O empresário Ferréz, ao lado de Mano Brown, é um bibelô mimado pelas esquerdas e pelo pensamento politicamente correto
HÁ UMA revolução em curso: a dos idiotas. Eles começam agredindo a lógica e terminam justificando o assassinato. Voltarei a esse ponto.
Na semana passada, o escritor e rapper Ferréz escreveu um artigo neste espaço em que tratou do assalto de que Luciano Huck foi vítima. Lê-se: "No final das contas, todos saíram ganhando, o assaltado ficou com o que tinha de mais valioso, que é sua vida, e o correria ficou com o relógio. Não vejo motivo pra reclamação, afinal, num mundo indefensável, até que o rolo foi justo pra ambas as partes". Ele não pode ser mal interpretado porque não pode ser bem interpretado: fez a apologia do crime, o que é crime. Será este jornal tão pluralista que admite alguém como Ferréz? Será este jornal tão pluralista que admite alguém como eu? Lustramos ambos o ambiente de tolerância desta Folha? A resposta é "não".
O artigo do tal é irrespondível. Vou eu lhe dizer que o crime não compensa? Ele tem motivos para acreditar que sim. Lênin mandaria que lhe passassem fogo -não sem antes lhe expropriar o relógio. Apenas sugiro ao jornal que corrija seu pé biográfico: ele é um empresário; o bairro do Capão Redondo é seu produto, e a voz dos marginalizados, o fetiche de sua mercadoria. Ir além na contestação de seu libelo criminoso seria reconhecê-lo como voz aceitável na pluralidade do jornal. Eu não reconheço.
Na democracia, o direito à divergência não alcança as regras do jogo. Um democrata não deve, em nome de seus princípios, conceder a seus inimigos licenças que estes, em nome dos deles, a ele não concederiam se chegassem ao poder. Ao publicar aquele artigo, a Folha aceita que potencialmente se solapem as bases de sua própria legitimidade. Errou feio.
O poeta Bruno Tolentino é autor de um verso e tanto: "A arte não tem escrúpulos, tem apenas medida". O mesmo vale para a ação política.
Idealmente, há quem ache que o mundo seria melhor sem propriedade privada -eu acredito que, sem ela, estaríamos de tacape na mão, puxando as moças pelos cabelos.
Posso acalentar quantos sonhos quiser, sem escrúpulos. Mas o regime democrático tem medidas. Uma delas é o respeito às leis -inclusive às leis que regulam a mudança das leis. Se admitimos a voz do assalto, por que não a da pedofilia, a do terrorismo, a da luta armada, a do racismo? Aceito boas respostas.
O empresário Ferréz, ao lado de Mano Brown, é um bibelô mimado pelas esquerdas e pelo pensamento politicamente correto, para quem o crime é uma precognição política a caminho de uma revelação.
Tal suposição, somada à patrulha que tentou transformar Luciano Huck no verdadeiro culpado pelo assalto, contribuiu para esconder um fato relevante. A cidade de São Paulo teve 49,3 homicídios por 100 mil habitantes em 2001. Em 2006, 18,39 (uma redução de 62,69%). Em 2001, havia presas no Estado 67.649 pessoas; em 2006, 125.783 (crescimento de 85,93%). Não é espantoso? Quanto mais bandidos presos, menos crimes. Quanto mais eficiente é a polícia, menos mortos.
Eis que, no dia 11, abro esta mesma página e dou de cara com um artigo de Sérgio Salomão Shecaira. Escreve: "(...) O Estado de São Paulo concentra quase a metade dos cerca de 419 mil presos brasileiros (...). Enquanto, no Brasil, existem 227,63 presos por 100 mil habitantes, em São Paulo essa relação salta para 341,98 por 100 mil habitantes". Ele está descontente.
Quer prender menos: "Enquanto, no Estado de São Paulo, em 2005, houve 18,9 homicídios por 100 mil habitantes, no Rio de Janeiro a cifra foi de 40,5, e, em Pernambuco, de 48. No entanto, nesses dois últimos Estados, o número relativo de presos é bem menor que o paulista".
Shecaira é mestre e doutor em direito penal e professor associado da Faculdade de Direito da USP. Mas ainda não descobriu a lógica, coitado!
Ora, por que será que São Paulo tem, por 100 mil, menos da metade dos homicídios que tem o Rio e quase um terço do que tem Pernambuco? Porque há mais bandidos na cadeia!
Mas ele quer menos. Logo... Em vez de Ferréz se alfabetizar politicamente no contato com Shecaira, é Shecaira quem se analfabetiza no contato com Ferréz.
A tragédia não é recente. Aconteceu com a universidade: em vez de ela fornecer teoria aos sindicatos, foram os sindicatos que lhe forneceram táticas de greve. Em vez de Marilena Chaui ensinar ao companheiro as virtudes do pensamento, foi o companheiro que explicou a Marilena por que pensar é uma bobagem.
A minha pluralidade não alcança tolerar idiotas que querem destruir o sistema de valores que garantem a minha existência. E, curiosamente, até a deles.
REINALDO AZEVEDO para a Folha
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