Merval Pereira
A frase mais emblemática da atual situação da Venezuela, depois que a derrota do governo foi oficializada, é a que Hugo Chávez proferiu ao admitir que fora derrotado nas urnas: “Com o coração lhes digo, passei várias horas me debatendo em um dilema. E saí do dilema, estou tranqüilo, espero que os venezuelanos também”. Ora, qual poderia ser o dilema de Chávez, a não ser o de acatar ou não o resultado do referendo? Essa dedução confirma-se por outras declarações, quando ele diz que “por enquanto, não podemos” aprovar as reformas, mas, no entanto, ressalva que elas continuam “vivas e não morreram”. Mais tarde, Chávez anunciou que pretende fazer as reformas “através de outros mecanismos”, o que deixa em suspenso a definição sobre o que fará.
Tudo indica que, depois de muito tempo, Hugo Chávez sentiu que a sociedade civil que começa a se organizar, especialmente devido aos movimentos estudantis, lhe impôs um limite, derrotando, além da possibilidade de reeleição permanente, a pretensão de poder decretar estado de emergência e retirar os direitos dos cidadãos a seu próprio critério. A abstenção de mais de 40% dos eleitores marca uma rejeição às propostas de Chávez, mesmo que não signifique uma oposição total ao governo.
Embora a reforma chavista contenha vários pontos polêmicos que reforçariam ainda mais o poder do Executivo, a possibilidade de reeleição indefinida parece ser o cerne da questão democrática.
Quando comparou sua pretensão ao sistema que vigora na França, no que foi apoiado pelo presidente Lula, Chávez estava apenas misturando alhos com bugalhos, por ignorância ou má-fé.
De fato, não há limites para a reeleição do presidente francês, o que foi conseguido através de um plebiscito por Charles de Gaulle em 1958.
Em 24 de setembro de 2000, o então presidente Jacques Chirac submeteu a referendo uma nova proposta, que está em vigor: o mandato foi reduzido de sete para cinco anos, mas com a manutenção do direito de reeleição sem limites.
A questão, no entanto, é que o presidente francês não acumula as funções de chefe de Estado e chefe de Governo, como nos sistemas presidencialistas da América Latina.
No sistema parlamentarista da França, a função de chefe de Governo é exercida pelo primeiro-ministro, e esta é uma distinção fundamental.
O cientista político Octavio Amorim Neto, da Fundação Getulio Vargas do Rio, considera que limitar a reeleição, ou até mesmo a proibição de reeleição, é “uma característica” num continente que já foi marcado pelo continuísmo e pela falta de alternância no poder.
Essa marca é tão forte que ele lembra que o PRI mexicano, embora tenha dominado a política do país durante tanto tempo, não permitia a reeleição, e, mesmo na ditadura brasileira, havia o rodízio de generais no poder.
Amorim Neto acha também que Chávez já temia ser derrotado quando se confrontou com o governo espanhol recentemente na Cúpula Latino-americana do Chile, quando o Rei Juan Carlos pronunciou a já famosa frase: “Por que não se cala?”: “Ele deve estar sentindo que a clivagem antiimperialista já está se esgotando e agora está explorando a clivagem étnica”, analisa o cientista político, lembrando a frase de Chávez: “Se eu fosse um indígena, lançaria uma flecha contra o Rei”. A clivagem étnica, no entanto, não é tão forte na Venezuela quanto é na Bolívia e no Equador, ressalta Octavio Amorim Neto.
É um exagero oposicionista comparar a derrota de Chávez no referendo ao resultado da pesquisa de opinião divulgada no domingo pelo Datafolha, que mostrou que mais de 60% do eleitorado contrário à possibilidade de o presidente Lula vir a disputar um terceiro mandato presidencial. A comparação é indevida até porque o próprio presidente Lula, sempre que se pronunciou a respeito, foi para se colocar contrário à idéia.
Mesmo que se considere a possibilidade de Lula estar encenando, enquanto incentiva seus correligionários a trabalharem o projeto, não é possível compararse essa manobra política no estágio em que se encontra com a proposta concreta dos governos de Chávez ou de Morales.
Mas a rejeição venezuelana já está produzindo seus efeitos também na Bolívia, cujo governo acena com a possibilidade de retirar da reforma constitucional a proposta de reeleição indefinida, para discuti-la em outra ocasião.
Nem Chávez nem Morales desistiram da idéia, mas fazem, cada qual dentro de suas circunstâncias políticas, manobras táticas de recuo para reagrupar suas forças. No caso dos petistas, que volta e meia tratam da idéia do terceiro mandato, a pesquisa de opinião do Datafolha foi uma ducha de água fria que provavelmente vai enterrar de vez a tentativa.
Embora o deputado Devanir Ribeiro, compadre de Lula que começou o movimento pelo terceiro mandato, tenha tido uma leitura “otimista”: ele acha “promissor” o fato de cerca de 30% estarem a favor do terceiro mandato, pois “ainda nem fizemos campanha”.
O que é comparável nos três casos é o sentimento generalizado no continente de rejeição à eternização de líderes no poder. Num continente de tradição autoritária, de abuso da máquina pública para permanecer no poder, dar limites à reeleição deve ser uma regra sagrada da democracia.
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