sexta-feira, dezembro 28, 2007

Ficamos mais bestiais

Diogo Mainard

Luiz Moyses perdeu a mulher na tragédia da TAM. Na tragédia do Aeroporto de Congonhas. Na tragédia do Airbus. Na tragédia da Anac. Na tragédia da Infraero. Na tragédia de Lula. Chame do jeito que quiser.

Luiz Moyses era de Porto Alegre. Depois do acidente, a TAM o acomodou no Hotel Blue Tree, em Moema, perto de Congonhas. Em 31 de agosto de 2007, à noite, ele estava no bar do hotel, acompanhado por dois outros familiares de vítimas do Airbus. No mesmo dia, ocorrera a abertura do III Congresso Nacional do PT. Mais de 150 delegados do partido também estavam hospedados no Hotel Blue Tree. O PT sempre se deu bem com o Hotel Blue Tree. Um dos delegados petistas foi confraternizar com Luiz Moyses, imaginando que ele fosse um correligionário. Luiz Moyses repeliu-o dizendo que Lula era o culpado pela morte de sua mulher. O delegado petista tentou agredi-lo. Insultou-o. Disse que os parentes dos mortos da TAM estavam chorando demais. O agressor só foi contido pelo deputado baiano Joseph Bandeira e pelos guarda-costas do partido.

O próprio Luiz Moyses relatou-me o episódio alguns meses atrás. Nesta semana, à procura de uma imagem que sintetizasse o ano, lembrei-me dele. Mais do que pelo acidente de Congonhas, 2007 ficará marcado pela bestialidade que deflagrou. Da alegria indecente de Lula na posse de Nelson Jobim ao top, top, top de Marco Aurélio Garcia quando o Jornal Nacional falou sobre o reversor pifado, o Brasil desceu mais uns degrauzinhos na escala de civilidade.

Em 2005 e 2006, o conflito foi entre lulistas e antilulistas, entre achacadores e achacados, entre quadrilheiros de um bando e de outro. 2007 foi pior: o conflito passou a ser mais essencial, mais primário, entre a selvageria e a humanidade. Os fatos do Hotel Blue Tree resumem idealmente o que aconteceu no país nos últimos tempos. Num artigo pomposo como este, em que se analisa o passado em busca de ensinamentos para o futuro, cai bem citar um autor ilustre.

É kitsch, mas cai bem. Pensando em Lula, em Marco Aurélio Garcia e no agressor de Luiz Moyses, cito o autor mais manjado de todos, Samuel Johnson: "A piedade não é natural ao homem. Crianças são sempre cruéis. Selvagens são sempre cruéis. A piedade é adquirida e aperfeiçoada pelo cultivo da razão".

A mulher de Luiz Moyses chamava-se Nádia. Foi sua primeira namorada. Eram casados havia sete anos. Quando Nádia morreu, Luiz Moyses vendeu sua empresa e mudou-se de Porto Alegre. Atualmente, ele tenta reconstruir sua vida em outro lugar, ao mesmo tempo que coordena as atividades do grupo de parentes dos 199 mortos de Congonhas. Chegou a ser recebido por Lula no Palácio do Planalto. Perguntou o motivo do descaso do governo com a segurança nos aeroportos. Lula respondeu, segundo ele, que "o povo brasileiro nunca pediu segurança, pediu que modernizássemos os terminais". Lula teria acrescentado que o Brasil "possui os melhores terminais do mundo, com shopping center e tudo o mais".

O ano acabou. A tragédia da TAM ficou para trás. Menos para Luiz Moyses e todas as pessoas que perderam parentes ou amigos. Eles continuam a buscar respostas para os acontecimentos daquele fim de tarde de julho. Reúnem-se, confortam-se, trocam mensagens. A última suspeita que circula entre eles é que o piloto do Airbus teria pedido autorização para aterrissar no Aeroporto de Guarulhos, mas tivera seu pedido negado pelos controladores. Em 2007, o Brasil pediu para aterrissar numa pista longa e segura, mas acabou numa pista incerta e escorregadia, "com shopping center e tudo o mais".

quinta-feira, dezembro 27, 2007

Fim da metamorfose

Jarbas Passarinho
Foi ministro de Estado, governador e senador


O presidente Lula, citando versos do cantor Raul Seixas, disse ser “uma metamorfose ambulante”. Pedro Malan, em artigo em O Estado de S.Paulo, de 8 do corrente, sob o título “Metamorfoses”, começa por salientar que o verso todo é: “Prefiro ser metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Pleno de citações que mostram erudição, o autor começa por lembrar a frase de Keynes: “Quando mudam as circunstâncias de forma significativa, eu mudo de opinião. Você o que faz?”

