Miriam Leitão
L. não sabe, mas é um teste para o Brasil. L. é uma espécie de soro da verdade. Cada vez que uma autoridade abre a boca para falar dela, diz alguma insensatez que vai revelando com que calma se aceita o inaceitável no Pará. Nestes breves dias de sua notoriedade, com seu cabelo cortado a faca, seu andar desengonçado e sua inequívoca menoridade, L. dói como um nervo exposto.
Um a um foram caindo pela boca os envolvidos com seu sofrimento. É chegar perto de L., e a autoridade em questão começa a dizer sandices. Ela tem o efeito de produzir atos falhos em série. Às vezes, a autoridade diz mentira tão descarnada de qualquer sentido que acaba revelando a verdade, pelo avesso. Às vezes, deixa escapar a verdade do preconceito contra pobres e convicções de arrepiar. A delegada Flávia Verônica Monteiro, que a prendeu, disse que “a lei não me dava o direito de fazer outra coisa”.
Por essa estranha interpretação da delegada, a lei a manda prender uma menor de idade e, pior, numa cela com vários homens. A delegada disse que “nunca ouviu falar” dos abusos contra ela na cela. Quase celestial essa delegada! Nunca imaginou o que poderia estar acontecendo atrás das grades instaladas na cara da rua de Abaetetuba.
A corregedora Elcione dos Santos Moura disse que ainda não sabia o nome dos policiais que ameaçaram L. após o ocorrido. A delegada corrigiu a corregedora: são os inspetores Pires e Roosevelt.
Eles a ameaçaram para que ela nada revelasse.
L. tudo revelou.
O delegado-geral do Pará, Raimundo Benassuly, também foi tocado pelo soro de L.: “Ela tem alguma debilidade mental”, disse, em pleno Senado. Na sua estranha forma de pensar, a culpa é da “débil mental” que não revelou ser menor de idade.
Antes disso, o soro da verdade havia surtido efeito em outros personagens da tragédia. O superintendente da Polícia Civil Fernando Cunha foi o primeiro a dizer a frase: “Se ela dissesse que era menor, seria dado um outro procedimento.” A frase foi repetida, com algumas alterações, por várias outras autoridades. A repetição revela que a convicção na polícia do Pará é de que, após a maioridade, a mulher pode ser posta prisioneira para ser estuprada ao bel prazer dos colegas de cela. Os casos continuam vindo à tona. A perversidade era rotina. Mais uma verdade revelada por L.
Atingida também pelo soro que faz todos revelarem as sandices que pensam, a governadora Ana Júlia desafinou.
Admitiu que era comum a prática no estado que governa há um ano. Depois, disse que a sociedade deveria se mobilizar para que esse tipo de prática seja abolido.
Ora, senhora governadora! Passou o tempo da passeata; a senhora é o poder no estado. Uma manifestação contra esse crime terá que bater à sua porta.
A deputada Maria do Rosário, que relatou com tanto brilho a CPI contra a exploração sexual infantil, foi ao Pará para defender a governadora.
Ela disse que Ana Júlia não pode ser responsabilizada, já que está há pouco tempo no cargo.
Seria fundamental a deputada ver que L. é a encarnação extremada do objeto do seu trabalho na CPI: uma menina abusada sexualmente nas dependências, e sob as ordens, do Estado brasileiro! Ela não deveria ser parte de uma disputa política entre PT e PSDB.
O soro da verdade de L. faz efeito até em quem fica em silêncio. O silêncio da ministra Nilcéa Freire, que hesitou tanto nos primeiros dias em se pronunciar. O que faltou à ministra da Mulher entender é que esse caso é um sinistro de grandes proporções.
Equivale para a Secretaria Especial da Mulher o que um grande desastre significaria para a Defesa Civil. A ministra deveria ter ido para o local do sinistro no primeiro instante e lá ficado vigilante até saber a imensidão do suplício que atinge as mulheres infratoras do Pará para exigir nada menos que todos sejam punidos. Todos os criminosos que — em nome do Estado e financiados pelos nossos impostos — expõem mulheres prisioneiras ao sofrimento do estupro serial.
L. revela até a relatividade de certo rufar de tambores.
O Brasil bate o recorde de entrada de capital estrangeiro, vira país de Alto Desenvolvimento Humano no ranking da ONU, espera o grau de investimento e vai formar um fundo soberano.
Mas parece pré-sal.
Parece estar num estágio anterior à civilização.
Todos esses avanços merecem ser comemorados, todos são verdadeiros; só que o caso de L. mostra que o Brasil está numa encruzilhada.
Se aceita esse padrão de tratamento aos desamparados, nunca será, de fato, desenvolvido.
Será o que sempre foi: uma sociedade partida, onde a proteção da lei é para alguns poucos.
L.éo fio do novelo. Puxando pelo fio, o país foi conhecendo as outras histórias, todas inconcebíveis, inaceitáveis, independentemente da idade que tenha a vítima. L. revela os retratos do pior lado do Brasil. Mas uma informação está ainda faltando. A juíza que a condenou sem culpa formada, os promotores que nada fizeram em sua defesa, a delegada que a enjaulou, a corregedora, os secretários que falaram sobre o caso ainda não explicaram o que de tão valioso L. roubou para ser condenada desta forma sumária e cruel. Parece que, para todos eles, o que L. roubou não é importante, o fundamental é que ela fosse punida.
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