terça-feira, outubro 26, 2010
O segundo nariz por Olavo de Carvalho
Que significa a pressa obscena com que, ao primeiro abalo sofrido pela candidatura Dilma Rousseff, o governo Lula partiu para a prática dos crimes eleitorais mais descarados e cínicos de todos os tempos? Significa, antes de tudo, que durante décadas o PT se preparou para chegar ao governo, mas não para deixá-lo. A perspectiva de ter de voltar à oposição depois de oito anos de poder absoluto parece-lhe um pesadelo aterrorizante, uma catástrofe apocalíptica, a ameaça do retorno a um estado de coisas em cuja liquidação definitiva o sr. Presidente da República e seus seguidores, admiradores e bajuladores apostaram todas as suas energias – e também as do restante da população, que jamais foi consultada quanto às vantagens e desvantagens de tão singular investimento.
O eleitorado brasileiro escolheu o PT em 2002 e 2006 acreditando que votava num partido como os outros – diferente pelo seu programa de governo, como é próprio dos partidos em geral, mas idêntico a eles pela sua estrutura e funções no sistema constitucional. Não lhe foi informado que o PT não era uma agremiação nacional como seus concorrentes, e sim o fundador, cabeça e sustentáculo de uma organização revolucionária internacional empenhada em salvar o comunismo da sua iminente destruição, anunciada pela queda da URSS. Não lhe foi informado que o PT tinha compromissos secretos ou pelo menos discretos com quadrilhas de terroristas e narcotraficantes, irmanadas com partidos comunistas no esforço conjunto de destruir a ordem vigente e preparar a instauração do socialismo na América Latina. Não lhe foi informado que o PT era o braço político da "Teologia da Libertação" – uma seita satânica dedicada a macaquear a Igreja para esvaziá-la de seu conteúdo espiritual e transformá-la em instrumento da subversão comunista (é uma lindeza que hoje esse órgão do pseudocatolicismo militante acuse os outros de "uso eleitoral do discurso religioso"). Não lhe foi informado que o PT só aceitava as regras do jogo democrático a título de mal provisoriamente necessário, pronto a substituí-las por um "novo paradigma", hoje triunfante, calculado para eliminar todo antagonismo ideológico e reduzir a oposição às funções de ombudsman do partido governante, numa atmosfera de "centralismo democrático", meio leninista, meio gramsciano, onde o direito de divergir é monopólio dos amigos do Príncipe.
A ocultação, a falsa identidade, o engodo premeditado e sistêmico – tais foram os traços que desde o início definiram, mais que a estratégia do PT, a sua natureza mesma. O personagem do sr. José Dirceu – o homem que trocou de nariz para enganar a esposa e o mundo – é a condensação simbólica mais perfeita do partido ao qual ele serviu, com o melhor dos seus talentos, na condição dupla de eloqüente acusador da corrupção alheia e hábil organizador da roubalheira em família. Roubalheira à qual, por meio do Mensalão, ele deu as dimensões majestosas do impensável e inconcebível, reduzindo os Anões do Orçamento à escala de miniaturas de anões.
O ingresso dessa organização no cenário político nacional foi como a inoculação de um vírus mortífero ao qual o sistema não poderia sobreviver senão por milagre. Ora, milagres não acontecem quando todo mundo está rezando para que não aconteçam. Afinal, quem deu respeitosa credibilidade à farsa petista foi menos o próprio PT do que o consenso de seus adversários nominais, transfigurados em bando alegre de sicofantas. Para qualquer observador capacitado, em 2002 o perfil político-estratégico do PT como cabeça da revolução continental já estava mais que definido, e o "novo paradigma" já estava em pleno vigor numa eleição em que todos os candidatos eram de esquerda sem que ninguém quisesse notar nisso nada de anormal. Quem, entre os políticos ou na mídia dita "conservadora", não celebrou aquele exagero de opacidade como uma apoteose da transparência democrática? Quem, nesses meios, não ajudou o PT a repartir a arena eleitoral entre a esquerda da esquerda e a direita da esquerda, jogando os conservadores e liberais na lata de lixo do "extremismo" indecoroso e até ilícito? Quem se absteve de colaborar na mentira visceral ante cujos efeitos de longo prazo agora todos choramingam sem querer lembrar de onde eles vieram? Quem pode se dizer inocente do crime de ter ajudado a colar no rosto grotesco de uma organização maligna o segundo nariz que a embelezou ante um eleitorado que não sabia de nada?
Se bem me lembro, só eu, naquela ocasião, denunciei a normalidade simulada e adverti para as conseqüências que adviriam fatalmente da aliança entre o maquiavelismo de uns e a covardia de outros. Leiam meu artigo de 7 de novembro de 2002 (http://www.olavodecarvalho.org/semana/07112002jt.htm) e digam se tudo o que hoje se lamenta e chora na política nacional não poderia ter sido evitado com um pouquinho, só um pouquinho de realismo, de sensatez e de coragem.