Os políticos mais lidos, para justificar a mudança de partido ou de convicção de doutrina política, servem-se do grande estadista do Segundo Império, o ilustre mineiro Bernardo Pereira de Vasconcelos, pilastra do Partido Liberal. Aos que o alcunhavam de trânsfuga, porque se passara para o Partido Conservador, defendeu-se: “Fui liberal; então a liberdade era nova no país, estava na aspiração de todos, mas não nas leis; o poder era tudo. Hoje, é diverso o aspecto da sociedade; os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram; a sociedade que corria pelo poder, corre agora o risco pela desorganização e anarquia e por isso sou regressista. Não sou trânsfuga”.

O sumo de seu argumento é que se antes lutara contra o despotismo, agora passara a ver o perigo da anarquia. Raul Seixas devia ser o patrono dos que desrespeitam a fidelidade partidária e mudam constantemente de partido por não mais quererem “ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Malan adverte que “há riscos em ser a metamorfose excessivamente ambulante”.

O presidente, reiteradamente, disse que não era de esquerda. Decepcionou petistas “históricos”, do sociólogo Francisco de Oliveira à brava senadora Heloísa Helena, passando pelo consultor de empresas José Danon, que usou esta frase, entre ironia e lástima: “Acho que votamos no Lula que não era, aí veio o Lula que era e nos pegou”. A frase engloba os que pensaram que Lula seria o símbolo da virada socialista da América Latina, de par com os burgueses que entendem de socialismo tanto quanto minha velha avó entendia de logaritmo neperiano ou física quântica.

Hábil, fez a primeira de muitas metamorfoses, aderindo aos mandamentos do populismo, tão bem analisados pelo historiador mexicano Enrique Krause, especialmente aquele mandamento que diz: “O populista não só usa da palavra. Ele se apropria dela, veículo específico de seu carisma”. Ele, as pesquisas de opinião consagram. Já a sua aprovação chega a 65%, o que não teria alcançado se os pensadores esquerdistas históricos lhe fizessem prisioneiro das velhas opiniões de Marx e os servos da ética o fizessem Catão, o Antigo, a impedir o assalto aos cofres da viúva chamada República.

Se houvesse pesquisa, não popular, mas entre os parlamentares brasileiros, aposto que mais de 90% não saberiam dizer o que foi — e continua a ser — o Foro de São Paulo, fundado em 1990, espécie de convenção das esquerdas sul-americanas, iniciativa do Partido Comunista de Cuba. A ilustre companhia reunida na capital de São Paulo tinha todas as alternativas revolucionárias da práxis leninista, a partir dos guerrilheiros das Farc, comunistas da Colômbia, que são financiados pelos traficantes de cocaína, fazem milhares de seqüestros para receberem resgates, exceto dos muitos mantidos como moeda de troca pelos 500 guerrilheiros presos, o que não se deu até agora, e há mais de 44 anos não se deixam abater pelos governos democráticos locais.

Comparsas foram também, no Foro de São Paulo, os extremistas comunistas chilenos, que combatem o socialismo democrático, e a caterva dos revolucionários argentinos, venezuelanos e bolivianos que tinham como lema “fazer dar certo o que não deu no Leste Europeu”. Basta isso para definir o Foro no espectro das esquerdas. Dele participou, com destaque, o então líder sindical presidente do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, derrotado candidato à Presidência em 1989. Ele era, por dedução lógica, um homem de esquerda acolitado pelo extremista Marco Aurélio Garcia, hoje seu assessor especial para política externa.

