizia “traidor capitalista” – conseguiu sacudir a multimilenar burocracia chinesa, deve ser possível descartorializar nossa burocracia, esclerosada há apenas 164 anos…

Mas antes de partir, ocorreu-me que poderia dar uma contribuição ao esclarecimento das massas, se lhes facilitasse a compreensão da “novilíngua” da Nova República. Por isso preparei alguns verbetes de dicionário.

SECA, s.f. - Acidente climático, caracterizado pela falta de chuvas, que produz inflação de preços agrícolas. O antônimo é “Cheia” ou “Enchente“, caracterizada pela abundância de chuvas, que também produz alta de preços agrícolas.

ESPECULADOR, s.m. - Agente econômico que só compra na baixa para vender na alta. Entra em hibernação quando não há expansão monetária, porque então inexistem altas.

PROGRESSISTA, adj. também usado como s.m. e s.f. - Denominação aplicada aos que reclamam mudanças urgentes. Não se preocupam com o endereço da mudança e muito menos com os métodos e veículos para fazê-la. O importante é manter o Governo metendo o bedelho na economia., em postura dinâmica. Os setores “progressistas” mais de vanguarda entendem por “progresso” o “regresso” à situação pré-1964.

ESQUERDISTA, adj. também usado como s.m. e s.f. - Denominação aplicada aos que não estão no centro, nem na direita, nem no alto. Habitualmente estão a Leste. Desejam distribuir a propriedade alheia e gostam de votar impostos porém não de pagá-los. De um modo geral, acham que a sociedade deve distribuir mais do que produz, desde que as esquerdas (quer dizer, eles mesmos) se encarreguem da distribuição. Donde o provérbio: “muitos dos interessados na distribuição do bolo querem sobretudo o controle da faca“. A tradução latina de homem de esquerda é “homo sinistrae“.

PACTO SOCIAL - Expressão usada para denominar um entendimento no qual os assalariados consentem em menores salários, os empresários em menores lucros, possibilitando ao Governo continuar abiscoitando a maior parte do bolo.

CATOLICISMO DE ESQUERDA - Por pudicícia, este dicionarista se abstém de qualquer definição, recorrendo ao verbete do escritor Leon Bloy, uma das glórias do pensamento católico francês: “Catholicisme de gauche n’est que protestantisme de merde“.

NEGOCIAÇÃO DURA - Expressão usada em relação à dívida externa. Indica disposição para pagar “spreads” mais altos e ter prazos mais curtos, em troca do direito de xingar os banqueiros e dizer “não” ao FMI. Permite evitar auditorias externas, habilitando o país a manter um “Caixa Dois”. A vantagem principal é emitir papel moeda e aumentar o déficit público sem dar satisfação a ninguém.

INFORMÁTICA, s.f. - Aliança entre militares, esquerdistas e empresários antidarwnianos. Estes acreditam que deve sobreviver não o mais apto e sim o mais protegido da concorrência alheia. Deprecam às autoridades que o mercado seja reservado para o menor número possível (idealmente apenas três empresários, como no caso da micro eletrônica). Artifício usado para induzir a “maioria” - centenas de milhares de usuários - a se subordinar aos interesses de uma “minoria” - poucas dezenas - de industriais do setor. Também usado para garantir privilégios aos que copiaram antes dos outros. Serve freqüentemente para que os filhos e netos de imigrantes (Dytz, Suaer, Brizida, Fregni, etc.) documentem seu caráter “genuinamente nacional” vetando qualquer associação com empresas dos países ancestrais. Segundo essa seita, produzir no país só é bom se o produtor tiver certificado de batismo local, sendo, em caso contrário, preferível importar.

PRIVATIZAÇÃO, s.f. - Política segundo a qual o governo guarda o que é relevante e vende o que é irrelevante. Para dificultar a venda, usa-se o critério do investimento histórico corrigido, ou do valor patrimonial contábil, sem referência à rentabilidade avaliada pelo mercado.

PACOTE FISCAL - Conjunto de medidas para extrair dinheiro do setor privado a fim de financiar o déficit público, cuja dimensão é sagrada. Após essa extração, os contribuintes sentir-se-ão estimulados a fazer novos investimentos, e os que estavam na economia subterrânea reconhecerão as vantagens patrióticas de pagar impostos.

COMBATE A INFLAÇÃO - Expressão que denota o engajamento do Governo na “guerra à carestia”. Mais precisamente, é o combate à alta de preços provocada por acidentes climáticos, ou pelos atravessadores e especuladores, não devendo ser confundido com o combate à inflação propriamente dita, resultante da expansão monetária. A expressão abrange várias modalidades de ação. Na chamada variante “corpo-a-corpo”, o Ministro da Fazenda e altas autoridades inspecionam pessoalmente a diariamente os preços da cebola e do chuchu. Na variante “estatística” o índice de preços é encurtado ou alongado durante o mês, introduzindo-se, quando oportuno, um “fator de acidentalidade”. Na variante “estrutural”, os preços do petróleo e tarifas de utilidades públicas são acelerados ou repassados em função do preço do feijão.

CONTROLE DE PREÇOS - Artifício antiinflacionário tentando sem êxito desde o Código de Hamurabi (2000 anos a.C.). Foi objeto do famoso Edito de Diocleciano no ano 301 da era cristã, cujo único resultado foi a escassez de óleo, pão e sal nas províncias. Como as damas balzaquianas, de vida airada, o tabelamento de preços rejuvenesce à medida que se esquecem as experiências passadas. É a teoria dos que não têm teoria.

O trabalho lexicográfico acima não tem a pretensão de se equiparar aos feitos de Caldas Aulete ou do Aurélio… De volta da China, munido de paciência chinesa, procurarei converter esses verbetes despretensiosos num verdadeiro “Dicionário”. Para “esclarecimento das massas”, naturalmente. Mas também para ganhar direitos autorais, pois ninguém é de ferro e tenho de pagar as novas alíquotas do pacote fiscal. De leve…

(02.02.86)
Verbetes de Um Dicionário (II)

“A burrice é o único símile do infinito” - Aforismo Chinês

Em longas viagens de trem pelo interior da China, a dois mil quilômetros de Beijing, tive tempo de adicionar alguns verbetes à minha ansiosamente esperada obra “Enciclopédia da Ignorância”. Recebi propostas de vários editores, sendo que a mais atraente sugeria um nome para o “magnum opus”; - “Bagunçologia”. Eis os novos verbetes que interessarão aos segmentos mais esclarecidos da sociedade.

LIVRE EMPRESA - Expressão que denota o direito de proibir o ingresso de outras empresas.

LIVRE INICIATIVA - Expressão que denota o direito de provar os outros da iniciativa.

CONGELAMENTO DE PREÇOS - Conjunto de medidas destinadas a transmitir ao mercado os sinais errados - aumentar a procura e diminuir a oferta - com o propósito patriótico de desorientar os especuladores. Na forma mais branda, o burocrata se arroga das funções do mercado e os preços são “cipados”. Na versão mais radical, os preços são “congelados”, o que significa o triunfo definitivo do burocrata sobre o mercado, coisa plenamente justificável à luz da melhor informação, maior sensibilidade social e superior velocidade de reação, características das entidades governamentais. Isso faz emergir uma nova classe sociológica, dotada do poder de vida e morte sobre as empresas - a dos “tabuladores” - que se sobrepõe à tetralogia medieval dos “oradores”, “bellatores”, “mercatores” e “fabricatores”. O Professor Antonius, em sua mui consultada obra “Imitatio Delphini ad usum Novae Reipublicae” relata experiências pessoais de interferência no mercado, todas desapontadoras. Assim se expressa: “Vix aut nunquam rígidadisciplina pretiorum prodest. Hoc discimus abhinc multos anos ab Codici Hammurabi ax Diocletiani Edicto” (O congelamento de preços quase nunca adianta, conforme aprendemos com o Código de Hamurabi e o Edito de Diocleciano). Idêntica preocupação é revelada pelo Professor Paulinus, em sua obra “De effectis plethorae numismaticae” (Dos efeitos da expansão monetária), que assim doutrina: “Nisi sublata causa quae est pletora numismatica nin tollitur effectus, scilicet inflatio pretiorum” (A não ser que se extirpe a causa, que é a expansão monetária, não se remove o efeito, que é a inflação de preços). Outros autores de nomeada, entretanto, atribuem a alta de preços a causas diferentes, como a seca (siccitas), a interferência do Fundo Monetário Internacional (intromisio Panethnici Nmismatici Thesauri) ou à indexação de preços (vinculum ad preteritum pretium).

