por AUGUSTO NUNES
Cerca de 70 militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, grávidos de beligerância, não tiveram paciência para adiar por pouco mais de uma semana a invasão dos 470 hectares da Fazenda Esperança, no conflagrado Pontal do Paranapanema. O crime fora incluído na cerimônia de abertura de outro "abril vermelho" – o quarto mês do ano foi reduzido, há 10 anos, a um período de 30 dias durante os quais o direito de propriedade deixa de existir em todo o país. Consumou-se na manhã de 21 de março, sem resistência dos proprietários legais. "Nada melhor que uma Sexta-Feira Santa para decretar a morte do latifúndio e a libertação dos trabalhadores sem-terra", informou Sérgio Pantaleão, coronel do MST na região.
A subversão do calendário gregoriano não tem nada de surpreendente. Primeiro, porque não se deve esperar que trate a folhinha com bons modos gente que vive rasgando a Constituição (o artigo 5º inclui o direito à propriedade entre as chamadas "cláusulas pétreas", como o direito à vida) e atropela códigos legais com a brutalidade que merecem instrumentos do capitalismo selvagem. Segundo, porque o exemplo veio de cima há quatro anos. Em 2004, a primeira-dama Marisa Letícia foi autorizada pelo maridão a promover em julho, na Granja do Torto, uma festa junina em louvor de Santo Antônio.
Tampouco deve causar espanto a geléia retórica que mistura menções a dias santos com o jargão usado por quem também acha que a religião é o ópio do povo. Como Deus é brasileiro, não convém a nenhum compatriota – sobretudo se comunista – proclamar-se ateu. Só o arquiteto Oscar Niemeyer faz uma coisa dessas na nação em que restaram apenas socialistas. Insatisfeitos com a indigência da fantasia usada pelos comunistas que não ousam dizer seu nome, os camaradas do MST resolveram acrescentar-lhe truques que aprenderam na missa das 10. E deram de fingir que são católicos.
"Sou cristão", mentiu há cinco anos, no meio de uma entrevista, o chefão João Pedro Stédile, ajoelhado desde criancinha no altar de Joseph Stalin. Nem foi preciso pedir-lhe que recitasse a primeira parte da ave-maria. "Acredito em reencarnação", tropeçou já na frase seguinte. Fez uma pausa e completou a brusca conversão ao espiritismo: "Não só acredito como quero viver outra vida rapidinho".
Como não crê nas leis da Igreja, Stédile peca sem perder o sono. Como despreza as leis da burguesia, delinqüe com a naturalidade de mafioso de cinema. Os bons companheiros que mantém no governo saberão socorrê-lo caso seja surpreendido por improváveis ventos contrários. Não há motivos, portanto, para temer promotores públicos ou juízes,
Por ter articulado a depredação de um laboratório e um canteiro de mudas da Aracruz Celulose no Rio Grande do Sul, Stédile foi enquadrado pelo Ministério Público, há um ano, nos crimes de dano qualificado, furto qualificado, formação de quadrilha, bando, seqüestro, cárcere privado e lavagem de dinheiro. Continua em liberdade. E, compreensivelmente, cada vez mais atrevido.
Há dias, saiu sorrindo da aula magna em que explicou, numa universidade do Rio, que o paraíso concebido por Marx e Lenin continua bem de saúde – só espera, nos escombros do Muro de Berlim, por arqueólogos valentes como a turma do MST. E sorrindo continuou ao receber, de um oficial de justiça, cópia da decisão judicial que, atendendo à solicitação da Vale, proíbe o MST e Stédile de "incitar e de promover a prática de atos violentos contra o patrimônio da mineradora". A empresa foi vítima de oito ataques, alguns dos quais configuram ações nitidamente terroristas,
"Esta é uma medida desesperada de quem sabe que está em dívida com o povo brasileiro", discursou Stédile ao ler o despacho da juíza Patrícia Rodriguez, da 41ª Vara Cível do Rio de Janeiro. "Não são medidas da época da repressão, como esses falsos mecanismos policiais, que vão parar o MST. Pelo contrário, agora é que nós vamos ficar com mais raiva. Vamos multiplicar as invasões neste abril vermelho".
Exaustos da omissão de governadores e autoridades policiais, que se recusam a cumprir decisões judiciais, proprietários rurais começam a ceder a perigosas tentações. "Para resolver o problema, só a bala", exaspera-se o fazendeiro e advogado Rodrigo Leite, dono de 500 alqueires e 1.100 cabeças de gado no Pontal do Paranapanema. "Ações de reintegração de posse não adiantam. Elas nunca são cumpridas".
O governo federal finge ignorar que fazendeiros e empresas são, na visão do MST, os alvos da vez. O inimigo a liquidar, para a turma de Stédile, é a democracia. Não é difícil defendê-la. É só cumprir a lei.
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