Na comemoração dos 15 anos do Foro, o orador principal foi Lula. Recordou, saudoso e feliz, a criação do Foro e exemplificou as conquistas na Venezuela, Bolívia e Uruguai. Muito aplaudido, exortou os companheiros: “O que nós precisamos é trabalhar para consolidar, para que a gente não permita que haja qualquer retrocesso nessas conquistas”. Recentemente, em Belém do Pará, enlevou-o a reminiscência da fundação e das conquistas do Foro de São Paulo, o que prova que todas as metamorfoses anteriores disfarçaram, camufladas, a verdadeira imagem reiterada no calor do portal da Amazônia, o que por si só desnuda a articulação ideológica com os caribenhos e os andinos, a ocupação militar de nossas refinarias na Bolívia e a leniência com os insultos do caudilho da Venezuela. Tudo subordinadamente aceito, pelo bem da causa do “socialismo do século 21”, a matriz que marca o fim das metamorfoses já desnecessárias.

domingo, dezembro 16, 2007

O dia em que o PSDB foi PT


Lula e o PT foram contra todos os pactos engendrados para o bem do país: eleição de Tancredo, para sair da ditadura; apoio a Sarney, para consolidar a redemocratização; aval à nova Constituição, em 1988; sustentação de Itamar, na transição pós-Collor

BRASÍLIA - Lula e o PT foram contra todos os pactos engendrados para o bem do país: eleição de Tancredo, para sair da ditadura; apoio a Sarney, para consolidar a redemocratização; aval à nova Constituição, em 1988; sustentação de Itamar, na transição pós-Collor; estabilização da economia na era FHC, velho parceiro antiditadura.
Por quê? Porque o objetivo de Lula e do PT era marcar posição e chegar ao poder. Demorou, mas deu certo. Venceram e se reelegeram.
Foi exatamente essa a lógica dos deputados e senadores tucanos ao derrotar a CPMF. Lula está forte. O Congresso, os partidos e a oposição, em particular, estão frágeis. Dar R$ 40 bi para o Planalto, que já conta com ventos internacionais favoráveis, carga tributária escorchante e arrecadação recorde, seria dar a vitória ao adversário em 2008 e fortalecê-lo para 2010. Não era, pois, da lógica de oposição.
Serra e Aécio têm um governo estadual e a perspectiva de subir a rampa. Ambos tinham interesse em negociar com o Planalto e em salvar a parte que lhes cabe e lhes caberia do latifúndio da CPMF. Mas, para poderem usar a CPMF na Presidência, eles precisam, antes, chegar lá. Não é fortalecendo um Lula já forte que vão conseguir.
E o que o PSDB lucraria recuando de última hora para votar com o Planalto? Seria uma desmoralização. Não ganharia um só voto do eleitorado de Lula e irritaria o seu próprio eleitorado, cansado de uma oposição débil e errática.
Foi a maior derrota política do governo Lula em seis anos -e dói no bolso. Contra a parede, o governo dá tratos à bola para anunciar nesta semana um presente de Natal às avessas. Novos impostos e corte de gastos? Porque o fundamental agora, para todos, é recompor os recursos da saúde, literalmente vital. Interessa a governos criar e manter impostos. Cabe à oposição acabar com eles. A quarta-feira, 12/12, foi o dia em que o PSDB foi PT.
Eliane Catanhede

segunda-feira, dezembro 10, 2007

A marcha da insensatez bolivariana!!!

Paulo Guedes - Época

“Não se perde a liberdade de uma só vez”, alerta-nos o filósofo inglês David Hume. Os sintomas da gradual asfixia da democracia venezuelana são claros, e seu diagnóstico é conhecido.

Sintoma número 1
O presidente Hugo Chávez brada diante das câmeras de TV: “Foi uma vitória de m...!”. Referia-se à vitória da oposição no plebiscito que rejeitou sua proposta de reforma constitucional.

Diagnóstico: “Na mais visual de todas as formas, o fascismo se apresenta por imagens vívidas de um demagogo discursando bombasticamente para uma multidão em êxtase. Tendo chegado ao poder na legalidade, líderes fascistas podiam exercê-lo apenas nos termos da Constituição. Seu poder era limitado. O golpe dos fascistas foi transformar um cargo constitucional em autoridade pessoal ilimitada, controlando por completo o Estado. Os Parlamentos perderam o poder, e as eleições foram substituídas por plebiscitos do tipo ‘sim ou não’” (Robert Paxton, A Anatomia do Fascismo, 2005).