USUÁRIO, s. e adj. m. e f. - Consumidor brasileiro, misto de otário e cobaia. USUÁRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL: designa aquele que tem o direito de contratar um seguro provado depois de ter contribuído par a Previdência Pública, dada a indisponibilidade de serviços desta última. USUÁRIO DA INFORMÁTICA: aquele que tem o direito legal de pagar três vezes mais pela cópia que pelo original. USUÁRIO DE PETRÓLEO: aquele que paga preços internos crescentes quando os preços internacionais são decrescentes. USUÁRIO FERROVIÁRIO: aquele que tem o direito a atrasos e sacudidelas para chegar ao trabalho, e também ao desvio e avaria de mercadorias.

REFORMA MINISTERIAL - Versão vernacular da expressão francesa “plus ça change, plus c’est la même chose”. É de boa etiqueta que, por ocasião da reforma, os novos ministros elogie seu antecessor conquanto acentuem, no discurso de posse, que têm um programa muito melhor. No fundo, imitando um velho ministro francês, o que pensam mesmo é que “tous nos predecesseurs sont des idiots, tous nos successeurs sont des intrigants” (todos os nossos antecessores são idiotas, todos os nossos sucessores são intrigantes). MINISTERIÁVEL (também usado na forma gerundial MINISTRANDO) é aquele que acha que a situação do governo se deteriorou tão satisfatoriamente que a Pátria em breve exigirá seus serviços. A ocasião das reformas ministeriais provoca uma proliferação de uma espécie de répteis, os “puxa-sacos”. O fenômeno era conhecido desde a época dos romanos sob o nome “titillatio testiculorum” (puxação de saco). O Professor Freudius em sua obra “De peccatis occultis” aponta como evidência história uma inscrição queixosa encontrada sob as lavas de Pompéia: “Quandocumque mutantur proconsules arduus est veriter labor testiculos titillandi” (Quando mudam as lideranças é árduo o trabalho dos puxa-sacos). Afirma outrossim que essa prática existia também entre os gregos, pois segundo a lenda e a tradição, uma das principais razões porque o grande Arconte Solon, promulgadas as leis, retirou-se para um navio e velejou no Egeu durante dez anos, foi precisamente livrar-se do “elchtichos orchios” (puxa-saquismo).

NACIONALISMO, s.m. - Atitude que freqüentemente denota um misto de complexo de inferioridade e mania de grandeza. A expressão comporta várias modalidades. NACIONALISMO AUTÊNTICO: o daqueles que, não tendo realizações objetivas a exibir, usam o nacionalismo como uma espécie de diploma dado pelas Faculdades de Demagogia. NACIONALISMO DE FANCARIA: o daqueles que usam o nacionalismo para obter privilégios do Governo, para prejudicar adversários políticos ou para se proteger da concorrência estrangeira. NACIONALISMO DE FINS: o daqueles que acreditam que o desenvolvimento nacional é um fim para qual devam ser mobilizados quaisquer capitais disponíveis - nacionais e estrangeiros. NACIONALISMO DE MEIOS: o daqueles que, dispondo de salário e renda adequados, acham que é melhor um desenvolvimento lento, puramente interno, ainda que os pobres tenham de sofrer por mais tempo. São conhecidas variadas definições de nacionalismo, por mestres eminentes. Segundo Einstein “é como um sarampo, essa doença infantil da humanidade”. Segundo Vargas Llosa é “a cultura dos incultos, uma medíocre revolta geográfica contra a história”. Segundo Gilberto Amado é a “forma zangada do patriotismo”. Para Mussolini era uma espécie de “ódio sagrado”. Segundo Albert Schweizer “é um patriotismo que perdeu sua nobreza”, ao passo que o patriotismo, segundo o Dr. Johnson, é o “último refúgio dos velhacos”. Para Jorge Luiz Borges “o nacionalismo é um campo minado onde só se toleram afirmações”.

TERMOESTÁTICA - Conjunto de leis científicas que regem a conversão da aceleração em inércia e comprovam a originalidade do comportamento da economia brasileira. A primeira lei de termoestática - a lei inercial - assim se expressa: “Se atacados vigorosamente por sintomas de inflação, não é necessário atacar as causas, porque aqueles são dinâmicos, e esta, inercial”. A segunda lei da termoestática, a “lei de preservação do déficit” é assim formulada: “Os gastos governamentais são irredutíveis porque toda a ação para reduzi-los produz uma reação política, imediata e mais do que proporcional, em sentido contrário”. A terceira lei da termoestática, também chamada “lei do endividamento” tem formulação mais complexa: “Uma vez transposto o segmento exponencial da curva de endividamento e atingido o limite assimptótico, o poder do grande devedor se equipara ao do grande credor, pois ambos detêm o poder de levar o outro à falência. Nessa hipótese, os encargos da dívida variarão na razão inversa da masculinidade da negociação e menos que proporcionalmente à intensidade da lamentação”.

NOTA DO AUTOR (RC): Se o inquestionável brilho e erudição lexicográfica acima revelados não me credenciarem para a Academia Brasileira de Letras, é porque não há justiça social nesse país.

(06.04.86)
Verbetes de Um Dicionário (III)

“Os povos inteligentes aprendem da experiência alheia; os medíocres aprendem por sua própria experiência; os ineptos simplesmente não aprendem” - Chanceler Bismark

Prosseguindo na tarefa de esclarecimento das massas, facilitando-lhes a compreensão da “novilíngua” da Nova República, adicionei alguns verbetes ao meu “dicionário do surrealismo” brasileiro.

ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE - Grupo de políticos que discutem as prioridades da reforma da “estrutura”, quando o urgente é remendar a “conjuntura”. Numa sábia divisão de funções, tratam de desenhar o futuro, enquanto o Poder Executivo se encarrega de desorganizar o presente. Entre suas várias correntes, se incluem os “xiitas”, que querem destruir o capitalismo (melhor dito, o mercantilismo, pois o Brasil ainda não chegou à era capitalista), sem saber como implantar o socialismo. Alguns poucos são verdadeiros “liberais“, pois acreditam que a democracia política é inseparável da liberdade econômica, traduzida esta na economia de mercado. Há também os “centristas”, que gostam da liberdade política mas admite que burocratas imperfeitos corrijam as imperfeições do mercado e que se criem cartórios econômicos, desde que sejam participantes dos benefícios. Todos os grupos são contra a cassação dos direitos políticos individuais, mas aceitam a cassação do direito econômico de produzir, sob a forma de monopólios estatais ou reservas de mercado.

FUNARONOMICS - Nova ciência econômica que, segundo o Professor Afonso Celso Pastore, não obedece às leis da lógica de Karl Popper, pois, quando falsificada pelos fatos, mudam-se os fatos. Sua implementação é feita por medidas de “centralismo democrático”, isto é, decretos-leis. Sua tese central é a do voluntarismo, isto é, as coisas acontecem não por decisões voluntárias dos agentes econômicos, mas pela aceitação patriótica, por parte deles, das intenções, desejos e caprichos dos “Funaro Boys”, que são “apparatchicks” modernos, instalados no Planalto.