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 25 de outubro de 2010
domingo, outubro 24, 2010
O estilo desfaz o homem - Dora Kramer - Estadão
O estilo desfaz o homem
DORA KRAMER - O Estado de S.Paulo
Daqui a oito dias, no próximo domingo antes das 9h da noite, o presidente Luiz Inácio da Silva começará a vivenciar o passado, as urnas apontem a eleição de Dilma Rousseff ou de José Serra para lhe suceder na chefia da Nação.
É inexorável: eleito, as atenções se voltam para o novo, o próximo, aquele que de fato traduz mais que uma expectativa, representa o poder em si. Político baiano da velha guarda, Afrísio Vieira Lima tem a seguinte filosofia: "Ninguém atende ao telefone ou à porta perguntando quem foi, todo mundo quer saber quem é."
Pois é. Face à evidência de que a natureza humana não falha, o mundo político não foge à regra. No momento seguinte à proclamação do resultado, o País - quiçá o mundo - voltará toda a sua atenção para a fala, os planos, os gestos, as vontades, os pensamentos, a biografia, a família, os amigos e tudo o mais que diga respeito à pessoa que a partir do primeiro dia de 2011 dará expediente no principal gabinete do Palácio do Planalto.
Quando a gente vê um presidente tomar a iniciativa de se desmoralizar em público apenas porque não resiste ao impulso de insultar o adversário, a boa notícia é que falta pouco tempo para que esse estilo comece a fazer parte de referências pretéritas.
Abstraindo-se juízo de valor a respeito de Dilma e Serra, chegará ao fundo do poço que o presidente Lula se deu ao desfrute de frequentar na semana passada. Pela simples razão de que é impossível.
A novidade não esteve na distorção dos fatos - isso já faz parte da rotina. O ineditismo foi o desmantelo da farsa. Melhor dizer, das farsas, pois foram duas: uma engendrada com vagar, outra montada às pressas. Ambas malsucedidas, não duraram 24 horas.
No começo da semana, quando já se anunciara o adiamento do fim da sindicância da Casa Civil sobre Erenice Guerra para depois das eleições, eis que a Polícia Federal ressuscitou o caso da quebra do sigilo fiscal de parentes e correligionários do candidato Serra, anunciando a identificação do responsável: Amaury Ribeiro Jr., jornalista que à época do crime trabalhava no jornal Estado de Minas.
O PT tentou legitimar, assim, uma versão que fazia circular desde junho quando se descobriu que os dados fiscais do vice-presidente do PSDB, Eduardo Jorge, apareceram em um dossiê que chegou ao jornal Folha de S. Paulo como originário do PT.
A versão - não de todo inverossímil, diga-se - era a de que as informações haviam sido reunidas por Amaury a serviço do Estado de Minas para municiar Aécio Neves de dados contra José Serra, que, por sua vez, mandara investigá-lo.
Segundo um delegado e o superintendente da PF, Amaury dissera em seu depoimento que o trabalho visava a "proteger" Aécio. Antes da entrevista dos dois, o presidente da República anunciava que naquele dia a Polícia Federal teria novidades.
Pois no dia seguinte, sabe-se que nem Amaury estava a serviço do Estado de Minas na ocasião nem citara no depoimento o nome de Aécio Neves. Ou seja, o presidente Lula comandara uma falácia e a PF aceitara se prestar ao serviço, acrescentando que as investigações estavam encerradas.
Foi desmentida em seguida pelo Ministério Público, que avisou que a polícia não estava autorizada a determinar o rumo e os prazos das investigações.
Não satisfeito, depois da pancadaria promovida por petistas contra uma passeata do candidato tucano no Rio, o presidente resolveu acusar o adversário de ser um farsante. Precipitou-se, insultou o candidato em termos zombeteiros, desqualificou um médico de respeitável reputação, foi de uma falta de modos ainda pior que o habitual.
Isso tudo para quê? Para ser logo em seguida desmentido pelos fatos exibidos no noticiário de televisão com a maior audiência do País, o Jornal Nacional.
Tudo isso sem necessidade, pois pelas pesquisas sua candidata está com 12 milhões de intenções de voto de vantagem sobre o adversário.
Tudo isso pelo exercício de um estilo abusivo que não conhece limites, mas que daqui a oito dias começará a perceber que o poder passa e a ausência dele dói.