Sintoma número 2
Os chefes das Forças Armadas venezuelanas reafirmam seu apoio a Chávez aos gritos de “Pátria, socialismo ou morte!”.

Diagnóstico: “A conciliação do socialismo com os métodos democráticos pertence ao mundo das utopias. O socialismo não é o caminho para a liberdade, e sim para ditaduras a favor e contra. Um caminho para a guerra civil da mais feroz espécie. A ascensão do nazismo e do fascismo não foi apenas uma reação às tendências socialistas do período precedente, e sim uma conseqüência dessas tendências. A transição do socialismo ao nacional-socialismo ou ao fascismo foi inevitável. Representando pólos aparentemente opostos no espectro político, eram apenas as duas faces das mesmas tendências totalitárias” (Friedrich A. Hayek, O Caminho da Servidão, 1944).

Sintoma número 3
O fechamento da RCTV e a ameaça de abertura de processo contra a rede de TV CNN por “incentivar seu assassinato”.

Diagnóstico: “As palavras de ordem e as manifestações de massa foram comuns aos nazistas e fascistas, bem como a gradual interdição da imprensa por um conjunto de leis e decretos, sempre assegurando a legalidade do sistema” (Louis Dupeux, História Cultural da Alemanha, 1989).

Sintoma número 4
A demonização do capitalismo internacional e particularmente da liderança econômica americana.

Diagnóstico: “Os primeiros movimentos fascistas atacaram o capitalismo financeiro internacional com veemência. Prometeram expropriar terras em favor de camponeses. Atraíram as vítimas da globalização e os perdedores da modernização usando as técnicas de propaganda mais modernas” (Paxton).

Sintoma número 5
Líder, povo, identidade, poder e Constituição “bolivarianos”.

Diagnóstico: “Política de massas, o fascismo tentava apelar sobretudo às emoções pelo uso de retórica intensamente carregada. O fascismo ajuda um povo a realizar seu destino. Repousa na união mística do líder com o destino histórico de seu povo, agora consciente de sua identidade e de seu poder” (Paxton).

Sintoma número 6
Militantes chavistas espancando universitários e opositores.

Diagnóstico: “Um artifício usado pelos totalitaristas eram as estruturas paralelas, tanto na ascensão quanto no exercício do poder. O Estado oficial e essas estruturas conferiam ao regime sua bizarra mistura de legalidade e violência arbitrária” (Paxton).

Se “nos tornamos mais sábios quando reconhecemos que muito do que já fizemos foi insensato”, como afirma Hayek, a tentativa de reengenharia de um socialismo “bolivariano” no século XXI revela a completa ausência de sabedoria. Uma insensatez “bolivariana”.

quarta-feira, dezembro 05, 2007

A comédia que virou chanchada

Augusto Nunes

Encenado em 1995 e em 1999, o espetáculo da prorrogação da CPMF nunca chegou a prender a atenção da platéia brasileira. Nas duas apresentações, dirigidas por Fernando Henrique Cardoso, o elenco seguiu burocraticamente o enredo, baseado no combate travado entre o poderoso exército governista, favorável à sobrevida do imposto do cheque, e tropas oposicionistas agarradas ao argumento segundo o qual provisório é provisório. Não é sinônimo de permanente.

Em ambas as temporadas, o que deveria ser um drama acabou virando comédia - e de quinta categoria - minutos depois de descerradas as cortinas. "O Brasil não sobreviverá sem a CPMF", garantia um general governista. A platéia caía na gargalhada: como levar a sério alguém que falava linguagem de vilão com sotaque de mocinho? "O governo que gaste menos", revidava a ordem de um guerreiro oposicionista. A platéia morria de rir: como levar a sério alguém que bancava o herói sem conseguir disfarçar a cara de bandido?