MORATÓRIA SOBERANA - Declaração de insolvência, em nome da independência, como resultado da incompetência. Segundo alguns, deve ser levada “às últimas conseqüências”, isto é, o aprofundamento da recessão interna, o embargo de navios e aviões brasileiros no exterior, a ruptura com o sistema financeiro internacional, ou seja, a transformação do país de uma “Belindia” numa “Albanindia”.

ESQUERDISMO - Doutrina de grupamentos políticos especializados em distribuir propriedade alheia e propor uma adequada repartição do bolo, desde que mantenha o controle da faca.

PEFELISTA - Falso liberal, isto é, aquele que acredita simultaneamente em liberdade política e intervencionismo econômico.

PMDEBISTA - Assim designam os membros do maior partido político do ocidente. O partido é contra o desemprego e também contra os investidores estrangeiros, que criam os empregos. Reclama contra o endividamento excessivo, mas quer que os bancos estrangeiros se comprometam a fornecer “dinheiro novo”, com a condição de não termos que pagar o “antigo”. Contem grupos presidencialistas, parlamentaristas e imediatistas (”Diretas Já”), mas a linha predominante é a “falimentarista”, a qual propõe a falência do país como tema central da ideologia partidária. É a favor dos tabelamentos de juros, sem se dar conta de que os juros são ditados pelo Banco Central e pelos bancos estaduais ao levantarem dinheiro para cobrir os déficits. É contra os déficits orçamentais, desde que não se cortem despesas e que a tributação não atinja a classe média. Deseja a preservação do salário real, por decisão governamental (mesmo através de decretos-leis), esquecidos de que o governo só pode prescrever salários nominais, os quais, se irrealistas, resultam no salário zero do desemprego. Está em perfeita sintonia com o “povo”, entendido por “povo” aquela parte da sociedade que não sabe o que quer.

OPÇÃO PELOS POBRES - Expressão que, quando usada pela Igreja, significa aumentar o número de pobres pelo dificultamento das praxes anticoncepcionais usadas pelos ricos. Quando empregada pelo Governo, significa uma forma de populismo, com as seguintes conseqüências: (1) congelam-se os preços para ajudar os pobres, mas isso desencoraja investimentos, diminuindo-se o emprego para os pobres, ou provoca escassez, prejudicando os pobres que não podem pagar ágio; (2) subvencionam-se indiscriminadamente, para pobres e ricos, alguns produtos essenciais, como o trigo, com o resultado de que o nordestino, que come farinha, paga impostos ou sofre alta de outros preços, para pagar a “macarronada” do paulista; (3) cria-se uma “indústria de distribuição”, de sorte que os maiores beneficiários da distribuição são os burocratas que se encarregam de fazê-la.

RECURSOS NATURAIS - Cadáveres geológicos, sob forma mineral, que só se transformam em riqueza se houver investimentos e mercado. Para exemplificar a diferença entre “recurso” e “riqueza”, basta lembrar que o Brasil tem “recursos” e não tem “riqueza” e o Japão tem “riqueza” mas não tem “recursos”.

BANCO CENTRAL - Organização independente, criada para ser o “guardião da moeda”, adequando a expansão da moeda ao crescimento da produção. Tornou-se dependência do Ministério da Fazenda. Está na embaraçosa posição de, tendo levado o país à falência global, pela moratória externa, encarregar-se da correção da falência setorial dos bancos estaduais, que reclamam uma moratória interna.

INFLAÇÃO INERCIAL - Teoria desenvolvida pelos partidários da “Funaronomics” que acreditam que, apesar do déficit público, a inflação é inercial. Para curar o déficit, basta mudar sua definição; para mudar as expectativas, basta proceder à desindexação.

(05.04.87)
Verbetes de Um Dicionário (IV)

“O príncipe deve evitar qualquer idéia nova.. a inovação é um obstáculo… Em último caso, se existe uma situação absolutamente insuportável, a mudança deve ser feita, mas só gradualmente, e por mãos experientes” - Erasmo

Continuo hoje meu esforço lexicográfico, na esperança de acumular credenciais literárias para ingressar na Academia Brasileira de Letras, sem conchavos humilhantes, e graças ao voto democrático, secreto e esclarecido de meus pares. Eis os novos verbetes:

CAMELO - Cavalo desenhado por um comitê de economistas. Há uma subespécie, o dromedário, que é um cavalo desenhado por um grupo de trabalho de economistas da UNICAMP e da PUC, também conhecidos pelo cognome de “país do cruzado”.

BURGUÊS DE ESQUERDA - Homem rico, latifundiário ou industrial, que deseja conciliar opulência com popularidade. Adora promover medidas para que o Estado distribua a renda dos outros, preservando a sua através de incentivos fiscais. Uma variedade particularmente daninha é o genrocrata, isto é, o pobre que casa com mulher rica. Acha que sendo seu patrimônio imerecido, também o deve ser o dos que o adquiriram no eito e não no leito. Defendem a justiça social e a opção pelos pobres, mas não abrem mão de seus direitos mínimos - “whisky” legítimo e videocassete contrabandeado. No máximo aceitam a reforma agrária nas terras dos cunhados e concunhados. Geralmente não recolhem o INPS e o FGTS, mas não tem objeção à expansão da atividades assistenciais do Estado, em favor primordialmente dos burocratas e, secundariamente, dos pobres. Dizem-se “nacionalistas” e também “socialistas”, esquecendo-se de que as duas palavras juntas configuram o nacional-socialismo, partido muito popular na Alemanha até o fim da II Guerra Mundial.

FIDELCOCCUS - Retrovírus que está grassando no planalto brasiliense, cuja síndrome mais séria é a retrogradação mental até a década de sessenta, quando os socialistas europeus consideravam a revolução uma aventura excitante. O vírus já atacou este ano (1986) três Ministros de Estados brasileiros, que demandaram Havana, presumivelmente para tratamento do vírus pelo próprio Fidel, de acordo com a tradição da medicina homeopática - “similia similibus curantur”. O último infectado, o Ministro da Justiça, inquieto com as constantes rebeliões nos presídios brasileiros, se dedicou a investigar como Fidel Castro logra manter a ordem e a disciplina nas 200 prisões cubanas (inclusive La Cabaña e Boniato). Estima-se existirem 10 a 15 mil presos políticos, alguns com penas já cumpridas de 20 a 25 anos, por inconformismo com os princípios revolucionários, sem que se tenha notícia de depredações e motins, o que comprova o avenço tecnológico de Cuba nas artes de repressão político-ideológica. Recomenda-se particularmente aos poetas e literatos que evitem contaminação pelo Fidelcoccus, pois Fidel tem especial predileção por torturar portas como Armando Valladares e Herbert Padilha.
Agora que se redige a Constituinte brasileira, seria bom estudarmos o art. 52 da Constinuição cubana, que garante liberdade de expressão e pensamento, desde que na conformidade dos ideais comunistas…

FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL - Hospital financeiro, também chamado de “bode expiatório”, a que recorrem países “drogados” (habitualmente em estado pré-comatoso), que exigem financiamento para continuarem vivendo acima de suas posses. Recebe vários tipos de viciados. Os países “estatizantes“, por exemplo, que gastam tanto com a máquina do Estado, que a receita mal dá para pagar os funcionários, pouco restando para investimento ou pagamento das dívidas estatais. Os “nacionalizantes“, que rejeitam os investidores estrangeiros dispostos a correr riscos, e mendigam dos banqueiros, que não querem correr riscos. Os “autistas“, que querem a reserva de seu próprio mercado e a abertura dos mercados alheios e que decidem unilateralmente a taxa de crescimento que o mundo tem a obrigação de lhes financiar. O FMI comete a obscenidade insuportável de recomendar aos países que “ponham sua casa em ordem”, isto é, que mantenham seu consumo e investimento nem nível compatível com sua poupança interna mais capitais voluntários do exterior. Sua arma mais repugnante é a “auditoria” trimestral, que viola a soberania dos governos, obrigando-os a uma vergonhosa mensuração do déficit do setor público e do grau de desperdício dos tributos próprios e dos empréstimos alheios. Essas práticas configuram o que se convenciona chamar de “receita recessiva” do FMI. A experiência revela que só há uma coisa pior que a recessão com o FMI. É a recessão sem o FMI.