sexta-feira, outubro 15, 2010
Lógica do abortismo
Lógica do abortismo
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 14 de outubro de 2010
O aborto só é uma questão moral porque ninguém conseguiu jamais provar, com certeza absoluta, que um feto é mera extensão do corpo da mãe ou um ser humano de pleno direito. A existência mesma da discussão interminável mostra que os argumentos de parte a parte soam inconvincentes a quem os ouve, se não também a quem os emite. Existe aí portanto uma dúvida legítima, que nenhuma resposta tem podido aplacar. Transposta ao plano das decisões práticas, essa dúvida transforma-se na escolha entre proibir ou autorizar um ato que tem cinqüenta por cento de chances de ser uma inocente operação cirúrgica como qualquer outra, ou de ser, em vez disso, um homicídio premeditado. Nessas condições, a única opção moralmente justificada é, com toda a evidência, abster-se de praticá-lo. À luz da razão, nenhum ser humano pode arrogar-se o direito de cometer livremente um ato que ele próprio não sabe dizer, com segurança, se é ou não um homicídio. Mais ainda: entre a prudência que evita correr o risco desse homicídio e a afoiteza que se apressa em cometê-lo em nome de tais ou quais benefícios sociais hipotéticos, o ônus da prova cabe, decerto, aos defensores da segunda alternativa. Jamais tendo havido um abortista capaz de provar com razões cabais a inumanidade dos fetos, seus adversários têm todo o direito, e até o dever indeclinável, de exigir que ele se abstenha de praticar uma ação cuja inocência é matéria de incerteza até para ele próprio.
Se esse argumento é evidente por si mesmo, é também manifesto que a quase totalidade dos abortistas opinantes hoje em dia não logra perceber o seu alcance, pela simples razão de que a opção pelo aborto supõe a incapacidade – ou, em certos casos, a má vontade criminosa – de apreender a noção de "espécie". Espécie é um conjunto de traços comuns, inatos e inseparáveis, cuja presença enquadra um indivíduo, de uma vez para sempre, numa natureza que ele compartilha com outros tantos indivíduos. Pertencem à mesma espécie, eternamente, até mesmo os seus membros ainda não nascidos, inclusive os não gerados, que quando gerados e nascidos vierem a portar os mesmos traços comuns. Não é difícil compreender que os gatos do século XXIII, quando nascerem, serão gatos e não tomates.
A opção pelo abortismo exige, como condição prévia, a incapacidade ou recusa de apreender essa noção. Para o abortista, a condição de "ser humano" não é uma qualidade inata definidora dos membros da espécie, mas uma convenção que os já nascidos podem, a seu talante, aplicar ou deixar de aplicar aos que ainda não nasceram. Quem decide se o feto em gestação pertence ou não à humanidade é um consenso social, não a natureza das coisas.
O grau de confusão mental necessário para acreditar nessa idéia não é pequeno. Tanto que raramente os abortistas alegam de maneira clara e explícita essa premissa fundante dos seus argumentos. Em geral mantêm-na oculta, entre névoas (até para si próprios), porque pressentem que enunciá-la em voz alta seria desmascará-la, no ato, como presunção antropológica sem qualquer fundamento possível e, aliás, de aplicação catastrófica: se a condição de ser humano é uma convenção social, nada impede que uma convenção posterior a revogue, negando a humanidade de retardados mentais, de aleijados, de homossexuais, de negros, de judeus, de ciganos ou de quem quer que, segundo os caprichos do momento, pareça inconveniente.
Com toda a clareza que se poderia exigir, a opção pelo abortismo repousa no apelo irracional à inexistente autoridade de conferir ou negar, a quem bem se entenda, o estatuto de ser humano, de bicho, de coisa ou de pedaço de coisa.
Não espanta que pessoas capazes de tamanho barbarismo mental sejam também imunes a outras imposições da consciência moral comum, como por exemplo o dever que um político tem de prestar contas dos compromissos assumidos por ele ou por seu partido. É com insensibilidade moral verdadeiramente sociopática que o sr. Lula da Silva e sua querida Dona Dilma, após terem subscrito o programa de um partido que ama e venera o aborto ao ponto de expulsar quem se oponha a essa idéia, saem ostentando inocência de qualquer cumplicidade com a proposta abortista.
Seria tolice esperar coerência moral de indivíduos que não respeitam nem mesmo o compromisso de reconhecer que as demais pessoas humanas pertencem à mesma espécie deles por natureza e não por uma generosa – e altamente revogável – concessão da sua parte.
Também não é de espantar que, na ânsia de impor sua vontade de poder, mintam como demônios. Vejam os números de mulheres supostamente vítimas anuais do aborto ilegal, que eles alegam para enaltecer as virtudes sociais imaginárias do aborto legalizado. Eram milhões, baixaram para milhares, depois viraram algumas centenas. Agora parece que fecharam negócio em 180, quando o próprio SUS já admitiu que não passam de oito ou nove. É claro: se você não apreende ou não respeita nem mesmo a distinção entre espécies, como não seria também indiferente à exatidão das quantidades? Uma deformidade mental traz a outra embutida.
Aristóteles aconselhava evitar o debate com adversários incapazes de reconhecer ou de obedecer as regras elementares da busca da verdade. Se algum abortista desejasse a verdade, teria de reconhecer que é incapaz de provar a inumanidade dos fetos e admitir que, no fundo, eles serem humanos ou não é coisa que não interfere, no mais mínimo que seja, na sua decisão de matá-los. Mas confessar isso seria exibir um crachá de sociopata. E sociopatas, por definição e fatalidade intrínseca, vivem de parecer que não o são.