Novamente em cena desde setembro, o drama reduzido a comédia de mau gosto pelo script farsesco, pela escassa imaginação do diretor e pela canastrice do elenco, vai se transformando na mais espantosa chanchada já apresentada no Teatrão do Planalto. Promovido a diretor de elenco em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva promoveu uma radical inversão de papéis: quem era isto agora é aquilo. Os que juravam de morte a CPMF passaram a defendê-la a tiros. Os que lutavam para prolongar-lhe a vida resolveram enterrá-la já. Sem choro nem vela. E em cova rasa.

A confusão decorrente da abrupta reviravolta - não é tão simples decorar falas que não faz muito estavam em outras bocas - foi ampliada consideravelmente quando o diretor resolveu assumir também as funções de roteirista e retocar a história a machadadas. Começou infiltrando cenas em que soldados oposicionistas se viram tentados com mimos e favores a mudar de uniforme.

Não funcionou, e Lula teve outra idéia: abreviar o desfecho com a assinatura de um tratado de paz entre as partes em conflito. Também não funcionou. Louco por um palco, o diretor e roteirista Lula achou que chegara a hora de brilhar como ator. E a coisa desandou de vez. No papel de comandante da turma decidida a explodir a CPMF, não fizera feio nos espetáculos dirigidos por FH. Seria diferente desta vez.

O artista voltou ao palco há uma semana. Não mudaram a voz roufenha, a cara zangada, o olhar feroz e a língua sempre solta. Antes como agora, em cena Lula não fala; vocifera. Mas o avesso do personagem passou a vociferar o contrário do que dizia. Ficou muito estranho. Como um John Wayne no papel de bandidão. Como Jack Palance bancando o mocinho.

"A CPMF é o mais justo dos impostos", grita o ator que, nas versões anteriores, qualificava de "coisa de golpista" a prorrogação do tributo. "Só sonegador é contra esse imposto", acusa a garganta que durante 10 anos até nos ensaios se entusiasmava com textos que comprovavam os estragos impostos à classe média pelo monstrengo inconstitucional. A dedicação do ator só serve para comprovar que, na ficção ou na vida real, Lula não tem compromisso com a coerência.

Nem com a palavra empenhada. Em 1999, fazendo coro com todo o elenco, Lula garantiu que o espetáculo nunca mais seria encenado. Renovou a promessa em 2006. Era mentira.

terça-feira, dezembro 04, 2007

Democracia

Ali Kamel

A vitória do “não” na Venezuela assanhou os setores antidemocráticos e autoritários aqui do Brasil. Muitos tentaram demonstrar que a derrota de Chávez era a prova de que seus críticos são injustos: a Venezuela seria uma democracia pujante, em que o presidente submete suas idéias ao povo e acata os resultados, tudo muito normal. A vitória do “não” foi sem dúvida uma vitória dos democratas venezuelanos, mas, nem de longe, a evidência de que o regime em vigor naquele país é democrático. O que se evitou ali foi mais um golpe na democracia, o definitivo sem dúvida, mas, para que a liberdade volte a ser uma realidade, o caminho ainda é longo. Já se tornou um chavão, mas é inevitável repetilo: eleições são fundamentais numa democracia, mas, por si só, não atestam que um regime seja democrático.

Depois de eleito em 1998, Chávez, por decreto, decidiu fazer uma consulta popular para que o povo aceitasse ou não a convocação de uma Constituinte, que teria por objetivo implantar a “revolução pacífica bolivariana”. O Congresso, eleito apenas um mês antes (portanto, perfeitamente legítimo), decidiu resistir, alegando que o presidente não tinha o poder de fazer tal consulta. Mas a Suprema Corte do país, para agradar a Chávez, não somente autorizou o plebiscito como deu ao presidente o direito de ditar as regras eleitorais para a eleição dos constituintes. O que fez Chávez? Pra aquela eleição, acabou com o voto proporcional e instituiu o voto majoritário, em que o vencedor de um distrito leva todos os votos. E mais: nas cédulas eleitorais, proibiu a menção a partidos, mas apenas ao nome ou ao número dos candidatos. Assim, os partidários de Chávez tiveram 55% dos votos, mas, dado o sistema majoritário, obtiveram 92% dos assentos na Constituinte. Se o voto proporcional tivesse sido mantido, seus oponentes teriam ficado com 45% das cadeiras e não com apenas 7%.