NEGOCIAÇÃO SOBERANA - Modalidade de negociação em que o devedor prega um sermão unilateral ao credor sobre suas necessidades de crescimento e a responsabilidade do sistema financeiro internacional de prover os recursos necessários. É baseada em duas teorias - a da “responsabilidade mútua” e a da “imprevisão“. Conforme a teoria da “responsabilidade mútua“, o banqueiro, proprietário da loja de bebidas, é co-responsável pelos porres da clientela. Isso porque expõe os clientes a uma tentação irresistível e, segundo os jesuítas, cair numa tentação irresistível não e pecado. Conforme a teoria da imprevisão, os contratos somente são válidos “rebus sic statibus”, de modo que os juros flutuantes só são devidos e cobráveis se os juros não flutuarem. Com sua doutrina de negociação soberana, o PMDB já logrou uma substancial vitória: os credores admitiram que não pleitearão o pagamento da dívida “nem com o sangue nem com a fome do povo”, pois só querem pagamento através de exportações, aceitando inclusive excedentes de que o Brasil não necessite.
Há três princípios fundamentais na negociação soberana: (1) o devedor não deve submeter-se à malsã curiosidade dos credores quanto aos seus programas de recuperação de solvência, pois se trata de matéria de soberania interna; (2) só é lícito discutir os encargos da dívida, porém não o principal, por ser óbvio que a amortização do principal seria danosa aos próprios credores, que ficariam desempregados se os devedores liquidassem seus mútuos; (3) só se deve discutir dívidas de governo a governo, ainda que os contratos sejam com credores privados.
A teoria da negociação soberana foi desenvolvida e tecnicamente aperfeiçoada pelos economistas do Ministério da Fazenda, com respaldo popular do PMDB. A fim de assegurar adequado suprimento de negociadores, funcionários do Itamarati estão sendo treinados na teoria da negociação soberana, também chamada de “tecnologia da confrontação”.

PAÍSES CAPITALISTAS - Países cujo progresso é deixado às forças do mercado, impessoais e injustas, e cujo maior problema é impedir o ingresso de imigrantes.

REPÚBLICA POPULAR DEMOCRÁTICA - Pleonasmo usado pelos países comunistas para significar que a democracia fica com a NOMENKLATURA, e a obediência, com o povo.

(19.04.87)

sexta-feira, março 13, 2009

Fora MST!

por João Mellão Neto

Nos meados da década de 80, quando o MST ainda se esboçava, ocorreu uma invasão. Uma entre centenas, dirão. Pois é, mas essa eu tive a oportunidade de acompanhar. Estava iniciando como jornalista e buscava conhecer em detalhes todos os temas palpitantes da época. Reforma agrária era um deles.

Como se dizia, o esbulho aconteceu. E logo depois a área foi desapropriada. Passaram-se alguns meses e aqueles quase 3 mil hectares foram entregues aos tais trabalhadores sem-terra. Um político de esquerda da região não perdeu a oportunidade. Com um grande alicate, compareceu ao local e, perante uma plateia atenta, solenemente cortou a cerca de arame farpado da fazenda. "Neste momento", declarou, "entrego estas terras ao povo brasileiro".

O "povo brasileiro" não se interessou em tomar posse de imediato. Para tanto era necessário que alguém fosse lá demarcar os lotes e sortear quem seriam os proprietários de cada um. Esse processo demandou uns 20 meses, mas ninguém se esquentou. Sem a menor cerimônia, os briosos manifestantes montaram acampamento à beira da cidadezinha mais próxima e, a partir de então, munidos de cupons para alimentação, fornecidos pelo governo federal, tornaram-se consumidores urbanos.

Quando os lotes ficaram prontos, ocorreu um fato que em nada contribuía para o sucesso da causa agrária. Os felizes contemplados não se mostraram dispostos a trocar a doce vida urbana que tinham pelas agruras da condição de novos proprietários rurais. Pudera, os lotes não tinham água nem luz. Os cupons para alimentação deixariam de ser fornecidos tão logo se configurasse a posse. Ninguém ali estava a fim de se tornar herói.

Com muito custo o assentamento se configurou. Após a posse, voltaram todos para a cidade e passaram a reivindicar, novamente, o fornecimento de água, luz e comida.

Dez anos depois, a situação era a seguinte: quatro ou cinco famílias se aventuraram a mudar para seus lotes e lá viviam em condições precárias. Mais de 20 trataram de vender os seus direitos de posse e seus lotes passaram por inúmeros donos. Especulação imobiliária da pior espécie, algo absolutamente condenável pelos ideólogos esquerdistas que chefiavam o movimento.

A maioria agiu de forma ainda pior. Como havia uma usina de álcool nas redondezas, trataram todos de arrendar seus lotes a ela e continuaram a viver na cidade. Tornaram-se, com isso, burgueses rentistas. E isso era deplorável e intolerável.

No Brasil inteiro situações como essa se repetiram e nada foi mostrado à opinião pública. Os padres e organizadores dos movimentos eram todos socialistas, mas os invasores, curiosamente, não. Entregavam-se a práticas capitalistas as mais comezinhas e mesquinhas tão logo lhes surgisse uma oportunidade.

Paciência. Estava patente, para os ideólogos, que o povo brasileiro, em geral, era tacanho. Não tinha a largueza de visão e o desprendimento necessários para a condução de uma revolução vitoriosa. Essa tarefa, então, como sempre, teria de ficar por conta das vanguardas - as camadas mais instruídas e esclarecidas dos movimentos. E essas, na época, eram compostas pelos padres e intelectuais.

Foi dessa forma, ideologicamente cambaleante, que nasceram os movimentos agrários. Agora eles são muito mais organizados, lograram se estabelecer. E o dinheiro para tanto? Ora, obviamente vem do Estado. E este, assim, segundo as tais vanguardas, cumpre uma de suas funções mais básicas e edificantes: está subsidiando a reforma agrária. E não pode existir uma destinação de verbas mais nobre e meritória.

Os contribuintes não concordam. Foi-se o tempo em que a opinião pública se embevecia com a causa fundiária. Hoje em dia todos acompanham, contrariados, o noticiário que reporta o desperdício de recursos em tudo o que diz respeito ao tema.

Até mesmo a razão de ser dos movimentos sociais do campo deixou de existir. A causa original, todos se recordam, era o combate aos latifúndios improdutivos. Pois bem, esses não existem mais. Quem tinha terra, e não produzia, tratou de vendê-la para quem o fazia.

Adotou-se então a tese de que a função dos movimentos era a de combater as grandes plantações feitas com sementes geneticamente modificadas. Não colou. Ninguém se comoveu com a causa.

O inimigo, agora, é o agronegócio. Havia pudores no passado quanto a se atacar propriedades reconhecidamente produtivas. Agora não há mais. Não se discute mais a questão da produtividade da terra, mas sim a que essa produtividade serve.

Segundo esta ótica obtusa, 100 hectares de terra nas mãos de um microproprietário rural - mesmo que esse alcance patamares medíocres de produção - cumprem melhor a sua função social do que o mesmo quinhão de terra pertencendo a uma grande usina de açúcar ou a uma fábrica de papel e celulose.

Essa nova razão de ser dos movimentos "sem-terra" seria digna de debate não fosse ela a quinta ou a sexta evocada pelos seus líderes para justificarem a sua existência. Eles se dispõem até mesmo a contrariar os mais óbvios interesses nacionais, ajudando o novo governo populista do Paraguai a expulsar os fazendeiros brasileiros de lá.

