por Carlos Alberto Sardenberg para O Globo
Estamos em 30 de setembro de 1999: o jornal "The New York Times" informa que o governo Bill Clinton está pressionando a agência hipotecária Fannie Mae, a maior do país, para que flexibilize as regras de concessão de empréstimos. O objetivo específico, diz o jornal, é estender os financiamentos para aqueles clientes do "chamado subprime".
Começava aí a crise do setor imobiliário que iria aparecer apenas em 2007, de sua vez dando origem à derrocada de todo o sistema financeiro.
A situação era a seguinte: havia o mercado convencional, que atendia as famílias cujas rendas, poupanças e fichas de crédito eram suficientes. Esse mercado estava amplamente atendido, no boom dos anos 90.
De outro lado, estavam as famílias mais pobres que só conseguiam financiamento se pagassem taxas de juros de três a quatro pontos percentuais acima do cobrado em negócios convencionais. Negócio muito arriscado, era evitado por todas as partes.
Aí entram na história Fannie Mae e Freddie Mac, agências do mercado secundário, que não davam financiamentos diretos ao mutuário, mas compravam as hipotecas e financiavam os bancos que emprestavam ao comprador da casa. Eram agências privadas, mas cujos títulos tinham garantia do governo. Eram paraestatais.
Os bancos, com dinheiro sobrando, já pressionavam Fannie Mae e Freddie Mac para que comprassem as hipotecas e dessem crédito para o pessoal do subprime. E aqui apareceu o fator político: o governo Clinton apertando as duas grandes agências, de modo a ampliar a oferta de financiamentos para os mais pobres.
Assim, em setembro de 1999, Fannie Mae iniciou um programa novo, objeto da reportagem do "NY Times", fazendo com que a taxa de juros paga pelos clientes subprime fosse apenas um ponto percentual acima do prime. E se o comprador pagasse em dia por um certo período, esse ponto extra era eliminado.
O governo Clinton propôs (ou recomendou) que, em dois anos, metade do portfólio de Fannie Mae e Freddie Mac fosse formado pelos financiamentos a famílias de média e baixa renda.
Funcionou. Milhões de casas de até US$250 mil foram financiadas. O programa foi considerado um êxito notável. Mas já na primeira reportagem o "NY Times" antevia o perigo. Observava que as agências semigovernamentais estavam assumindo riscos maiores, lotando sua carteira de hipotecas duvidosas.
Isso, dizia o jornal, não seria problema em um momento de crescimento econômico. Mas, numa desaceleração do mercado, as duas agências enfrentariam problemas e provavelmente seria necessário "um resgate do governo".
Na mosca.
Especialmente porque os bancos, animados com a flexibilidade de Fannie Mae e Freddie Mac, saíram financiando compradores sem poupança e até sem renda e empregos comprovados.
Por outro lado, não se pode dizer que foi dinheiro perdido. Se hoje há muita gente que perdeu a casa e ainda deve aos bancos, que devem às agências, que devem ao governo, pois foram estatizadas, outras milhões de famílias conseguiram a sonhada casa própria.
Mas por que estamos tratando disso? Primeiro, para mostrar que o enorme desastre de um sistema financeiro desregulado - que empacotou, securitizou, financiou e refinanciou as hipotecas subprime - teve origem remota numa decisão política do governo. Bem intencionada, claro, mas obviamente mal implementada.
E, segundo, porque o governo Lula está preparando um amplo programa para financiar um milhão de casas para famílias com renda mensal de até cinco salários mínimos.
Os especialistas mostram que as famílias de baixa renda não têm condições de pagar, de modo que precisam de subsídios. Se o governo der o subsídio diretamente ao mutuário, pode ser. Mas, se o governo resolver, por exemplo, mandar a Caixa Econômica e o Banco do Brasil concederem empréstimos com critérios mais frouxos, já sabemos aonde vai dar.
Aliás, isso vale para todos os bancos públicos. O governo os está pressionando para que concedam empréstimos, de modo a manter consumo e investimentos. E podem ser, muitos, empréstimos de risco elevado, futuros esqueletos.
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