A Constituinte nasceu com esse vício de origem, o que não a impediu de promover uma escalada autoritária: decretou a extinção do Congresso e procedeu a um expurgo no Judiciário, com mais de um terço dos juízes sendo demitidos sumariamente, sem direito a defesa. O atual Congresso, unicameral, tem 100% de partidários de Chávez, já que a oposição, em protesto contra leis eleitorais que a prejudicavam, boicotou as eleições.

Não é à toa que, em janeiro deste ano, os deputados foram unânimes ao aprovar uma excrescência: deram a Chávez, pela segunda vez desde 1998, o poder de governar por decretos por um ano e meio, a contar de fevereiro.

O Judiciário é outra calamidade. Logo depois da Constituinte, 20 juízes foram indicados para a Suprema Corte, todos, de início, simpáticos ao presidente. Com o tempo, a corte se dividiu, o que levou Chávez a aprovar uma nova lei para o Judiciário, aumentando para 32 o número de juízes, eleitos, por maioria simples, para um mandato de 12 anos. Ou seja, de uma só vez, Chávez poderia indicar juízes em número suficiente para voltar a ter uma maioria folgada. Mas não foi só: a nova lei dava ao Congresso a possibilidade de afastar qualquer juiz que cuja conduta fira a majestade do cargo ou solape o bom funcionamento da Justiça, seja lá o que essas duas coisas venham a significar. Com essa espada sobre suas cabeças, como falar em independência dos juízes? Num ambiente como este, a Venezuela precisará ainda de muitas vitórias dos democratas para que possamos considerar o país uma democracia.

Situação muito diversa da nossa, ainda bem. Aqui, Executivo, Legislativo e Judiciário são realmente autônomos, independentes e se contrabalançam. As provas disto têm sido oferecidas de modo contínuo pelos três poderes. E pelo nosso povo também. Mais e mais fica claro que a democracia é um valor de que não se quer, em nenhuma hipótese, abrir mão. A última pesquisa Datafolha é um belo exemplo de como estamos maduros: o apoio ao presidente Lula continua na estratosfera, mas a possibilidade de um terceiro mandato foi plenamente rejeitada em todas as regiões e em todas as faixas de renda e de escolaridade (uma maioria nunca menor do que 58%). O resultado dessa pesquisa talvez seja suficiente para que o PT siga de fato a palavra do presidente e pare de namorar essa idéia. Somos de fato e de direito uma democracia, e isso é reconfortante. O que não impede de ainda vivermos, aqui e ali, episódios que, apesar de menores, devem merecer o repúdio de todos nós. Por exemplo, a censura à propaganda do livro “Lula é minha anta”, de Diogo Mainardi, um jornalista competente, cuja importância pode ser medida pelos ataques que recebe. A propaganda foi banida das telas que exibem vídeos e informações em nossos aeroportos. A empresa responsável pelo serviço alegou que a Infraero proíbe a veiculação de propaganda política, o que é ofensivo, porque o livro não é propaganda partidária, mas simplesmente jornalismo de opinião, em que, ao lado da revelação de fatos, o autor emite juízos sobre eles, o que é absolutamente legítimo, porque feito com transparência. No livro, Mainardi faz a crônica do escândalo do mensalão, reunindo num volume os artigos que publicou com grande repercussão na revista “Veja”. Pode-se gostar ou não dele, mas jamais censurá-lo.

Como o próprio Mainardi disse, a decisão pode ter sido excesso de zelo de algum funcionário de quinto escalão.

Mas que episódios assim ainda se repitam é sinal de que temos de estar sempre vigilantes.

Não ao continuísmo

Merval Pereira

A frase mais emblemática da atual situação da Venezuela, depois que a derrota do governo foi oficializada, é a que Hugo Chávez proferiu ao admitir que fora derrotado nas urnas: “Com o coração lhes digo, passei várias horas me debatendo em um dilema. E saí do dilema, estou tranqüilo, espero que os venezuelanos também”. Ora, qual poderia ser o dilema de Chávez, a não ser o de acatar ou não o resultado do referendo? Essa dedução confirma-se por outras declarações, quando ele diz que “por enquanto, não podemos” aprovar as reformas, mas, no entanto, ressalva que elas continuam “vivas e não morreram”. Mais tarde, Chávez anunciou que pretende fazer as reformas “através de outros mecanismos”, o que deixa em suspenso a definição sobre o que fará.