Os padres e intelectuais socialistas que no passado recente ainda podiam dizer-se idealistas, tornaram-se todos velhacos e parasitas. Apelam, agora, para qualquer nova bandeira que mantenha os movimentos que dirigem existindo. Para, assim, continuar recebendo preciosas verbas do governo.

Moral da história: sem-terra, que nada! Não passam de uns sem-vergonha que vivem à nossa custa e desperdiçam o nosso dinheiro. Não precisamos mais dessa gente. Tchau! Fora! Abaixo o MST!

Que não fiquem por aí por falta de despedida. Adeus!

João Mellão Neto, jornalista, deputado estadual, foi deputado federal, secretário e ministro de Estado

sábado, março 07, 2009

Nós que somos traço

por Percival Puggina em 03 de Março de 2009 Opinião - Brasil

Sim, o presidente Lula tem uma série de dons. Sua comunicação com quem escolhe presidente por semelhança consigo mesmo o converte num candidato sempre forte. Convence bêbado que água mineral é champanha. E convence abstêmio que champanha é água mineral. Ao longo de seis anos conseguiu não apenas transformar em mérito próprio tudo aquilo que seu antecessor lhe deixou servido numa bandeja como ainda inverteu a situação e lhe devolve a continuidade em forma de ônus. Coisa de deixar o mágico David Copperfield embasbacado.
Quando o governo se encontrou encalhado no mensalão e no Caixa 2, Lula se declarou traído e descobriu ali, entre os odores da crise, a fórmula perfeita para o sucesso: fatura tudo que é bom e joga as encrencas no colo dos demais. E faz isso como política de governo, coisa oficial, que só não virou Medida Provisória porque ele achou preferível adotar como conduta definitiva. Quanto mais tal velhacaria repugna as consciências bem formadas, mais se afirma o fato de que estas são traço nas pesquisas CNT/Sensus.

Só estou me dando ao trabalho de lembrar que as coisas são assim porque até as consciências bem formadas acabam se acostumando e não mais percebendo as constantes manifestações desse procedimento. Agora mesmo, no cenário da borrasca econômica, tudo se repete. E se repete com agravante: a culpa está saindo da esfera política, deixando Brasília de ontem e de hoje, onde estão os culpados de cada vez, e está sendo jogada para cima de certa parcela da sociedade. A artimanha, desta feita, assume claro intuito ideológico.

O leitor certamente sabe que durante os últimos três anos, com o crescimento das atividades econômicas, o número de empregos formais aumentou num ritmo muito positivo em nosso país. Milhões de novos postos de trabalho foram criados. Números realmente impressionantes. O agronegócio (não o negócio do MST) ia bem, as exportações cresciam, o mercado interno se expandia, o PIB aumentava, a indústria rodava em três turnos e as empresas ampliavam seus quadros.

Quem faturou com isso? O Lula. Não eram as empresas, não era cada empresa, cada empreendedor, que estava decidindo ampliar suas atividades e recrutando mais recursos humanos. Não, não. Quem criava empregos era ele, o Lula. Os méritos não cabiam à criatividade empresarial, aos que organizam os fatores de produção, mas à pessoa física do presidente. Pode? Pode, sim. Tanto pode que foi exatamente disso que as pessoas se convenceram. A fé em Lula ficou quase igual à fé em Jesus Cristo. Duvidam ? Olhem as pesquisas. Quanto mais as empresas criavam empregos mais aumentava a popularidade de Lula, esse empregador. Agora, com a crise se instalando em proporções alarmantes, as empresas reduzem suas atividades e, consequentemente, seus quadros de pessoal. E a culpa é de quem? Do Lula? Absolutamente não. Ele já deixou claro que a culpa é do maldito empresariado nacional, incompetente para produzir sem mercado e incapaz de pagar a folha de pessoal sem faturamento. Com esse tipo de estrupício dirigindo negócios um país não pode ir para frente, não é mesmo?

Você e eu, nós aqui, traço no CNT/Sensus, ainda nos atrevemos a balbuciar que não é bem assim. No entanto, no grosso da tropa, se instala a idéia de que seria muito melhor transformar o país numa grande empresa entregue a Lula, esse homem sem pecado, de méritos infinitos.

Julgadores facciosos dos direitos humanos

Jarbas Passarinho - Folha de São Paulo - 07/11/2008

Perto de 30 anos passados da anistia, o esquecimento é unilateral. O ódio ideológico, o mais perverso dos ódios, prevalece.

Guardo a lição de Franklin Delano Roosevelt quando afirmou que as liberdades fundamentais estão sintetizadas em não ter fome, não ter medo, livre culto religioso e respeito à privacidade das pessoas. A liberdade de não ter medo embasa-se no direito de expressar livremente o pensamento.

As facções que desencadearam a luta armada de 1967 a 1974 (todas comunistas, exceto Caparaó) lutaram pela ditadura do proletariado, segundo a cartilha marxista. Mais recentemente, diziam ter lutado pela democracia, contra o que se insurgiu, indignado com a mentira, Daniel Aarão Reis, ex-guerrilheiro, preso e exilado, hoje professor universitário: "Nenhum documento das guerrilhas tratou de democracia", contestou.

Claro, pois, marxistas, visavam à ditadura do proletariado. De resto, se vencedoras, teriam erigido um regime de partido único, como o fez Lênin. É paradoxal o defensor do partido único invocar direitos humanos se nega a liberdade de expressão e a pluralidade partidária quando no poder.

O ministro Paulo Vannuchi (Direitos Humanos) foi militante da Ação Libertadora Nacional, liderada por Marighella, cujo manual de guerrilha defendia o terrorismo, diferentemente de Che Guevara, que o condenava.

Se o ministro fosse um Sobral Pinto ou um Paulo Brossard, eu teria certeza de sua imparcialidade. Reconheceria que a tortura e o terrorismo são irmãos xifópagos, a primeira, uma praga existente desde priscas eras, presente em todas as guerras, e o segundo, não tão antigo. Afinal, a Constituição trata ambos como crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça.

Já que o ministro faz diferença, teoricamente ao menos, julgo-o um revanchista, do tipo que, derrotado, está hoje no governo de um presidente que não foi guerrilheiro.

Antecessor seu na Comissão de Anistia foi outro militante de guerrilha comunista vencida. O objetivo deles tem sido muito claro: queixar-se de torturas na luta armada e esconder o terrorismo que praticaram. Falta-lhes, pois, substância moral para a queixa mesclada de ódio, a despeito dos benefícios já recebidos.

Só em indenizações, já receberam mais de R$ 2 bilhões. Nem um centavo para as famílias dos mortos e mutilados no atentado terrorista no aeroporto de Recife, em 1966, primeiro ato da luta armada que desencadearam. Pensão vitalícia, remuneração por atrasados e emprego livre de Imposto de Renda, tudo foi obtido por um dos terroristas que lançaram carro-bomba contra o quartel do Exército em São Paulo, cuja explosão estraçalhou o corpo de um soldado. Os filhos do povo, os vigilantes de bancos, os seguranças de embaixadores, os oficiais estrangeiros mortos à traição (e até por engano), esses não tinham pais, mães, esposas, filhos.

A emenda constitucional nº 11, de outubro de 1967, revogou o AI-5 e restabeleceu os direitos fundamentais.

Seguiu-se-lhe a anistia, mais ampla que o substitutivo do MDB, que não anistiava Brizola e Arraes. Reconhecendo que houve excessos de ambas as partes, o projeto de lei da anistia incluiu na graça os crimes conexos, assim tidos pelo Congresso em 1979, como a tortura e o terrorismo.

FHC acrescentou as indenizações que privilegiam os derrotados na luta armada. Inverteram o humanitismo de Quicas Borba e o princípio: aos vencedores as batatas. As batatas foram para os vencidos. Millôr Fernandes não pôde conter o chiste: "Os guerrilheiros não fizeram guerra, mas um bom investimento".