Tudo indica que, depois de muito tempo, Hugo Chávez sentiu que a sociedade civil que começa a se organizar, especialmente devido aos movimentos estudantis, lhe impôs um limite, derrotando, além da possibilidade de reeleição permanente, a pretensão de poder decretar estado de emergência e retirar os direitos dos cidadãos a seu próprio critério. A abstenção de mais de 40% dos eleitores marca uma rejeição às propostas de Chávez, mesmo que não signifique uma oposição total ao governo.

Embora a reforma chavista contenha vários pontos polêmicos que reforçariam ainda mais o poder do Executivo, a possibilidade de reeleição indefinida parece ser o cerne da questão democrática.

Quando comparou sua pretensão ao sistema que vigora na França, no que foi apoiado pelo presidente Lula, Chávez estava apenas misturando alhos com bugalhos, por ignorância ou má-fé.

De fato, não há limites para a reeleição do presidente francês, o que foi conseguido através de um plebiscito por Charles de Gaulle em 1958.

Em 24 de setembro de 2000, o então presidente Jacques Chirac submeteu a referendo uma nova proposta, que está em vigor: o mandato foi reduzido de sete para cinco anos, mas com a manutenção do direito de reeleição sem limites.

A questão, no entanto, é que o presidente francês não acumula as funções de chefe de Estado e chefe de Governo, como nos sistemas presidencialistas da América Latina.

No sistema parlamentarista da França, a função de chefe de Governo é exercida pelo primeiro-ministro, e esta é uma distinção fundamental.

O cientista político Octavio Amorim Neto, da Fundação Getulio Vargas do Rio, considera que limitar a reeleição, ou até mesmo a proibição de reeleição, é “uma característica” num continente que já foi marcado pelo continuísmo e pela falta de alternância no poder.

Essa marca é tão forte que ele lembra que o PRI mexicano, embora tenha dominado a política do país durante tanto tempo, não permitia a reeleição, e, mesmo na ditadura brasileira, havia o rodízio de generais no poder.

Amorim Neto acha também que Chávez já temia ser derrotado quando se confrontou com o governo espanhol recentemente na Cúpula Latino-americana do Chile, quando o Rei Juan Carlos pronunciou a já famosa frase: “Por que não se cala?”: “Ele deve estar sentindo que a clivagem antiimperialista já está se esgotando e agora está explorando a clivagem étnica”, analisa o cientista político, lembrando a frase de Chávez: “Se eu fosse um indígena, lançaria uma flecha contra o Rei”. A clivagem étnica, no entanto, não é tão forte na Venezuela quanto é na Bolívia e no Equador, ressalta Octavio Amorim Neto.

É um exagero oposicionista comparar a derrota de Chávez no referendo ao resultado da pesquisa de opinião divulgada no domingo pelo Datafolha, que mostrou que mais de 60% do eleitorado contrário à possibilidade de o presidente Lula vir a disputar um terceiro mandato presidencial. A comparação é indevida até porque o próprio presidente Lula, sempre que se pronunciou a respeito, foi para se colocar contrário à idéia.

Mesmo que se considere a possibilidade de Lula estar encenando, enquanto incentiva seus correligionários a trabalharem o projeto, não é possível compararse essa manobra política no estágio em que se encontra com a proposta concreta dos governos de Chávez ou de Morales.

Mas a rejeição venezuelana já está produzindo seus efeitos também na Bolívia, cujo governo acena com a possibilidade de retirar da reforma constitucional a proposta de reeleição indefinida, para discuti-la em outra ocasião.

Nem Chávez nem Morales desistiram da idéia, mas fazem, cada qual dentro de suas circunstâncias políticas, manobras táticas de recuo para reagrupar suas forças. No caso dos petistas, que volta e meia tratam da idéia do terceiro mandato, a pesquisa de opinião do Datafolha foi uma ducha de água fria que provavelmente vai enterrar de vez a tentativa.