Bem pagos, cresceu-lhes a ambição de derrogar unilateralmente a anistia.

Imitando Janus, são bifrontes: um rosto é dedicado à tortura, que é o mal, e o outro, ao terrorismo, sobre o qual silenciam. Apareceram "juristas" doutrinando sobre a imprescritibilidade da tortura, mas omitem o terrorismo. Um jurista de esquerda tradicional, indelicadamente, chamou de "burocratas jurídicos" o ministro da Defesa e o advogado-geral da União, que dele discordam. O menosprezo evidencia a marca da ideologia, e não a do saber jurídico.

A propósito, declarou o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes: "Repudio qualquer manipulação ou tentativa de tratar unilateralmente casos de direitos humanos. Eles não podem ser ideologizados. É uma discussão com dupla face, porque o texto constitucional também diz que o crime de terrorismo é imprescritível".

Vannuchi, arrogante, exibe o vezo do totalitarismo de que foi militante: ameaça demitir-se (que perda para o país!) se o parecer da AGU, reconhecendo a anistia para os crimes conexos, for mantido. Aprendeu de Lênin e seu centralismo democrático: "quem não estiver comigo é contra mim". Ousa constranger, publicando declaração do presidente que se refere aos cadáveres de comunistas desaparecidos há 40 anos no clima quente e úmido da Amazônia, e não à anistia.

O presidente João Baptista Figueiredo disse que a anistia não implicava perdão, que pressupunha arrependimento não pedido, mas esquecimento recíproco, em favor da reconciliação da família brasileira. Perto de 30 anos passados, o esquecimento é unilateral. O ódio ideológico, o mais perverso dos ódios, prevalece.

JARBAS PASSARINHO, 88, é coronel da reserva. Foi governador do Pará (1964-65) e senador por aquele Estado em três mandatos (1967-74, 1975-82 e 1987-95), além de ministro da Educação (governo Médici), da Previdência Social (governo Figueiredo) e da Justiça (governo Collor).

quinta-feira, março 05, 2009

Ditadura à brasileira

por Marco Antonio Villa

É ROTINEIRA a associação do regime militar brasileiro com as ditaduras do Cone Sul (Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai). Nada mais falso. O regime militar brasileiro teve características próprias, independentes até da Guerra Fria.
Fez parte de uma tradição anti- democrática solidamente enraizada e que nasceu com o positivismo, no final do Império. O desprezo pela democracia foi um espectro que rondou o nosso país durante cem anos de república. Tanto os setores conservadores como os chamados progressistas transformaram a democracia em um obstáculo à solução dos grandes problemas nacionais, especialmente nos momentos de crise política.
O regime militar brasileiro não foi uma ditadura de 21 anos. Não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 (até o AI-5), com toda a movimentação político-cultural. Muito menos os anos 1979-1985, com a aprovação da Lei de Anistia e as eleições para os governos estaduais em 1982. Mas as diferenças são maiores.
Enquanto a ditadura argentina fechou cursos universitários, no Brasil ocorreu justamente o contrário. Houve uma expansão do ensino público de terceiro grau por meio das universidades federais, sem esquecer várias universidades públicas estaduais que foram criadas no período, como a Unicamp e a Unesp, em São Paulo.
Ocorreu enorme expansão na pós-graduação por meio da ação do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), especialmente, e da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), em São Paulo. Ou seja, os governos militares incentivaram a formação de quadros científicos em todas as áreas do conhecimento concedendo bolsas de estudos no Brasil e no exterior. As ditaduras do Cone Sul agiram dessa forma?
A Embrafilme -que teve importante papel no desenvolvimento do cinema nacional- foi criada no auge do regime militar, em 1969. Financiou a fundo perdido centenas de filmes, inclusive de obras críticas ao governo (o ministro Celso Amorim presidiu a Embrafilme durante o regime militar). A Funarte foi criada em 1975 -quem pode negar sua importância no desenvolvimento da música, das artes plásticas e do teatro brasileiros? E seus projetos de grande êxito, como o Pixinguinha, criado em 1977, para difundir a música nacional?
No Brasil, naquele período, circularam jornais independentes -da imprensa alternativa- com críticas ao regime (evidentemente, não deve ser esquecida a ação nefasta da censura contra esses periódicos). Isso ocorreu no Chile de Pinochet? E os festivais de música popular e as canções-protesto? Na Argentina de Videla esse fato se repetiu? E o teatro de protesto? A ditadura argentina privatizou e desindustrializou a economia. Quem não se recorda do ministro Martinez de Hoz? Já o regime militar brasileiro estatizou grande parte da economia.
Somente o presidente Ernesto Geisel criou mais de uma centena de estatais. Os governos militares industrializaram o país, modernizaram a infraestrutura, romperam os pontos de estrangulamento e criaram as condições para o salto recente do Brasil, como por meio das descobertas da Petrobras nas bacias de Santos e de Campos nos anos 1970.
É sabido que o crescimento econômico foi feito sem critérios, concentrou renda, criou privilégios nas empresas estatais (que foram denunciados, ainda em 1976, nas célebres reportagens de Ricardo Kotscho sobre as mordomias) e estabeleceu uma relação nociva com as empreiteiras de obras públicas. Porém, é inegável que se enfrentaram e se venceram vários desafios econômicos e sociais. É curioso o processo de alguns intelectuais de tentarem representar o papel de justiceiros do regime militar. Acaba sendo uma ópera-bufa. Estranhamente, omitiram-se quando colegas foram aposentados compulsoriamente pelo AI-5, como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Emilia Viotti da Costa, entre outros; ou quando colegas foram presos e condenados pela "Justiça Militar", como Caio Prado Júnior.
Muitos fizeram carreira acadêmica aproveitando-se desse vazio e "resistiram" silenciosamente. A história do regime militar ainda está presa numa armadilha. De um lado, pelos seus adversários. Alguns auferem altos dividendos por meio de generosas aposentadorias e necessitam reforçar o caráter retrógrado e repressivo do regime, como meio de justificar as benesses. De outro, por civis (estes, esquecidos nas polêmicas e que alçaram altos voos com a redemocratização) e militares que participaram da repressão e que necessitam ampliar a ação opositora -especialmente dos grupos de luta armada- como justificativa às graves violações dos direitos humanos.

MARCO ANTONIO VILLA, 52, é professor de história do Departamento de Ciências Sociais da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e autor, entre outros livros, de "Jango, um Perfil".

terça-feira, março 03, 2009

Quem É O Inimigo?

por Ricardo Setyon

Gosto muito de questionar tradições.
De deflagrar debates.
Adoro a troca de idéias e idéias.
O intercâmbio de filosofias e visões, me faz bem.
E na área dos jornalistas, valha-me D’us...não falta oportunidade para o meu deleite!
Não tem dia, não passa noite, sem que oportunidades sem fim apareçam, para satisfazer esse meu “vício”.
Ano Novo e chances novas de mudar, de falar diferente, de ver de outro jeito.
De quebrar tradições.
De questionar o simbólico.
De não aceitar, “só porque dizem”.
Aí, me vem à memória o tal do artigo que passei ao “De Olho na Mídia”, há algumas semanas.

Era sobre o modo com o que muitos pulam e dançam sobre os telhados, enquanto o mundo explode.
Era sobre a alegria de muita gente no Oriente Médio e adjacências, enquanto a morte despedaçava corpos e desmembrava famílias, em ataques terroristas.
Pelo mundo!
Todinho!
Alô Mumbai! Hindus, Budistas, Católicos, Judeus...todos mortos.
Todos massacrados.
Sem pena. Sem pensar duas vezes. Sem compaixão, e sem duvidas ou incertezas.
Só mais um ataque terrorista, para a lista deste Ocidente sem graça, sem nexo, sem jeito.
E aí o que?

Jerusalém, New York, Londres, Mumbai, Madrid, Roma, Washington, Viena, Buenos Aires…o Mapa Mundi do terror…
De homem-bomba, de gente armada com metralhadoras, de gente que seqüestra avião, de gente que joga avião sobre gente, de bomba em bolsa no trem, de explosão em pizzaria, de navio bomba, de bomba feita pela internet, de mulher bomba, de burrinho-bomba,...caramba: o menu parece não quere acabar!

Aí, eu pergunto meu caro leitor ocidental, cabeça boa, cabeça aberta, liberal, humanista, pacífico, do bem: quem é seu inimigo ?
Ah, entendi: você não tem inimigos. VOCÊ não tem nada contra ninguém.
Só não sabe explicar porque matam mães e crianças de uma vez só, e mais e mais você não consegue levar mais que 100 mililitros de água ou creme no avião?

Quem é seu inimigo? Quem quer te matar? Quem é terrorista? Quem assassina sem perguntar?
Ainda não sabe? Pera aí...

É aquele medico, formado em Oxford, que jogou um carro com explosivos sobre a entrada do aeroporto de Glasgow na Escócia?
Ou, então, o americano, de família classe-média, que revoltado, coloca uma quantidade de dinamite plástica suficiente para matar centenas durante um vôo ?
Então é o Hezbollah do Líbano, o Hamas, da Palestina, o Lashkar E- Taiba wque massacrou mais de 150 pessoas, indiscriminadamente em Mumbai?
Quem é? Insisto!

É o iraniano que detonou o prédio da Comunidade Judaica em Buenos Aires,e sequer foi preso? O Taliban, o ex-general serbio que fez limpeza étnica? O religioso israelita, que perde a cabeça e atira a esmo, matando palestinos, ou o prefeito da cidade boliviana que instiga seu povo para a violência contra os povos “collas” ?
É o dirigente islâmico que quer matar o escritor Salman Rushdie ?
É o Chávez? É o Fidel? É quem?

Ninguém sabe de onde virá a próxima idéia de justiça pelas próprias mãos.

Iraque em chamas, sapatos voam, ganhando mais destaque e espaço na mídia, que dezenas de mortos em explosões e conflitos, nos mesmos dias...estranhos estes ocidentais...
Quem é o inimigo então?
Estão no Afeganistão, nas cavernas da Al Qaeda, onde os Estados Unidos acabaram de decidir mandar mais dezenas de milhares de soldados ?

Idéias simples. Idéias para que não sejamos tão bobinhos. Para que não se acredite somente em historinhas, notícias tendenciosas e símbolos.
Todos indiscutíveis, mas que deveriam, ao contrario, ser completamente comprovadas como mentiras.

Acontece, que o mundo já nem fala mais, mas ali na Índia, nessa cidade tão gigante, tão ou maior que São Paulo, Mumbai, estremeceu de medo, e enterrou os seus mortos e os mortos dos outros.
E, de onde vieram os assassinos, todos por sinal, bem vestidos, a tal ponto, que entraram no lobby do mais luxuoso hotel da cidade?

P-A-Q-U-I-S-T-Ã-O.

O esporte nacional, o cricket, parece ser mais importante para muitos. O Paquistão está em chamas, e perdeu seus lideres, despedaçados em explosões.
E ainda, tem gente que acha que tudo está normal, festejemos o acordo para salvar as montadoras de automóveis dos EUA, e falemos da “marolinha” que a crise, segundo o presidente do Brasil, trouxe ao nosso país.

Paquistão. Onde muita gente acha que só há fundamentalistas islâmicos, mas o berço de Ajmal Amir Kassab, de somente 21 anos, que foi o único sobrevivente dentre os terroristas de que espalharam sangue em Mumbai.
Onde Asif Zardari, presidente hoje do país, sobreviveu o ataque a bomba que viu sua esposa, a famosa Benazir Butho, assassinada em Dezembro de 2007, tenta mostrar que há um fio de esperança.
O terrorista Ajmal Kassab, que nada tem a ver com o prefeito de São Paulo, teve parte no atentado que matou cerca de 200 pessoas. Sobreviveu, e confessou que a idéia era matar “pelo menos 500 pessoas”. Indiscriminadamente: sejam americanos, indianos, brasileiros...
Aliás, 28 estrangeiros foram assassinados, dentre os quais o maior contingente era de israelenses; 9 deles morreram. Três judeus também. A mais famosa modelo local, em Mumbai, é brasileira. Mora lá. Mas , nada sofreu, felizmente. Poderia, pois freqüenta o Taj Mahal Hotel, centro dos ataques...
Ajmal Kassab, disse que a meta era matar 500 pessoas. Mas o total de munição e armamentos que os terroristas levavam, segundo os Black Cats, órgão de elite da policia indiana, era suficiente para tirar a vida de ao menos 5.000 seres humanos.
Ajmal Kassab treinou no Paquistão. Ali, onde o serviço secreto ISI, parece ser mais a favor dos talibãs do que do próprio governo, a situação parece ser muito mais fácil para o treinamento de terroristas do que parece.
Mais e mais fica evidente que a fatia radical dentre os muçulmanos, cresce. E com países disponíveis a fornecer para o crescimento desses que acreditam no paraíso se matarem outras pessoas.
Matam cristão, hindus, budistas, judeus, e, segundo os seus líderes, até mesmo outros árabes e muçulmanos.

O interessante, é que eles aparecem em todos os países, curtindo a liberdade que o Ocidente oferece. Eles matam fora das fronteiras islâmicas.
Eles treinam no Afeganistão, no Irã, no Líbano, e no Paquistão.
Mas matam na Europa, assassinam onde o turismo ocidental passeia...na Índia, e qualquer lugar onde queiram.
E agem, com seus atos terroristas, utilizando os mais modernos métodos, inventados por ocidentais.
Em Mumbai, foram usados aparelhos de GPS. Mapas do Google Earth eram examinados detalhadamente. Celulares via satélite. Internet, chips de telefonia móvel trocados constantemente e armas modernas.
Tudo a disposição desses assassinos, que não perguntam, seu sobrenome nem sua posição política, antes de matar, explodir, aterrorizar.
A qualquer um.
Sem discriminação.
O dinheiro, também parece ser algo que não falta. E de onde vem? Ninguém sabe. Ou sabem? De doações de muitos personagens próximos aos terroristas islâmicos, residentes na Europa, Estados Unidos, America Latina...
Dinheiro que é pago para compra de armas de máfias no mundo inteiro, e para pagar as famílias dos suicidas assassinos.
Como ocorreu com a família de Ajaml Kassab, o terrorista que sobreviveu. Em Faridkot, na província de Punjab,onde moram seus pais e irmãos, um deposito foi feito, de uma quantia que pode assustar muitos de nós, ocidentais: 1.250 dolares americanos.
Algo em torno de 2.500 Reais, para matar dezenas de pessoas inocentes...

Pobreza, religião, racismo, falta de educação.
Uma mistura, para os muçulmanos, terrível.
No Paquistão, já pode-se ver, que o problema não é só de seus inimigos indianos: o problema é de todos. No mundo inteiro.
Menos para o Brasil.
Sim, porque o Brasil,consegue, em menos de semanas, durante o tempo de luto que o mundo passa, após os atentados dos terroristas do Paquistão que plantaram morte em Mumbai, tomar duas posições bastante distantes daquilo que aqui debatemos até agora.

Primeiro um belo encontro com o manda-chuva do país mais preocupante no cenário mundial nuclear, o Irã.
Depois, na ânsia de tornar-se uma “grande” nação, continua a fazer besteira no campo internacional.