Embora o deputado Devanir Ribeiro, compadre de Lula que começou o movimento pelo terceiro mandato, tenha tido uma leitura “otimista”: ele acha “promissor” o fato de cerca de 30% estarem a favor do terceiro mandato, pois “ainda nem fizemos campanha”.

O que é comparável nos três casos é o sentimento generalizado no continente de rejeição à eternização de líderes no poder. Num continente de tradição autoritária, de abuso da máquina pública para permanecer no poder, dar limites à reeleição deve ser uma regra sagrada da democracia.

domingo, dezembro 02, 2007

Chávez? Nada disso. É tosco demais.

Segundo pesquisa do Datafolha, 65% dos brasileiros são contra o terceiro mandato para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Pressupõe-se por lógica: eles são contra a extensão para qualquer outro presidente no futuro. Notícia, aparentemente, alvissareira se não for levado em conta outros 31% dos entrevistados. Eles ainda não estão convencidos de uma evidência brutal. O prolongamento excessivo do mandato presidencial, a perenidade do governante no poder é prejudicial. Há certa implicância quando se evoca o exemplo de Hugo Chávez para demonstrar o prejuízo causado pelo despautério. Quem aponta para Venezuela tenta facilitar a compreensão. Embora com sociedade estruturalmente diferente, o país está ali, fronteiriço com o Brasil. Mas o outro lado crê tratar-se de divergência ideológica da... qual é nome do bicho papão? Ah, a nova direita. Está bem. Admitamos uma inverdade: Chávez é um democrata conduzindo seu país para o melhor dos mundos. No embalo, vamos esquecer o referendo da Venezuela, apostar na existência da nova direita que é... qual é o adjetivo? Golpista? O problema da retórica é a impossibilidade de transpor outras referências mundo afora. A mais poderosa delas encontra o presidente russo Vladimir Vladimirovitch Putin, 54 anos.

Reparem. A nova direita está no poder na Rússia. Sai das eleições legislativas russas, um parlamento (Duma) amplamente favorável a Putin. Haverá pequena representatividade do Partido Comunista. Ora, a Rússia nunca esteve tão próxima do modelo sonhado para o Brasil por alguns áulicos do presidente Lula. Dito de outro modo: o DEM, PSDB, PMDB apóiam incondicionalmente Lula. Uma minoria, o PT e partidos de esquerda radicais ficam ali para não deixar o presidente sair do rumo. Um país com uma oposição aparente não seria uma beleza? Esqueçam o Chávez. Os meios do coronel venezuelano são toscos. A figura do caudilho sul-americano está rançosa, provoca repelência em corações e mentes. Algo semelhante à astúcia do futuro czar Putin é o caminho mais sutil para o terceiro mandado de Lula. Putin recusou reforma constitucional que lhe permitia disputar um terceiro mandado presidencial em março de 2008. Em contrapartida, candidatou-se a deputado por um partido cuja pesquisas revelam eleição fácil. No regime parlamentarista russo, significa que Putin, eleito deputado, pode se tornar primeiro-ministro. A partir daí, governa pela Duma concentrando poder com um presidente fraco. O que diz o Lula? O presidente brasileiro afirma e reafirma: “Quem me conhece sabe que eu não brinco com a democracia.” Quem se lembra do “Fora FHC” sabe. Lula brinca sim, senhor. Mas há uma acepção muito conveniente, internacional e nacional, Lula não é Chávez. São recorrentes as confusões que Lula semeia entre o regime presidencialista e parlamentar para falar da longevidade no poder.

Faz-se aqui uma aposta. A tentativa do terceiro mandado de Lula não passará pelo exemplo arcaico, desgastado de Hugo Chávez. A sociedade brasileira amadureceu politicamente. Tentar forçá-la a aceitar, engolir a força algo que rejeita é contraproducente. Lula sabe. No entanto, ele deseja sim, permanecer onde está por mais tempo possível. A questão agora é escolher qual o meio mais palatável.

Antonio Ribeiro, de Paris
E-mail: aribeiro.deparis@gmail.com