Enquanto Santa Catarina ainda tenta se recuperar dos danos terríveis das chuvas, e os hospitais do Rio de Janeiro seguem sem ter condições mínimas de atender a população, o dinheiro do BNDES parece ter outras finalidades, mais “nobres”...
Cerca de 100 milhões de dólares, nos informam, vindos diretamente do Banco Nacional de Desenvolvimento serão oferecidos para financiar a compra de meia dúzia de mísseis teleguiados.
Mísseis, financiados, com dinheiro publico, para uma indústria militar nacional, para ser instrumentos de morte nesses conflitos, em países instáveis e repletos de campos de terroristas, como o Paquistão.
Como diz um amigo, narrador de futebol...: “Que Boniiiiitooo”.
Se me contassem, eu não acreditava.
Como sei e vi, não só acredito como questiono.
E enquanto não sabermos mais, fizermos mais, só seremos vítimas. Em qualquer canto do mundo.

Vitimas destes que não querem nosso estilo de vida, mas usam o que podem, para tirar proveito e beneficiar-se ao Maximo, e quando decidem matar e explodir, o ódio é tão grande, a raiva é tão gigante, o desdenho pela vida tão impressionante, que fronteiras, crenças ou cor da pele,idade e idéias, não interessam: eles matam a todos!

Ricardo Setyon é jornalista, tendo coberto recentemente as Olímpiadas na China, como correspondente da Jovem Pan e do site Terra. Sua primeira experiência profissional foi na Revista O Hebreu. Morou 12 anos em Israel, se formou na Universidade de Haifa em Ciências Políticas e Estudos de Psicologia ( dois diplomas separados). Foi repórter na Guerra do Líbano I. Cobriu também a Intifada I, Guerra na Cróacia, Bósnia, Iraque I, Iraque II e Guerra do Líbano 2006. Foi jornalista do Maariv e da TV Israel por vários anos, e correspondente do primeiro no Brasil. Cobriu todos os mundiais desde 1986 e todas as Olímpiadas desde 1988. Único repórter a ter tido acesso a pista no dia da morte de Ayrton Senna. Porta-voz da CBF e único brasileiro a ter sido contratado diretamente pela FIFA. Foi chefe da imprensa, coordenador e porta-voz para assuntos relacionados ao Brasil durante anos. Duas Copas (1998 e 2002) e diretor de comunicação do Primeiro Mundial da Fifa em 2000. Trabalha como correspondente de vários meios do mundo no Brasil, além de ser correspondente do Maariv, BBC WORLD, CNN Online, e de midias do Japão, Noruega, e Inglaterra. Por fim, é palestrante em universidades paulistas sobre jornalismo, coordenador do Almanque da FIFA de Futebol Mundial para a América Central e do Sul. Atualmente é diretor de Relações Internacionais e Comunicações da Brunoro Sports Business.
Escrito por: Ricardo Setyon, colunista do De Olho Na Mídia

segunda-feira, março 02, 2009

Ranço persistente

por Jarbas Passarinho

A reportagem sobre o encontro do presidente Lula com mais de 3 mil e 500 prefeitos municipais e suas esposas, na semana passada, o ofendeu ao vinculá-lo à emissão de um “pacote de bondades”. Ademais, atribuiu o evento, inédito nos seis anos que preside o Brasil, quando as proveitosas viagens ao exterior permitem, à antecipação ilegal da campanha eleitoral da ministra Dilma Roussef. Um encontro sério — afirma o governo — para derrotar o pessimismo dos novos gestores municipais, que estão fazendo cortes orçamentários descabidos, nos quais a economia com infraestrutura atingiu papel higiênico para 15 mil pessoas. A mídia, ao descrever a reunião como destinada a cooptar os prefeitos para as eleições de 2010, aumentou-lhe a azia.

Pois não é que a irritação do presidente me pareceu justificada? Os prefeitos sistematicamente devem ao INSS. Acham que os antecessores são responsáveis, conquanto seja dívida acumulada em várias gestões sucessivas. Não pagaram, mesmo podendo parcelar em 60 vezes, ou seja, em cinco anos. Que fez o presidente? Condoeu-se e passou o parcelamento para 240 vezes, ou seja 20 anos. A mídia, porém, diz que é bondade de quem espera agradecimento em 2010, e que não passa de barretada com o chapéu da Previdência, cuja receita provém muito pouco da União e essencialmente de empregados e empregadores que sofrerão com o rombo no orçamento da instituição, que o presidente pode administrar como se sua fazenda fosse. Nada mais justo, como faz com a Petrobras.

Ao dirigir a palavra à plateia, ocorreu-lhe louvar a superioridade das mulheres, “que têm mais sensibilidade e ousadia que os homens”. Um elogio justo, que a mídia, infelizmente, vê como sutil recomendação da sua candidata Dilma Roussef. Ora, o presidente nada tem de sutil. É claro que louvava as mulheres que chegaram à presidência do Chile e da Argentina. De resto, foi um carão na insensibilidade administrativa dos homens, pouco afeitos a sacrifícios de seus interesses pessoais. Deu logo o exemplo, o “do batom da ministra Dilma, cortado para economizar o dinheiro público e de ousadia administradora sem igual”. Ao fim do encontro, como lembrança de horas tão aprazíveis, um presente a todos: um santinho com o retrato de Lula e da ministra Dilma. A mídia aproveita, maliciosa, para lembrar que tais santinhos são clássicos nas campanhas eleitorais. Mera coincidência, acredito.

No discurso, ao estilo que empolga os ouvintes, aproveita para censurar descaso imperdoável do estado de São Paulo à educação, presente o prefeito paulistano: “Você, Kassab, vai cair da cadeira. Não sabe e eu não sabia (como sempre), mas, no estado de São Paulo, o mais rico do país, ainda há 10% de analfabetos”. O dado é falso, protesta no dia seguinte o líder tucano na Câmara dos Deputados. “É de 1991. O mais recente, de 2007, não passa de 4,6%.” Ora, todo mundo se engana, mas logo se afirma que foi proposital, para ser usado nos debates com o possível opositor a dona Dilma, o governador Serra.

Na defesa de seu indiscutível amor à verdade, jamais usaria ou faria usar uma falsidade num debate. Tomara sete anos e não 15, como a Unesco, para a estatística do analfabetismo. Seguramente terá enviado 3 mil e 500 telegramas, retificando o erro, aos prefeitos que já estão em seus municípios. Sua foto, inteiramente informal, sentado entre as mulheres que estiveram no encontro, dá-nos a impressão de um deslumbrante populista em plena tietagem. Mas fica, para cada uma das senhoras, a recordação de um presidente da República que se sentou informalmente para homenagear as inspiradoras dos políticos no início de suas carreiras na democracia representativa. Isso nunca será esquecido, pertençam eles ao partido a que pertencerem.

“Não é porque a imprensa me ajudou que fui eleito, mas porque suei para enfrentar o preconceito e o ódio dos de cima para com os de baixo”, desabafou. Não está fazendo mais que trocar em miúdos a teoria de Marx: “Toda a história é a história da luta de classes”. Medularmente líder sindical, não pode livrar-se do ranço persistente das leituras marxistas. Iguala-se à mulher do líder comunista francês Maurice Thorez, na Assembleia Nacional da França. A um deputado, que estranhava tanto ódio ao ouvi-la, retrucou: “Não se pode amar o povo sem odiar seus opressores”.

Incapaz de perder a serenidade, vinga-se proporcionando aos banqueiros, nata da classe perversa que o combateu, os maiores lucros “jamais alcançados nesse país”. Decerto suou muito nos duros “tempos de chumbo”, em que a imprensa livre criou o slogan Lula, o metalúrgico, quase o glorificando. Chegou a ser hóspede da “terrível” prisão do delegado Romeu Tuma, sabidamente igual à de La Cabaña, em Cuba, com as simulações de fuzilamento e a tortura sistemática. É justo, pois, que se lembre, nos momentos de angústia, do suor do passado, e lhe moleste a azia do presente. Merece a indenização que recebeu por seus suores e a aposentadoria de fazer inveja aos antigos companheiros.